Acórdão nº 2009/0028809-8 de T2 - SEGUNDA TURMA
Número do processo | 2009/0028809-8 |
Data | 05 Abril 2011 |
Órgão | Segunda Turma (Superior Tribunal de Justiça do Brasil) |
RECURSO ESPECIAL Nº 1.123.876 - DF (2009⁄0028809-8)
RELATOR | : | MINISTRO MAURO CAMPBELL MARQUES |
RECORRENTE | : | D.D.T.D.D.F. |
PROCURADOR | : | E.A.M. E OUTRO(S) |
RECORRIDO | : | A.L.D.A.O. |
ADVOGADO | : | RONALD WANDERLEY MIGNONE |
EMENTA
ADMINISTRATIVO. TRÂNSITO. INFRAÇÃO ADMINISTRATIVA. EXCESSO DE VELOCIDADE. ESTADO DE NECESSIDADE. COMPROVAÇÃO NOS AUTOS. EFEITOS DA INFRAÇÃO ADMINISTRATIVA. AFASTAMENTO NA HIPÓTESE. POSSIBILIDADE.
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Tem-se hipótese em que o veículo do recorrido foi autuado por duas infrações de trânsito, consistentes ambas em excesso de velocidade. O condutor-recorrido não nega o cometimento das infrações, mas discute a aplicação das penalidades, sustentando que cometeu as irregularidades em estado de necessidade (pois levava a filha ao hospital em razão de queimaduras extremamente lesivas à saúde da criança).
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A parte recorrente aduz que a disciplina penal do estado de necessidade não é suficiente para afastar a incidência das penalidades, devendo prevalecer o interesse público geral, consubstanciado na proteção à vida e na garantia de trânsito em condições seguras. Alega-se, ainda, com base no art. 29, inc. VII, alíneas "a" a "d", do CTB, que mesmo os veículos destinados a socorro devem obedecer as regras de trânsito, razão por que os particulares não podem deixar de a elas se submeterem também.
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O estado de necessidade não é instituto inerente apenas ao Direito Penal; ao contrário, tem-se aí conceito ligado a todo o Direito Sancionador - inclusive nos ramos cível e administrativo.
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A figura do estado de necessidade liga-se à idéia de que não pode existir atentado ao Direito, ao justo, na conduta praticada a fim de salvaguardar bem jurídico de maior relevância que o bem jurídico maculado. A lógica é evidente: o ordenamento jurídico não pode deslegitimar conduta que é benéfica a bem jurídico a que ele próprio confere valor diferenciado (para mais).
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A legitimidade da conduta, neste caso, deve ser compreendida de forma abrangente, englobando tanto o aspecto penal, como os aspectos cível e administrativo.
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Tanto é assim que o Código Civil em vigor, na esteira do que já dispunha o Código Civil revogado, dispõe serem lícitos os atos praticados em perigo iminente, desde que obedecida a proporcionalidade (em seus três testes: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito).
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Frise-se: apesar de a sistemática estabelecida pelo art. 188, inc. II e p. ún., do novo Código Civil não afastar o dever de reparação quando a conduta for praticada em estado de necessidade, ainda assim é caso literal de ato lícito (observados os contornos do p. único do dispositivo).
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Na esfera administrativa, em razão da inexistência de codificação, não há dispositivo expresso sobre o instituto. Nada obstante, a construção de precedentes dos órgãos julgadores da Administração Pública e dos órgãos judiciais sempre foi no sentido do pleno reconhecimento e da real efetividade do estado de necessidade na seara administrativa.
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Neste sentido, por exemplo, não custa trazer à baila os casos de ação de improbidade administrativa ajuizadas em face de administradores que, após realizarem o recolhimento das contribuições, não procedem ao devido repasse à Previdência em razão da necessidade de alocação das quantias em prol do interesse público.
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Em tais hipóteses, esta Corte Superior, em reiterados precedentes, vem afastando a caracterização da improbidade administrativa por considerar configurado o estado de necessidade - da mesma forma como ocorre em relação aos arts. 2º, inc. I, da Lei n. 8.137⁄90 e 168-A do Código Penal -, embora o estado de necessidade não disponha de previsão expressa na legislação administrativa.
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Mais do que isto, conforme consta do acórdão recorrido, existe, no âmbito do Detran⁄DF (recorrente), entendimento segundo o qual,"nos casos de cometimento de infrações de trânsito em estado de necessidade, notadamente para atendimentos de urgências médicas, [deve ser] apresentada a Guia de Atendimento de Emergência (GAE)".
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Assim sendo, o próprio recorrente reconhece que o estado de necessidade é suficiente para excluir os efeitos das infrações de trânsito apuradas, mas condiciona o reconhecimento da excludente à apresentação da GAE - o que, por certo, viola o direito dos administrados de provarem, por quaisquer meios legítimos, a ocorrência do estado de necessidade, dada a atipicidade dos meios probatórios. Em resumo: o Detran⁄DF já possui orientação administrativa pela invocabilidade do estado de necessidade como causa excludente das infrações de trânsito, havendo apenas discussão quanto aos meios de prova.
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Não custa relembrar também os exemplos das grandes metrópoles, que, por conta da violência extrema, liberaram de controle por "pardais" alguns semáforos a partir de determinados horários, a fim justamente de impedir o perigo à vida dos cidadãos - medida preventiva a perigos eventuais.
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Há ainda o argumento referente ao princípio da proporcionalidade. Basta que se proceda ao raciocínio seguinte: apenas uma conduta foi realizada, ou seja, direção de veículo automotor a 83 km⁄h e 121 km⁄h, em vias cujas velocidades máximas são, respectivamente, 60 km⁄h e 70 km⁄h. Suponha-se que, desta conduta, tenha havido dois resultados: infração administrativa à legislação de trânsito (excesso de velocidade, como na espécie) - que, conseqüentemente, reclamaria sanção administrativa - e infração penal (e.g., lesão corporal culposa) - sancionável, em tese, por aplicação de reprimenda penal.
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Seria no mínimo, desarrazoado - a não dizer injusto -, admitir-se que o estado de necessidade se prestaria a excluir uma infração penal relativa à proteção do bem jurídico integridade física e, ao mesmo tempo, ser inservível para excluir uma infração administrativa, que protege abstratamente a segurança pública, em razão de uma conduta singular, realizada em tempo, modo e condições únicos.
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"Exige-se coerência e unidade de critérios, com obediência à segurança jurídica, de parte do Estado, quando pretende selecionar comportamentos proibidos e castigá-los. [...] A relação punitiva, na qual o Estado aparece com seus poderes e o indivíduo, a pessoa, não importa se física ou jurídica, com seus direitos em jogo, há de ser proporcional. [...] Um dos elementos que permite ao Judiciário o exame da proporcionalidade é, sem dúvida, a constatação...
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