Decisão nº 25425 de STF. Supremo Tribunal Federal, 23 de Marzo de 2010

Data23 Março 2010
Número do processo25425

Desição

DECISÃO: Trata-se de mandado de segurança impetrado com a finalidade de invalidar declaração expropriatória (Decreto de 24 de fevereiro de 2005 com a redação dada pelo Decreto de 17 de março de 2005, fls. 101) fundada em razões de interesse social, para fins de reforma agrária, referente ao imóvel rural denominado “Fazenda Capão Quente”, situado no Município de Guapé, Estado de Minas Gerais (fls. 13). A presente impetração apóia-se, em síntese, nos seguintes fundamentos (fls. 02/13): “A Arrematação e o Registro do imóvel ocorreram em 1994, entretanto, como havia discussão judicial acerca do valor pago, (...) os ora Impetrantes tomaram posse do imóvel, mas não iniciaram o processo de ampla utilização do mesmo até que a decisão final transitasse em julgado. Frise-se que, no dia 11 de setembro de 2002, o processo de Embargos à Arrematação transitou em julgado (...). ....................................................... Entretanto, no mês de outubro de 2002, 30 dias após a imissão efetiva da posse, ocorreu a invasão da propriedade por integrantes do Movimento dos Sem Terra, sendo certo que o INCRA foi imediatamente informado, instaurando processo administrativo de Vistoria do Imóvel Rural, objeto da controvérsia, para verificar se o mesmo era passível de desapropriação. Portanto, como se vê, não foi possível aos Impetrantes cumprirem amplamente o fim social da propriedade, tornando-a produtiva, eis que, quando o imóvel estava juridicamente desimpedido com o Trânsito em Julgado do processo de Embargos à Arrematação, ato contínuo, foi ocupado por membros do MST que impediram o exercício de ampla atividade de produção na Fazenda supracitada. ....................................................... Consoante já previamente demonstrado no item anterior, após a invasão do MST, os Impetrantes firmaram com os membros do Movimento dos Sem Terra Contrato de Comodato, concedendo, em caráter gratuito e precário, por prazo indeterminado, aos Comodatários, a posse de um quinhão de terras de 150 hectares, inserido na área da fazenda acima citada, ficando assegurado aos mesmos o direito de colherem as lavouras até a data da notificação de denúncia do contrato, sendo certo que o contrato se extinguiu pelo decurso do prazo ajustado entre os contratantes (autos da notificação em anexo). ....................................................... (...) como houve quebra da fidúcia entre os pactuantes, com a invasão de outras áreas da Fazenda, os Impetrantes distribuíram perante essa MM. Vara de Conflitos Agrários de Belo Horizonte/MG a Notificação 024.04.332.460-7, concedendo o prazo máximo de 60 (sessenta) dias para que o Movimento dos Sem Terra - MST, na pessoa de seus representantes (...), bem como qualquer terceiro ou ocupante que, eventualmente, se encontrasse no local, saísse do mesmo sob pena de caracterização do esbulho possessório. ....................................................... Entretanto, conforme boletim de ocorrência lavrado no dia 17 de setembro de 2004, os membros do Movimento dos Sem Terra e demais ocupantes do imóvel continuaram em posse do mesmo, sem observar as disposições contratuais e a notificação que denunciou o Contrato de Comodato, estando caracterizado o esbulho possessório. Ademais, antes mesmo da notificação outras áreas da Fazenda Capão Quente, foram invadidas, conforme demonstrado no Boletim de Ocorrência em anexo, lavrado em 05 de maio de 2004, bem como no Laudo de Vistoria Técnica, estando, da mesma sorte caracterizado o esbulho possessório. ....................................................... Portanto, pelos fatos acima descritos e pelos documentos ora juntados, ficou caracterizado que a posse exercida desde setembro de 2004 na área dada em comodato e desde maio de 2004 na área restante pelos membros do MST é ilegítima, precária e clandestina, fugindo da função social da propriedade, consoante disposto nos Artigos 184 e 186 da Constituição da República, afrontando também o princípio da boa-fé contratual e o princípio do ‘pacta sunc servanda’, devendo ser julgada Integralmente procedente a presente demanda. ....................................................... Ora, a invasão de propriedade particular por parte de integrantes de Movimentos sociais fundiários por impedir o adequado aproveitamento do imóvel pelo proprietário rural, constituem, segundo precedentes dessa Egrégia Corte, hipótese de caso fortuito ou força maior, a justificar, nos termos do Artigo 6°, § 7°, da Lei 8.629/93, a baixa produtividade apresentada pela propriedade. ....................................................... Ademais, o decreto que declarou a Fazenda de propriedade dos Impetrantes como sendo passível de desapropriação não observou os ditames do Artigo 6º, parágrafo 7º, e Artigo 4º, parágrafo 6º, da Lei 8.629/93.” (grifei) A autoridade ora apontada como coatora, por sua vez, ao prestar as informações que lhe foram solicitadas (fls. 487/593), sustentou, em síntese, o que se segue (fls. 487/501): “(...) A ‘Fazenda Capão Quente’, segundo informam os impetrantes, foi objeto de invasão e esbulho inicialmente em outubro de 2002, depois, em maio e setembro de 2004. ....................................................... Ora, está mais do que evidente que não ficou provado o esbulho. É cristalino reconhecer que a presença dos posseiros em parte ínfima da propriedade decorreu de pacto assumido entre proprietários do imóvel e os supostos invasores. A Ação de Reintegração, tal qual apresentada, não se presta como prova pré-constituída do direito dos impetrantes, pois não comprova o invocado esbulho que teria impedido a produtividade do imóvel. Aliás, a mencionada ação nada mais demonstra do que a existência de parcerias rurais, no caso através de contrato de comodato, que não podem ser consideradas como força maior capaz de impedir a propriedade de atingir os graus de eficiência na exploração exigidos em lei. Contraditoriamente, demonstra a mera ocupação pelos trabalhadores rurais em períodos distintos daquele colhido pela vistoria (novembro de 2001 a novembro de 2002) e a realização do contrato de comodato firmado por prazo indeterminado em 2004, e que se fez incidir sobre área ínfima de 150 hectares do total de 1.778,32 hectares, não caracterizando causa suficiente e determinante à transfiguração dos elementos de aferição da real função social econômica, ambiental e trabalhista da propriedade demandada. ....................................................... Como se observa, na medida em que o proprietário autoriza a utilização de pequena parte da propriedade (150 hectares) pelos acampados, exaurindo o acordo em momento bem posterior à realização do laudo de vistoria, não se caracterizam quaisquer dos pressupostos estabelecidos pelo art. 2º, § 6º, da Lei 8.629/93 com redação dada pela MP 2.183-56, de 24 de agosto de 2001. Em resumo, para que incida a norma, os fenômenos esbulho ou invasão motivada por conflito agrário ou fundiário de caráter coletivo, devem configurar causa bastante a ocultar a verdadeira e presente produtividade da propriedade rural, além do preenchimento dos requisitos nela previstos, tal como a seguir expostos. As hipóteses ensejadoras do impedimento legal, ‘esbulho possessório ou invasão motivada por conflito agrário ou fundiário de caráter coletivo’, não se consubstanciam diante da pacificidade ou do consentimento ou da conivência do proprietário. É que a invasão e o esbulho pressupõem contrariedade e violação à vontade do proprietário. ....................................................... Além do mais, os fatos apresentados pelos impetrantes são demasiadamente controvertidos e imprestáveis para a utilização da via mandamental, haja vista que não se traduzem em direito líquido e certo. ....................................................... III) NO MÉRITO ....................................................... (...) não se pode afirmar que a ocupação (comodato) de parte ínfima do imóvel foi a causa de não atingir o nível pleno de exploração e produtividade. Assim, não resta configurada força maior que afete os graus de utilização da terra e de eficiência em sua exploração, razão pela qual os proprietários poderiam ter dado caráter produtivo ao imóvel. Entretanto, optaram pela manutenção da improdutividade como bem alegam. ....................................................... Note-se que esse não é o caso dos impetrantes, uma vez que a propriedade não estava atendendo a função social antes mesmo da invocada ocupação (comodato). A intenção da lei é justamente impedir que a função social, econômica, ambiental e trabalhista da propriedade, caracterizada através da produtividade, seja aferida quando a ocupação afetar os graus de utilização da terra e da eficiência em sua exploração, comprometendo os índices fixados pelo órgão federal competente. ....................................................... O reconhecimento da improdutividade anterior fortalece a tese de que ‘in casu’ não houve qualquer transfiguração provocada pela ocupação delatada. Por certo, se era improdutivo antes, não fora a ocupação (comodato) realizada em 05 de maio de 2004, o elemento impeditivo do cumprimento da função social econômica, trabalhista, ambiental, quando a vistoria do INCRA se baseou nos elementos encontrados no imóvel no período de novembro de 2001 a novembro de 2002. ....................................................... Aliás, a hipótese contrária, ou seja, o reconhecimento de obstáculo à desapropriação sobre imóvel ocupado em área ínfima, em tempo efêmero, em área de reserva legal, em momento posterior à vistoria, por exemplo, desvirtuaria o conteúdo finalístico do preceito legal, além de se estabelecer, através de norma infraconstitucional, mais uma hipótese de imunidade à desapropriação não prevista no Texto Maior. Exatamente nessa linha é que disciplinou o Supremo Tribunal Federal em recente decisão: ‘Constitucional. Mandado de Segurança. Reforma Agrária. Desapropriação. Imóvel invadido. Movimento dos Sem-Terra. Afastada a incidência da Medida Provisória n. 2.183, porquanto instituidora de uma outra modalidade impeditiva da desapropriação, além das hipóteses previstas na Constituição Federal de 1988. Ademais, a invasão de parte mínima da gleba rural por integrantes do Movimento dos Sem-Terra não induz, por si só, ao reconhecimento da perda de produtividade do imóvel em sua totalidade. Mandado de segurança indeferido’ (MS n. 24.133-1-DF, maioria de votos, Relator para o acórdão Min. Carlos Britto, j. 20/08/2003, DJU 06.08.2004).” (grifei) Depois de prestadas as informações, o pedido de medida liminar foi indeferido pela eminente Ministra ELLEN GRACIE, à época, Vice-Presidente do Supremo Tribunal Federal (fls. 595/597), sob os seguintes fundamentos: “Os Chamados ‘Sem-Terra’ encontravam-se no imóvel por força de contrato de comodato (fls. 566/568), referente a uma área de apenas 150 hectares, enquanto a área total da fazenda, segundo o documento de fl. 48, é de 5.585 hectares. No que toca à invasão de outra área, o boletim de ocorrência policial relativo ao fato é de 05.05.2004 (fls. 46), portanto muito posterior à data da vistoria (16.12.2002). Por outro lado, não comprovaram os impetrantes que o imóvel tenha sido produtivo em qualquer época anterior à vistoria. Em juízo prévio, não me parece caracterizada força maior ou caso fortuito a existência de embargos à arrematação de modo a justificar, por si só, que o imóvel não fosse produtivo.” O eminente Procurador-Geral da República, Dr. ANTONIO FERNANDO BARROS E SILVA DE SOUZA, ao manifestar-se nestes autos, opinou pela denegação da ordem mandamental, em parecer assim ementado (fls. 599): “MANDADO DE SEGURANÇA. PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO DE DECLARAÇÃO DE INTERESSE SOCIAL. REFORMA AGRÁRIA. ARREMATAÇÃO JUDICIAL DO IMÓVEL EM 1994. EMBATE EM JUÍZO ATÉ 2002. A OPÇÃO DE NÃO INVESTIR NA PRODUÇÃO DA FAZENDA FOI TOMADA PELOS IMPETRANTES. ASSUMIRAM O RISCO DE NÃO ATINGIR OS ÍNDICES MÍNIMOS DE PRODUTIVIDADE, SUJEITANDO-SE A DESCUMPRIR A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE. NÃO HÁ FORÇA MAIOR OU CASO FORTUITO CARACTERIZADOS. OCUPAÇÃO DAS TERRAS POR TRABALHADORES RURAIS ESTAVA PROTEGIDA POR CONTRATO DE COMODATO. EVENTUAL ESBULHO QUE PODERIA TER SIDO CARACTERIZADO APÓS A DENÚNCIA DO CONTRATO É FATO POSTERIOR À VISTORIA. PARECER PELA DENEGAÇÃO DA ORDEM.” (grifei) Destaco, desse douto pronunciamento, as seguintes passagens, que tenho por relevantes para a resolução da presente controvérsia mandamental (fls. 600/601): “6. A ocupação noticiada nos autos tinha lastro em avença firmada entre as partes. O contrato de comodato firmado afasta, de imediato, qualquer alegação de abuso ou desmando na posse das terras. Os dados trazidos aos autos, ademais, parecem evidenciar uma realidade distinta da que é anunciada pelos impetrantes. Os ditos invasores eram trabalhadores rurais que prestavam serviços para os anteriores proprietários das terras, constituindo inúmeras relações com as empresas dos impetrantes, que iriam de arrendamentos a contratação trabalhista. É o que está nos depoimentos de fls. 188-191, juntados aos autos de reintegração de posse movida pelos impetrantes. Esse quadro inviabiliza qualquer conclusão que pudesse apontar conflito de natureza agrária, com motivação social. Denota-se, ao contrário, um descompasso entre os proprietários e os trabalhadores residentes em pequena porção do imóvel, que de há muito prestação serviços no local. 7. Os fatos ocorridos em 2004, quando então os impetrantes denunciaram o contrato, são distantes do período em que se realizaram os estudos técnicos, ocorridos em 2002. Portanto, se esbulho processou-se após a denúncia do contrato, é ocorrência alheia ao processo administrativo. 8. De todo modo, a ocupação, fosse para considerá-la ilegal em alguma argumentação, teria se circunscrito a parcela ínfima da propriedade, considerada a sua monta. Vale acrescer, nesse tópico, a constatação do juiz de direito da Vara de conflitos agrários em visita ao local. Atesta o magistrado que se formou uma pequena comunidade no local, com aproximadamente quarenta famílias – fls. 271-272. Não se sustenta, portanto, nenhuma justificativa plausível para a omissão dos proprietários no que se refere à imensa porção de terras que jamais deixaram as suas posses. A deficiente exploração do bem não pode ser atribuída aos posseiros, que são poucos em limitados a parcela restrita da fazenda. 9. Noutro vértice, as alegações tecidas quanto ao embate judicial da titularidade do domínio não constituem fato que pudesse ser classificado como força maior ou caso fortuito. De maneira alguma a utilização da terra se encontrava prejudicada. A opção dos proprietários de se absterem de explorar o imóvel, talvez por preocupação com eventuais prejuízos financeiros, não pode ser elevada ao patamar de desobrigá-la de atribuições delineadas pela Constituição da República, pois traz consigo toda a responsabilidade inerente a essa omissão. Em suma, ao se proteger de um eventual prejuízo com a reversão da propriedade a terceiro, de outro lado os impetrantes se expuseram ao risco de ver o imóvel lançado em pífios índices de produtividade, o que abriria, sem dúvida, o campo para a declaração de interesse social para fim de reforma agrária. Ou seja, o resultado da omissão dos proprietários somente a eles pode ser atribuído. 10. Ante exposto, o Ministério Público Federal opina pela denegação da ordem.” (grifei) Observo, ainda, por necessário, que os documentos de fls. 607/613, produzidos pelos impetrantes após o pronunciamento da douta Procuradoria Geral da República, não podem ser conhecidos, considerada a disciplina ritual que rege a ação de mandado de segurança. Com efeito, tratando-se de processo documental (MS 27.141-MC/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.), não se justifica, em sede de mandado de segurança, a produção tardia de documentos, eis que estes hão de ser produzidos, pelo impetrante, quando do ajuizamento de referida ação constitucional, como reiteradamente tem advertido o magistério jurisprudencial desta Suprema Corte (RTJ 83/130, Rel. Min. SOARES MUÑOZ – RTJ 133/1314, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE – RTJ 137/663, Rel. p/ o acórdão Min. CELSO DE MELLO – RTJ 171/326-327, Rel. Min. ILMAR GALVÃO, v.g.). Como se sabe, a ação de mandado de segurança faz instaurar processo de caráter eminentemente documental, a significar que a pretensão jurídica deduzida pela parte impetrante há de ser demonstrada mediante produção de provas documentais pré-constituídas, aptas a evidenciar a alegada ofensa a direito líquido e certo supostamente titularizado pelo autor do “writ” mandamental. A lei exige que o impetrante, ao ajuizar o “writ”, instrua a petição inicial com prova literal pré-constituída, essencial à demonstração das alegações feitas, ressalvada a hipótese – inocorrente neste caso - de o documento necessário à comprovação das razões invocadas encontrar-se em repartição ou em estabelecimento público, ou, ainda, em poder de autoridade que se recuse a fornecê-lo por certidão (Lei nº 12.016/2009, art. 6, § 1º, e RISTF, art. 114). Cumpre observar lição inteiramente aplicável, ao caso, emanada do saudoso Ministro e Mestre eminente ALFREDO BUZAID (“Do Mandado de Segurança”, vol. I/208, item n. 128, 1989, Saraiva), para quem, “Diversamente do que ocorre com o procedimento comum e com o procedimento especial de jurisdição contenciosa, nos quais à fase dos articuladores se segue, de ordinário, a instrução probatória, a característica do processo de mandado de segurança está em só admitir prova documental pré-constituída (...)” (grifei). Sendo esse o contexto, passo a examinar a presente controvérsia mandamental, registrando, no entanto, em caráter preliminar, as observações que se seguem. O Supremo Tribunal Federal, mediante edição da Emenda Regimental nº 28, de 18 de fevereiro de 2009, delegou expressa competência ao Relator da causa, para, em sede de julgamento monocrático, denegar ou conceder a ordem de mandado de segurança, desde que a matéria versada no “writ” em questão constitua “objeto de jurisprudência consolidada do Tribunal” (RISTF, art. 205, “caput”, na redação dada pela ER nº 28/2009). Ao assim proceder, fazendo-o mediante interna delegação de atribuições jurisdicionais, esta Suprema Corte, atenta às exigências de celeridade e de racionalização do processo decisório, limitou-se a reafirmar princípio consagrado em nosso ordenamento positivo (RISTF, art. 21, § 1º; Lei nº 8.038/90, art. 38; CPC, art. 544, § 4º) que autoriza o Relator da causa a decidir, monocraticamente, o litígio, sempre que este referir-se a tema já definido em “jurisprudência dominante” no Supremo Tribunal Federal. A legitimidade jurídica dessa orientação – que vem sendo observada na prática processual desta Suprema Corte (MS 27.649/DF, Rel. Min. CEZAR PELUSO, v.g.) - decorre da circunstância de o Relator da causa, no desempenho de seus poderes processuais, dispor de plena competência para exercer, monocraticamente, o controle das ações, pedidos ou recursos dirigidos ao Supremo Tribunal Federal, justificando-se, em conseqüência, os atos decisórios que, nessa condição, venha a praticar (RTJ 139/53 - RTJ 168/174-175 - RTJ 173/948). Nem se alegue que essa orientação implicaria transgressão ao princípio da colegialidade, eis que o postulado em questão sempre restará preservado ante a possibilidade de submissão da decisão singular ao controle recursal dos órgãos colegiados no âmbito do Supremo Tribunal Federal, consoante esta Corte tem reiteradamente proclamado (RTJ 181/1133-1134, Rel. Min. CARLOS VELLOSO – AI 159.892-AgR/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.). Tendo em vista essa delegaçao regimental de competência ao Relator da causa, impõe-se reconhecer que a controvérsia ora em exame, ajusta-se a diversos precedentes que o Plenário do Supremo Tribunal Federal firmou na matéria em análise, o que possibilita seja proferida decisão monocrática, neste processo mandamental, sobre o litígio em questão. Os elementos existentes nos autos evidenciam a ausência de liquidez dos fatos subjacentes à pretensão mandamental deduzida pelos ora impetrantes, o que inviabiliza o reconhecimento do direito vindicado pelos autores da presente ação de mandado de segurança. Não se desconhece que esta Corte Suprema – considerado, sobretudo, o julgamento plenário da ADI 2.213-MC/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, em que se reconheceu, em juízo de delibação, a plena legitimidade constitucional do art. 2º, § 6º, da Lei nº 8.629/93, na redação dada pela MP nº 2.183-56, de 24/08/2001 – tem advertido que o esbulho possessório, enquanto subsistir (e até dois anos após a desocupação do imóvel rural invadido por movimentos sociais organizados), impede que se pratiquem atos de vistoria, de avaliação e de desapropriação da propriedade imobiliária rural, por interesse social, para efeito de reforma agrária, pois a prática da violação possessória, além de configurar ato impregnado de evidente ilicitude, revela-se apta a comprometer a racional e adequada exploração do imóvel rural, justificando-se, por isso mesmo, a invocação da “vis major”, em ordem a afastar a alegação de descumprimento da função social (RTJ 182/545, Rel. Min. ELLEN GRACIE – MS 23.563/GO, Rel. p/ o acórdão Min. MAURÍCIO CORRÊA, v.g.): “- CONSTITUCIONAL. AGRÁRIO. REFORMA AGRÁRIA: DESAPROPRIAÇÃO. IMÓVEL INVADIDO: ‘SEM-TERRA’. I. - Imóvel rural ocupado por famílias dos denominados ‘sem-terra’: situação configuradora da justificativa do descumprimento do dever de tornar produtivo o imóvel. Força maior prevista no § 7º do art. 6º da Lei 8.629/93. Precedentes do Supremo Tribunal Federal. II. - Mandado de segurança deferido.” (RTJ 188/131, Rel. Min. CARLOS VELLOSO - grifei) “A prática ilícita do esbulho possessório, quando afetar os graus de utilização da terra e de eficiência em sua exploração, comprometendo os índices fixados por órgão federal competente, qualifica-se, em face do caráter extraordinário que decorre dessa anômala situação, como hipótese configuradora de força maior, constituindo, por efeito da incidência dessa circunstância excepcional, causa inibitória da válida edição do decreto presidencial consubstanciador da declaração expropriatória, por interesse social, para fins de reforma agrária, notadamente naqueles casos em que o coeficiente de produtividade fundiária – revelador do caráter produtivo da propriedade imobiliária rural e assim comprovado por registro constante do Sistema Nacional de Cadastro Rural – vem a ser descaracterizado como decorrência direta e imediata da ação predatória desenvolvida pelos invasores, cujo comportamento, frontalmente desautorizado pelo ordenamento jurídico, culmina por frustrar a própria realização da função social inerente à propriedade. Precedentes.” (RTJ 187/910, Rel. Min. CELSO DE MELLO) O Supremo Tribunal Federal, ao extrair conseqüências jurídicas do esbulho possessório praticado por terceiros, notadamente quando organizados em movimentos coletivos, teve presente - em casos nos quais invalidou a declaração expropriatória emanada do Presidente da República – a circunstância excepcional ora referida. Esta Suprema Corte, por mais de uma vez, pronunciando-se sobre a questão específica do esbulho possessório, executado, mediante ação coletiva, por movimentos de trabalhadores rurais, não hesitou em censurar essa prática ilícita, ao mesmo tempo em que invalidou o decreto presidencial consubstanciador da declaração expropriatória de imóveis rurais, pois, com a arbitrária ocupação de tais bens, não mais se viabiliza a realização de vistoria destinada a constatar se a propriedade invadida teria atingido, ou não, coeficientes mínimos de produtividade fundiária. Esse entendimento - que identifica, no ato de esbulho possessório, causa impeditiva de declaração expropriatória do imóvel rural, para fins de reforma agrária (RTJ 182/545, Rel. Min. ELLEN GRACIE – RTJ 183/171, Rel. Min. NÉRI DA SILVEIRA - MS 23.323/PR, Rel. Min. NÉRI DA SILVEIRA, v.g.) - acentua que a ocupação ilícita da propriedade imobiliária, notadamente nos casos em que esta se faz de modo coletivo, além de impedir, injustamente, que o proprietário nela desenvolva regular atividade de exploração econômica, representa motivo legítimo que justifica, ante o caráter extraordinário de tal anômala situação, a impossibilidade de o imóvel invadido atender os graus mínimos de produtividade exigidos pelo ordenamento positivo, para, desse modo, poder realizar a função social que lhe é inerente. A situação versada nos presentes autos, no entanto, não se ajusta às hipóteses que venho de referir, especialmente se se considerarem as informações oficiais prestadas pelo Presidente da República que afirmou, categoricamente, que “está mais do que evidente que não ficou provado o esbulho. É cristalino reconhecer que a presença dos posseiros em parte ínfima da propriedade decorreu de pacto assumido entre proprietários do imóvel e os supostos invasores” (fls. 492 - grifei). Mais do que isso, as informações prestadas pela autoridade apontada como coatora também assumem relevo no ponto em que enfatizam que a “Ação de Reintegração, tal qual apresentada, não se presta como prova pré-constituída do direito dos impetrantes, pois não comprova o invocado esbulho que teria impedido a produtividade do imóvel. Aliás, a mencionada ação nada mais demonstra do que a existência de parcerias rurais, no caso, através de contrato de comodato, que não podem ser considerados como força maior capaz de impedir a propriedade de atingir os graus de eficiência na exploração exigidos em lei. Contraditoriamente, demonstra a mera ocupação pelos trabalhadores rurais em períodos distintos daquele colhido pela vistoria (novembro de 2001 a novembro de 2002) e a realização do contrato de comodato firmado por prazo indeterminado em 2004, e que se fez incidir sobre área ínfima de 150 hectares do total de 1.778,32 hectares, não caracterizando causa suficiente e determinante à transfiguração dos elementos de aferição da real função social econômica, ambiental e trabalhista da propriedade demandada” (fls. 462/493 - grifei). As informações oficiais em questão igualmente acentuam que “as hipóteses ensejadoras do impedimento legal, ‘esbulho possessório ou invasão motivada por conflito agrário ou fundiário de caráter coletivo’, não se consubstanciam diante da pacificidade ou do consentimento ou da conivência do proprietário. É que a invasão e o esbulho pressupõem contrariedade e violação à vontade do proprietário” (fls. 493 - grifei). O exame das informações prestadas, de um lado, em contraste com as razões invocadas na petição inicial desta impetração, de outro, revela que a situação de fato exposta na hipótese destes autos – impossibilidade de ampla utilização do imóvel em razão das supostas invasões sofridas - apresenta-se destituída da necessária liquidez. Mostra-se facilmente constatável, desse modo, presente o contexto que emerge desta causa, que a simples existência de matéria controvertida (iliquidez do fato constitutivo do pleito mandamental, realçada pelas informações) torna questionável a própria caracterização do direito líquido e certo (noção que não se confunde com a de direito material, cuja tutela se busca obter em sede mandamental), o que se revela bastante para tornar inviável a utilização do “writ” constitucional (RTJ 83/130 - RTJ 99/68 – RTJ 9/1149 – RTJ 100/90 - RTJ 100/537). O Supremo Tribunal Federal, ao pronunciar-se sobre esse específico aspecto do tema, deixou consignado que a discussão em torno do próprio significado de direito líquido e certo - que traduz requisito viabilizador da utilização do “writ” mandamental - veicula matéria de caráter eminentemente processual, mesmo porque a noção de liquidez, “que autoriza o ajuizamento do mandado de segurança, diz respeito aos fatos” (RTJ 134/681, Rel. p/ o acórdão Min. CARLOS VELLOSO – RTJ 171/326-327, Rel. Min. ILMAR GALVÃO - RE 195.192/RS, Rel. Min. MARCO AURÉLIO - RMS 23.443/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO - RMS 23.720/GO, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.): “O ‘direito líquido e certo’, pressuposto constitucional de admissibilidade do mandado de segurança, é requisito de ordem processual, atinente à existência de prova inequívoca dos fatos em que se basear a pretensão do impetrante e não à procedência desta, matéria de mérito (...).” (RTJ 133/1314, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE - grifei) “A formulação conceitual de direito líquido e certo, que constitui requisito de cognoscibilidade da ação de mandado de segurança, encerra (...) noção de conteúdo eminentemente processual.” (RTJ 134/169, Rel. p/ o acórdão Min. CELSO DE MELLO) Daí o incensurável magistério do saudoso CELSO RIBEIRO BASTOS (“Do Mandado de Segurança”, p. 15, 1978, Saraiva), para quem “(...) o direito líquido e certo é conceito de ordem processual, que exige a comprovação dos pressupostos fáticos da situação jurídica a preservar. Conseqüentemente, direito líquido e certo é ‘conditio sine qua non’ do conhecimento do mandado de segurança, mas não é ‘conditio per quam’ para a concessão da providência judicial”. Registre-se que esta Corte, em sucessivas decisões, deixou assinalado que o direito líquido e certo, apto a autorizar o ajuizamento da ação de mandado de segurança, é, tão-somente, aquele que concerne a fatos incontroversos, constatáveis, de plano, mediante prova literal inequívoca (RE 269.464/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO): “(...) direito líquido e certo é o que resulta de fato certo, e fato certo é aquele capaz de ser comprovado, de plano, por documento inequívoco.” (RTJ 83/130, Rel. Min. SOARES MUÑOZ - grifei) “O mandado de segurança labora em torno de fatos certos e como tais se entendem aqueles cuja existência resulta de prova documental inequívoca...”. (RTJ 83/855, Rel. Min. SOARES MUÑOZ - grifei) Não foi por outro motivo que a douta Procuradoria Geral da República, ao opinar pela denegação do presente mandado de segurança, destacou que “A ocupação noticiada nos autos tinha lastro em avença firmada entre as partes. O contrato de comodato firmado afasta, de imediato, qualquer alegação de abuso ou desmando na posse das terras. Os dados trazidos aos autos, ademais, parecem evidenciar uma realidade distinta da que é anunciada pelos impetrantes. Os ditos invasores eram trabalhadores rurais que prestavam serviços para os anteriores proprietários das terras, constituindo inúmeras relações com as empresas dos impetrantes, que iriam de arrendamentos a contratação trabalhista. É o que está nos depoimentos de fls. 188-191, juntados aos autos de reintegração de posse movida pelos impetrantes. Esse quadro inviabiliza qualquer conclusão que pudesse apontar conflito de natureza agrária, com motivação social” (fls. 600 - grifei). Não se pode perder de perspectiva, neste ponto, que a discussão em torno dos fatos subjacentes à existência, ou não, das supostas invasões que teriam ocorrido no imóvel em questão, introduz, no âmbito desta causa, situação de dúvida objetiva, que se revela incompatível com a via sumaríssima do mandado de segurança. Na realidade, o tema pertinente à influência que as supostas invasões teriam exercido no “processo de ampla utilização” desse bem rural envolve o exame necessário de matéria de fato, que se revela insuscetível de discussão em sede mandamental, especialmente quando se tem presente a circunstância, admitida nesta impetração, que o imóvel não teve sua exploração iniciada até 11 de setembro de 2002. É por essa razão que a doutrina acentua a incomportabilidade de qualquer dilação probatória no âmbito desse “writ” constitucional, que supõe - insista-se - a produção liminar, pelo impetrante, das provas literais pré-constituídas, destinadas a evidenciar a incontestabilidade do direito público subjetivo invocado pelo autor da ação mandamental. Por isso mesmo, adverte HUMBERTO THEODORO JÚNIOR (“O Mandado de Segurança Segundo a Lei n. 12.016, de 09 de agosto de 2009”, p. 19, item n. 9, 2009, Forense), que “O que importa não é a maior ou menor complexidade da tese jurídica, mas a prova pré- -constituída (documental) do seu suporte fático. Se a demonstração do direito do impetrante estiver na dependência de investigação probatória, ainda a ser feita em juízo, o caso não é de mandado de segurança. Terá de ser resolvido pelas vias ordinárias” (grifei). A possibilidade dessa análise, na via do mandado de segurança, quando presente uma situação de controvérsia objetiva, tem sido rejeitada pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (RTJ 158/510-511, Rel. Min. MAURÍCIO CORRÊA - RTJ 168/163, Rel. Min. CELSO DE MELLO - MS 22.075/MT, Rel. Min. ILMAR GALVÃO – MS 22.077/RS, Rel. Min. MOREIRA ALVES – MS 22.150/CE, Rel. Min. CARLOS VELLOSO – MS 22.290/PR, Rel. Min. NÉRI DA SILVEIRA, v.g.). É que refoge, aos estreitos limites da ação mandamental, o exame de fatos despojados da necessária liquidez, pois o “iter” procedimental do mandado de segurança não comporta a possibilidade de instauração incidental de um momento de dilação probatória, consoante adverte a doutrina (ALFREDO BUZAID, “Do Mandado de Segurança”, vol. I/208, item n. 127, 1989, Saraiva) e proclama o magistério jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal: “Refoge, aos estreitos limites da ação mandamental, o exame de fatos despojados da necessária liquidez, pois o iter procedimental do mandado de segurança não comporta a possibilidade de instauração incidental de uma fase de dilação probatória. - A noção de direito líquido e certo ajusta-se, em seu específico sentido jurídico, ao conceito de situação que deriva de fato certo, vale dizer, de fato passível de comprovação documental imediata e inequívoca.” (MS 20.882/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno) “O exame de situações de fato controvertidas - como aquelas decorrentes de dúvida fundada sobre a extensão territorial do imóvel rural ou sobre o grau de produtividade fundiária - refoge ao âmbito da via processual do mandado de segurança, que não admite, ante a natureza especial e sumaríssima de que se reveste o ‘writ’ constitucional, a possibilidade de qualquer dilação probatória.” (RTJ 176/692-693, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno) Vê-se, pois, que a jurisprudência desta Suprema Corte tem advertido, em inúmeras decisões (RTJ 124/948, v.g.), que “O mandado de segurança não é meio idôneo para o exame de questões cujos fatos não sejam certos” (RTJ 142/782, Rel. Min. MOREIRA ALVES - grifei). Sendo assim, tendo em consideração o fato de que a situação exposta nesta causa não diverge dos precedentes ora referidos, e acolhendo, ainda, o douto parecer do eminente Procurador-Geral da República, denego o presente mandado de segurança. Arquivem-se os presentes autos. Publique-se. Brasília, 23 de março de 2010. Ministro CELSO DE MELLO Relator

Partes

Reqte.(s) : Municipio de Fortaleza

proc.(a/S)(Es) : Procurador-Geral do Municipio de Fortaleza

reqdo.(a/S) : Relatora do Mandado de Segurança Nº 2009.0014.9351-0 do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará

impte.(S) : Ministério Público do Estado do Ceará (em Favor de Hamlet Alves Araújo, Maria Miracy Rocha, Eduardo Henrique Sérgio Cordeiro e Maria Inêz Alves Paiva)

proc.(a/S)(Es) : Procurador-Geral de Justiça do Estado do Ceará

Publicação

DJe-057 DIVULG 29/03/2010 PUBLIC 30/03/2010

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