Decisão da Presidência nº 389 de STF. Supremo Tribunal Federal, 20 de Noviembre de 2009

Número do processo389
Data20 Novembro 2009

DECISÃO: Trata-se de pedido de suspensão de tutela antecipada formulado pela União, com a finalidade de sustar os efeitos da decisão proferida pelo Desembargador Federal Mairan Maia, do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, que, nos autos do Agravo de Instrumento nº 2009.03.00.034848-0, deferiu o pedido de antecipação de tutela recursal, com a consequente determinação de que fosse oportunizada aos autores da Ação Ordinária nº 2009.61.00.021415-6, em curso perante o Juízo da 16ª Vara Federal da Subseção Judiciária de São Paulo, a participação no Exame Nacional do Ensino Médio - ENEM, em dia compatível com exercício da fé por eles professada, a ser fixado pelas autoridades responsáveis pela realização das provas, observando-se o mesmo grau de dificuldade das provas realizadas por todos os demais estudantes.

Segundo o relato da petição inicial, o Centro de Educação Religiosa Judaica e vinte e dois alunos secundaristas ajuizaram ação ordinária, com pedido de antecipação de tutela, em face da União e do Instituto Nacional de Estudos Anísio Teixeira (INEP), objetivando a designação de data alternativa para a realização das provas do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), que não coincidisse com o Shabat (do pôr-do-sol de sexta-feira até o pôr-do-sol de sábado) ou qualquer outro feriado religioso judaico (fls. 38-65).

Os autores afirmam, em síntese, que a designação de data alternativa para a realização das provas do ENEM constitui meio de efetivação do princípio da igualdade e do direito fundamental à liberdade religiosa.

O Juízo da 16ª Vara Federal da Subseção Judiciária de São Paulo indeferiu o pedido de tutela antecipada (fls. 196-199), sob o fundamento de que a designação de dias e horários alternativos para a realização de provas representaria o estabelecimento de regras especiais para um determinado grupo de candidatos em detrimento dos demais, com a consequente violação ao princípio da isonomia.

Sustentou, ademais, que o acolhimento da pretensão dos autores acarretaria dificuldades de ordem prática, haja vista que a fixação de datas distintas para a realização das provas implicaria quebra do dever de sigilo acerca de seu conteúdo.

Contra essa decisão, foi interposto agravo de instrumento, com pedido de antecipação de tutela recursal (fls. 20-33).

O Desembargador Federal Mairan Maia, do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, concedeu a tutela antecipada, por entender que a designação da data alternativa para a realização das provas do ENEM constituiria meio de efetivação do direito fundamental à liberdade de crença, prevista no art. 5º, VI, da Constituição.

O presente pedido de suspensão de tutela antecipada baseia-se em argumentos de lesão à ordem jurídica, em sua acepção jurídico-administrativa.

Afirma o requerente que a decisão impugnada traria graves consequências para a Administração Pública, tendo em vista que o concurso público se subordina aos princípios da legalidade, da vinculação ao edital e da isonomia.

Sustenta, ademais, que a realização das provas na data marcada (dias 5 e 6 de dezembro de 2009) não violaria o disposto no art. 5º, VI e VIII, da Constituição, pois a Administração não poderia criar, depois de publicado o edital, critérios de avaliação discriminada, seja de favoritismo ou de perseguição entre os candidatos, haja vista, inclusive, o dever de neutralidade estatal.

Alega, também, que a decisão impugnada comprometeria a normal condução dos procedimentos administrativos relativos ao ENEM, colocando-se em risco a ordem pública, em sua acepção jurídico-administrativa.

Segundo o requerente, se mantidos os efeitos da decisão, haveria um exame aplicado para mais de quatro milhões de candidatos e outro para vinte e dois alunos, o que comprometeria a credibilidade do ENEM.

Ressalta, ainda, que a questão de fundo da ação principal não diria respeito à garantia do direito fundamental à liberdade de consciência e crença, mas à preservação do dia de guarda, que, a depender da religião, poderia ser em qualquer dia da semana.

A decisão impugnada possuiria, portanto, potencial efeito multiplicador, haja vista a possibilidade de ser invocada por praticantes de outras religiões para se eximirem do cumprimento de obrigações a todos impostas, com evidentes riscos à ordem pública.

Decido.

A base normativa que fundamenta o instituto da suspensão (Leis nº 12.016/09, nº 8.437/92, nº 9.494/97 e art. 297 do RI-STF) permite que a Presidência do Supremo Tribunal Federal, a fim de evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas, suspenda a execução de decisões concessivas de segurança, de liminar ou de tutela antecipada, proferidas em única ou última instância, pelos tribunais locais ou federais, quando a discussão travada na origem for de índole constitucional.

Assim, é a natureza constitucional da controvérsia que justifica a competência do Supremo Tribunal Federal para apreciar o pedido de contracautela, conforme a pacificada jurisprudência desta Corte, destacando-se os seguintes julgados: Rcl-AgR nº 497, Rel.

Carlos Velloso, DJ 6.4.2001; SS-AgR nº 2.187, Rel.

Maurício Corrêa, DJ 21.10.2003; e SS nº 2.465, Rel.

Nelson Jobim, DJ 20.10

Na ação de origem, discute-se a interpretação e a aplicação dos arts. 5º, caput e VI, da Constituição.

Não há dúvida, portanto, de que a matéria discutida na origem reveste-se de índole constitucional.

Feitas essas considerações preliminares, passo à análise do pedido, o que faço apenas e tão somente com base nas diretrizes normativas que disciplinam as medidas de contracautela.

Ressalte-se, não obstante, que, na análise do pedido de suspensão de decisão judicial, não é vedado ao Presidente do Supremo Tribunal Federal proferir um juízo mínimo de delibação a respeito das questões jurídicas presentes na ação principal, conforme tem entendido a jurisprudência desta Corte, da qual se destacam os seguintes julgados: SS-AgR 846, Rel.

Sepúlveda Pertence, DJ 29.5.96; SS-AgR 1.272, Rel.

Carlos Velloso, DJ 18.5.2001.

O mencionado juízo de delibação dos elementos da causa não se revela apenas possível, mas necessário à aferição da existência de lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas, pois, como bem salientou o Ministro Sepúlveda Pertence, (...) ainda que não se cuide de recurso, o deferimento do pedido de suspensão de segurança não prescinde de todo da delibação do mérito da controvérsia subjacente à decisão concessiva da liminar ou do mandado de segurança.

Com efeito, não obstante suas peculiaridades, a suspensão de segurança é medida cautelar: visa, afinal de contas, a salvaguardar dos riscos da execução provisória do julgado os qualificados interesses públicos - os relativos à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas - que a justificam, com vistas à eventual reforma da decisão mediante o recurso cabível.

Por isso, tenho acentuado: se, de plano, se evidencia a inviabilidade do recurso interposto ou anunciado, perde sentido a suspensão da segurança concedida (...) (SS 1.001, DJ 21.03.1996).

Nesse sentido, não há dúvida de que o direito fundamental à liberdade religiosa (art. 5º, VI, da Constituição) impõe ao Estado o dever de respeitar as escolhas religiosas dos cidadãos e o de não se imiscuir na organização interna das entidades religiosas.

Trata-se, portanto, do dever de neutralidade axiológica do Estado diante do fenômeno religioso (princípio da laicidade), revelando-se proscrita toda e qualquer atividade do ente público que favoreça determinada confissão religiosa em detrimento das demais, conforme estabelecido no art. 19, I, da Constituição.

É certo, porém, que a neutralidade axiológica por parte do Estado não se confunde com a idéia de indiferença estatal.

Em alguns casos, imperativos fundados na própria liberdade religiosa impõem ao ente público um comportamento positivo, que tem a finalidade de afastar barreiras ou sobrecargas que possam impedir ou dificultar determinadas opções em matéria de fé.

No caso, verifica-se, contudo, que a requerente logrou comprovar que a fixação de data alternativa para a realização das provas do ENEM coloca em risco a ordem pública, em sua acepção jurídico-administrativa.

Em primeiro lugar, não obstante a determinação judicial no sentido de que as provas aplicadas aos autores da ação principal possuam o mesmo grau de dificuldade das aplicadas aos demais candidatos, não há dúvida sobre a inexistência de critérios objetivos que possam indicar, de forma cabal, se duas provas possuem grau de dificuldade equivalente ou diverso.

Tal fato ensejaria as mais diversas indagações acerca de suposto favorecimento dos autores, comprometendo ainda mais a credibilidade do ENEM, já prejudicada em virtude do anterior vazamento das provas, conforme noticiado nos mais diversos meios de imprensa.

Ademais, cumpre ressaltar a existência de outras confissões religiosas, as quais possuem dias de guarda diversos do dos autores.

Assim, a fixação de data alternativa apenas para um determinado grupo religioso configuraria, em mero juízo de delibação, violação ao princípio da isonomia e ao dever de neutralidade do Estado diante do fenômeno religioso.

Tal fato atesta, ainda, o efeito multiplicador da decisão impugnada, haja vista que, se os demais grupos religiosos existentes em nosso país também fizessem valer as suas pretensões, tornar-se-ia inviável a realização de qualquer concurso, prova ou avaliação de âmbito nacional, ante a variedade de pretensões, que conduziriam à formulação de um sem-número de tipos de prova.

Nesse ponto, cumpre transcrever a seguinte reflexão do Ministro Sepúlveda Pertence, quando do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.806, DJ 23.4.2003: Pergunto: seria constitucional uma lei de iniciativa do Poder Executivo que subordinasse assim o andamento da Administração Pública aos dias de guarda religiosos? Seria razoável, malgrado fosse a iniciativa do Governador, acaso crente de alguma fé religiosa que faz seus cultos na segunda-feira à tarde, que todos esses crentes teriam direito a não trabalhar na segunda-feira e pedir reserva de outra hora para o seu trabalho? É desnecessário à conclusão, mas considero realmente violados, no caso princípios substanciais, a partir do due process substancial e do caráter laico da República.

Verifica-se, pois, que a providência determinada pela decisão impugnada, além de se revelar, a priori, contrária ao dever do Estado de se portar de forma neutra perante o fenômeno religioso, coloca severos óbices à atuação da Administração Pública.

Nesse sentido, cumpre registrar que a jurisprudência deste Supremo Tribunal Federal tem adotado, para fixar o que se deve entender por ordem pública no pedido de suspensão, entendimento formado ainda no âmbito do Tribunal Federal de Recursos a partir do julgamento da SS 4.405, Rel.

Néri da Silveira.

Segundo esse entendimento, estaria inserto no conceito de ordem pública o de ordem administrativa em geral, concebida esta como a normal execução dos serviços públicos, o regular andamento das obras públicas e o devido exercício das funções da Administração pelas autoridades constituídas.

Por fim, saliente-se que a União juntou aos autos, às fls. 225-271, cópia de ofício expedido pelo Ministério da Educação, segundo o qual, na inscrição para o ENEM, foi ofertada a opção de atendimento a necessidades especiais, com a finalidade de garantir a possibilidade de participação de pessoas com limitações em virtude de convicção religiosa ou que se encontram reclusas em hospitais e penitenciárias.

Afirma-se, no referido ofício, que todos que realizaram suas inscrições no ENEM e solicitaram atendimento especial por motivos religiosos terão suas solicitações atendidas.

No caso dos Adventistas do Sétimo Dia, a prova do sábado, dia 03 (três) de outubro próximo será realizada após o pôr-do-sol (fl. 227).

Tal providência (início da prova após o pôr-do-sol) revela-se aplicável não apenas aos adventistas do sétimo dia, mas também àqueles que professam a fé judaica e respeitam a tradição do Shabat.

Em uma análise preliminar, parece-me medida razoável, apta a propiciar uma melhor acomodação dos interesses em conflito.

Ante o exposto, defiro o pedido para suspender a decisão proferida pelo Desembargador Federal Mairan Maia, do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, nos autos do Agravo de Instrumento nº 2009.03.00.034848-0.

Comunique-se com urgência.

Publique-se.

Brasília, 20 de novembro de 2009.

Ministro GILMAR MENDES Presidente 1 1

Partes

Reqte.(s) : Governo da SuÍÇa

adv.(a/S) : J.

J.

Safe Carneiro

extdo.(a/S) : Mike Niggli

adv.(a/S) : Jairo Fernando MecabÔ

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