Acórdão nº REsp 827962 / RS de T4 - QUARTA TURMA

Data21 Junho 2011
Número do processoREsp 827962 / RS
ÓrgãoQuarta Turma (Superior Tribunal de Justiça do Brasil)

RECURSO ESPECIAL Nº 827.962 - RS (2006⁄0057725-5) (f)

RELATOR : MINISTRO JOÃO OTÁVIO DE NORONHA
RECORRENTE : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL
RECORRIDO : C W E OUTRO
ADVOGADOS : CLÁUDIO TESSARI
ROGER CAETANO E OUTRO

EMENTA

CIVIL. RELAÇÃO HOMOSSEXUAL. UNIÃO ESTÁVEL. RECONHECIMENTO. EMPREGO DA ANALOGIA.

  1. "A regra do art. 226, § 3º da Constituição, que se refere ao reconhecimento da união estável entre homem e mulher, representou a superação da distinção que se fazia anteriormente entre o casamento e as relações de companheirismo. Trata-se de norma inclusiva, de inspiração anti-discriminatória, que não deve ser interpretada como norma excludente e discriminatória, voltada a impedir a aplicação do regime da união estável às relações homoafetivas".

  2. É juridicamente possível pedido de reconhecimento de união estável de casal homossexual, uma vez que não há, no ordenamento jurídico brasileiro, vedação explícita ao ajuizamento de demanda com tal propósito. Competência do juízo da vara de família para julgar o pedido.

  3. Os arts. e da Lei de Introdução do Código Civil autorizam o julgador a reconhecer a união estável entre pessoas de mesmo sexo.

  4. A extensão, aos relacionamentos homoafetivos, dos efeitos jurídicos do regime de união estável aplicável aos casais heterossexuais traduz a corporificação dos princípios constitucionais da igualdade e da dignidade da pessoa humana.

  5. A Lei Maria da Penha atribuiu às uniões homoafetivas o caráter de entidade familiar, ao prever, no seu artigo 5º, parágrafo único, que as relações pessoais mencionadas naquele dispositivo independem de orientação sexual.

  6. Recurso especial desprovido.

    ACÓRDÃO

    Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da QUARTA TURMA do Superior Tribunal de Justiça, prosseguindo no julgamento após o voto-vista do Sr. Ministro Raul Araújo, que negou provimento ao recurso, acompanhando o Relator, e os votos da M.M.I.G. e do Ministro Luis Felipe

    Salomão, no mesmo sentido, por unanimidade, negar provimento ao recurso especial nos termos do voto do Sr. Ministro Relator.Os Srs. Ministros Luis Felipe Salomão, Raul Araújo (voto-vista) e M.I.G. votaram com o Sr. Ministro Relator.

    Não participou do julgamento o Sr. Ministro Antonio Carlos Ferreira.

    Brasília, 21 de junho de 2011.(data de julgamento)

    MINISTRO JOÃO OTÁVIO DE NORONHA

    Relator

    RECURSO ESPECIAL Nº 827.962 - RS (2006⁄0057725-5)

    RELATOR : MINISTRO JOÃO OTÁVIO DE NORONHA
    RECORRENTE : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL
    RECORRIDO : C W E OUTRO
    ADVOGADO : ROGER CAETANO E OUTRO

    RELATÓRIO

    O EXMO. SR. MINISTRO JOÃO OTÁVIO DE NORONHA:

    Trata-se de recurso especial interposto pelo MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL nos autos de ação declaratória de reconhecimento de união estável, com fundamento no art. 105, inciso III, alíneas "a" e "c", da Constituição Federal, contra acórdão assim ementado:

    "AÇÃO DECLARATÓRIA. RECONHECIMENTO. UNIÃO ESTÁVEL. CASAL HOMOSSEXUAL. PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS. CABIMENTO.

    A ação declaratória é o instrumento jurídico adequado para reconhecimento da existência de união estável entre parceria homoerótica, desde que afirmados e provados os pressupostos próprios daquela entidade familiar.

    A sociedade moderna, mercê da evolução dos costumes e apanágio das decisões judiciais, sintoniza com a intenção dos casais homoafetivos em abandonar os nichos da segregação e repúdio, em busca da normalização de seu estado e igualdade às parelhas matrimoniadas.

    EMBARGOS INFRINGENTES ACOLHIDOS, POR MAIORIA" (fls. 262⁄310).

    Os embargos infringentes que deram origem a tal decisão foram aviados em razão de acórdão proferido anteriormente em recurso de apelação, em sentido diametralmente oposto e em cuja ementa se lê:

    "APELAÇÃO CÍVEL. UNIÃO HOMOSSEXUAL. IMPOSSIBILIDADE DE EQUIPARAÇÃO À UNIÃO ESTÁVEL.

    O relacionamento homossexual de dois homens não se constitui em união estável, de modo a merecer a proteção do Estado como entidade familiar, pois é claro o § 3º do art. 226 da Constituição Federal no sentido da diversidade de sexos, homem e mulher, como também está na Lei 8.971, de 29 de dezembro de 1994, bem como na Lei 9.278, de 10 de maio de 1996. Apelo provido, em parte, por maioria" (fls. 199⁄203).

    Sustenta a parte recorrente, no especial, as seguintes teses:

    1. nulidade absoluta do processo a partir da sentença, uma vez que tal decisão foi proferida por juízo incompetente (Vara de Família e Sucessões) quando deveria ter sido prolatada por juiz titular de Vara Cível, já que se trata de sociedade de fato, e não de união estável. Sob esse aspecto suscita a ocorrência de dissídio pretoriano; e

    2. violação dos arts. 1.363 do Código Civil de 1916; 2º, III, da Lei n. 8.971⁄94; da Lei n. 9.278⁄96; e da Lei de Introdução ao Código Civil, pois, segundo aduz, o acórdão recorrido, ao definir a união homossexual como união estável, utilizou-se de processo analógico em hipótese em que não lhe era permitido. Defende a ocorrência de divergência jurisprudencial entre o acórdão impugnado e julgados desta Corte e de outros Tribunais que prelecionam que "a união homossexual caracteriza, no máximo, a sociedade de fato".

    As contrarrazões foram apresentadas (fls. 370⁄399).

    Admitido o recurso na origem (fls. 421⁄423), ascenderam os autos ao STJ.

    O Ministério Público Federal opina pelo não conhecimento do recurso especial (fls. 429⁄431).

    É o relatório.

    RECURSO ESPECIAL Nº 827.962 - RS (2006⁄0057725-5)

    EMENTA

    CIVIL. RELAÇÃO HOMOSSEXUAL. UNIÃO ESTÁVEL. RECONHECIMENTO. EMPREGO DA ANALOGIA.

  7. "A regra do art. 226, § 3º da Constituição, que se refere ao reconhecimento da união estável entre homem e mulher, representou a superação da distinção que se fazia anteriormente entre o casamento e as relações de companheirismo. Trata-se de norma inclusiva, de inspiração anti-discriminatória, que não deve ser interpretada como norma excludente e discriminatória, voltada a impedir a aplicação do regime da união estável às relações homoafetivas".

  8. É juridicamente possível pedido de reconhecimento de união estável de casal homossexual, uma vez que não há, no ordenamento jurídico brasileiro, vedação explícita ao ajuizamento de demanda com tal propósito. Competência do juízo da vara de família para julgar o pedido.

  9. Os arts. e da Lei de Introdução do Código Civil autorizam o julgador a reconhecer a união estável entre pessoas de mesmo sexo.

  10. A extensão, aos relacionamentos homoafetivos, dos efeitos jurídicos do regime de união estável aplicável aos casais heterossexuais traduz a corporificação dos princípios constitucionais da igualdade e da dignidade da pessoa humana.

  11. A Lei Maria da Penha atribuiu às uniões homoafetivas o caráter de entidade familiar, ao prever, no seu artigo 5º, parágrafo único, que as relações pessoais mencionadas naquele dispositivo independem de orientação sexual.

  12. Recurso especial desprovido.

    VOTO

    O EXMO. SR. MINISTRO JOÃO OTÁVIO DE NORONHA:

    Encontram-se presentes os pressupostos necessários à admissão do recurso.

    Cuida-se de ação declaratória de reconhecimento de união estável de pessoas do mesmo sexo.

    Os autores, ora recorridos, alegam manter, desde 1990, relação de afeto pacífica e duradoura, contribuindo ambos financeiramente para manutenção do domicílio onde residem, em um verdadeiro contexto de família. Declaram, expressamente, a convivência e o interesse em deixar um para o outro todo o patrimônio de que possam dispor entre si, incluindo benefícios previdenciários.

    O juiz singular julgou procedente o pedido dos autores (fls. 143⁄155), asseverando que "os pressupostos da união estável antes mencionados encontram-se demonstrados pelos autores, ensejando a possibilidade de reconhecer a procedência do pedido com base nos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da igualdade".

    A Corte a quo, por maioria, deu parcial provimento à apelação do Ministério Público, entendendo que o relacionamento homossexual constitui-se em sociedade de fato.

    Subsequentemente, no julgamento dos embargos infringentes, o Tribunal de origem, após longo debate, entendeu que o pedido era juridicamente possível e reconheceu a união estável entre parceiros homoeróticos.

    O objeto da controvérsia suscitada no presente recurso especial cinge-se à discussão sobre a possibilidade de reconhecimento de união estável entre pessoas do mesmo sexo.

    Registre-se, inicialmente, que não há no ordenamento jurídico brasileiro nenhuma norma que acolha as relações afetivas entre pessoas do mesmo sexo. Da mesma forma, não há, também, nenhuma que proíba esse tipo de relacionamento.

    Com efeito, a própria Constituição Federal reconhece a união estável entre pessoas de sexos diferentes e ignora, sem no entanto vetar, as uniões homoafetivas, apenas fazendo menção, em seu artigo 226 e §§, a exemplos de entidades familiares consagradas pelo costume social, visando a defesa do princípio da pluralidade familiar.

    O Código Civil de 2002, em seu art. 1.723, é norma de repetição do texto constitucional, disciplinando a união estável entre homem e mulher e nada mencionando sobre aquela composta por pessoas do mesmo sexo.

    Os arts. 1.363 do Código Civil de 1916; 2º, III, da Lei n. 8.971⁄94; e da Lei n. 9.278⁄96, tidos por violados pelo Ministério Público Federal, limitam-se a definir sociedade, bem como a resguardar o direito dos companheiros a alimentos e à sucessão e a estabelecer a possibilidade de união estável entre homem e mulher que preencham as condições impostas pela lei, quais sejam, convivência pública, duradoura, contínua. Também não se referem às uniões entre os homossexuais.

    Nos dispositivos supracitados, como se vê, utilizados pelo recorrente para fundamentar seu apelo, inexiste proibição taxativa ou implícita em reconhecer como entidade familiar a eventual união afetiva entre dois homens ou duas mulheres. Por isso, ditos normativos legais devem ser entendidos como verdadeiras cláusulas de garantia para as situações neles previstas; não...

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