Acórdão nº REsp 1085646 / RS de S2 - SEGUNDA SEÇÃO

Número do processoREsp 1085646 / RS
Data11 Maio 2011
ÓrgãoSegunda Seção (Superior Tribunal de Justiça do Brasil)

RECURSO ESPECIAL Nº 1.085.646 - RS (2008⁄0192762-5)

RELATORA : MINISTRA NANCY ANDRIGHI
RECORRENTE : F J F
ADVOGADO : NÁDIA LUCY KINCZEL CAETANO E OUTRO(S)
RECORRIDO : R D C
ADVOGADO : MARIA LUIZA PEREIRA DE ALMEIDA

EMENTA

DIREITO CIVIL. FAMÍLIA. AÇÃO DE RECONHECIMENTO E DISSOLUÇÃO DE UNIÃO AFETIVA ENTRE PESSOAS DO MESMO SEXO CUMULADA COM PARTILHA DE BENS E PEDIDO DE ALIMENTOS. PRESUNÇÃO DE ESFORÇO COMUM.

  1. Despida de normatividade, a união afetiva constituída entre pessoas de mesmo sexo tem batido às portas do Poder Judiciário ante a necessidade de tutela. Essa circunstância não pode ser ignorada, seja pelo legislador, seja pelo julgador, os quais devem estar preparados para regular as relações contextualizadas em uma sociedade pós-moderna, com estruturas de convívio cada vez mais complexas, a fim de albergar, na esfera de entidade familiar, os mais diversos arranjos vivenciais.

  2. Os princípios da igualdade e da dignidade humana, que têm como função principal a promoção da autodeterminação e impõem tratamento igualitário entre as diferentes estruturas de convívio sob o âmbito do direito de família, justificam o reconhecimento das parcerias afetivas entre homossexuais como mais uma das várias modalidades de entidade familiar.

  3. O art. 4º da LICC permite a equidade na busca da Justiça. O manejo da analogia frente à lacuna da lei é perfeitamente aceitável para alavancar, como entidades familiares, as uniões de afeto entre pessoas do mesmo sexo. Para ensejar o reconhecimento, como entidades familiares, é de rigor a demonstração inequívoca da presença dos elementos essenciais à caracterização de entidade familiar diversa e que serve, na hipótese, como parâmetro diante do vazio legal – a de união estável – com a evidente exceção da diversidade de sexos.

  4. Demonstrada a convivência, entre duas pessoas do mesmo sexo, pública, contínua e duradoura, estabelecida com o objetivo de constituição de família, sem a ocorrência dos impedimentos do art. 1.521 do CC⁄02, com a exceção do inc. VI quanto à pessoa casada separada de fato ou judicialmente, haverá, por consequência, o reconhecimento dessa parceria como entidade familiar, com a respectiva atribuição de efeitos jurídicos dela advindos.

  5. Comprovada a existência de união afetiva entre pessoas do mesmo sexo, é de se reconhecer o direito do companheiro à meação dos bens adquiridos a título oneroso ao longo do relacionamento, mesmo que registrados unicamente em nome de um dos parceiros, sem que se exija, para tanto, a prova do esforço comum, que nesses casos é presumida.

  6. Recurso especial não provido.

    ACÓRDÃO

    Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas constantes dos autos, prosseguindo o julgamento, após o voto-vista do Sr. Min. Raul Araújo acompanhando o voto da Sra. Ministra Relatora e negando provimento ao recurso especial, por maioria, negar provimento ao recurso especial, nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora, vencido o Sr. Ministro Vasco Della Giustina, que votou em sessão anterior dando provimento ao recurso. Declararão voto os Srs. Ministros Raul Araújo, I.G. e S.B., que retificou voto proferido em sessão anterior, para acompanhar o voto da Sra. Ministra Relatora. Os Srs. Ministros João Otávio de Noronha, Sidnei Beneti, Luis Felipe Salomão, Raul Araújo (voto-vista), Paulo de Tarso Sanseverino, M.I.G. e Aldir Passarinho Junior votaram com a Sra. Ministra Relatora.

    Brasília (DF), 11 de maio de 2011(Data do Julgamento).

    MINISTRO MASSAMI UYEDA

    Presidente

    MINISTRA NANCY ANDRIGHI

    Relatora

    RECURSO ESPECIAL Nº 1.085.646 - RS (2008⁄0192762-5)

    RECORRENTE : F J F
    ADVOGADO : NÁDIA LUCY KINCZEL CAETANO E OUTRO(S)
    RECORRIDO : R D C
    ADVOGADO : MARIA LUIZA PEREIRA DE ALMEIDA

    Relatora: MINISTRA NANCY ANDRIGHI

    RELATÓRIO

    Cuida-se de recurso especial interposto por F. J. F., com fundamento nas alíneas “a” e “c” do permissivo constitucional, contra acórdão exarado pelo TJ⁄RS.

    Ação (inicial às fls. 2⁄8): de reconhecimento e dissolução de sociedade de fato entre pessoas do mesmo sexo cumulada com divisão de patrimônio e pedido de alimentos, ajuizada por R. D. C. em face de F. J. F.

    O autor sustenta, como causa de pedir, que conviveu em alegada “união estável” com F. J. F., do início do ano de 1993 até o final do ano de 2004. Relata que na constância da aludida união foram adquiridos, a título oneroso, em nome apenas de F. J. F., diversos bens, móveis e imóveis, que especifica na inicial, em relação aos quais pleiteia a partilha.

    Pugna, ainda, pela fixação de alimentos, considerada a sua dependência econômica na constância da união.

    Contestação: apresentada às fls. 137⁄145.

    Sentença (fls. 342⁄351): julgou procedente o pedido para: (i) reconhecer a existência de “união estável” entre as partes pelo período de 1994 a 2004; (ii) partilhar os bens adquiridos na constância da relação, os quais especifica às fls. 350⁄351; (iii) condenar F. J. F. a pagar alimentos a R. D. C., no patamar de R$ 1.000,00, até a data da efetiva partilha dos bens.

    Embargos de declaração: opostos por F. J. F. (fls. 354⁄355), foram acolhidos, para fixar a data da citação como termo inicial dos alimentos, além de condenar F. J. F. ao pagamento das custas e dos honorários advocatícios, fixando-os em “15% do valor de uma anualidade de alimentos” (fl. 363).

    Acórdão (fls. 405⁄425): não conheceu do apelo interposto por R. D. C. e deu parcial provimento ao recurso de apelação interposto por F. J. F., para afastar a obrigação deste de prestar alimentos ao ex-companheiro. Segue a ementa:

    APELAÇÃO CÍVEL. UNIÃO HOMOAFETIVA. RECONHECIMENTO E DISSOLUÇÃO DE UNIÃO ESTÁVEL. PARTILHA DE BENS E ALIMENTOS. COMPETÊNCIA DAS VARAS DE FAMÍLIA. INICIAL NOMINADA ERRONEAMENTE DE SOCIEDADE DE FATO. NULIDADE INOCORRENTE. PRELIMINAR REJEITADA. Não é nulo o processo e a sentença quando se constata ter havido apenas mero equívoco terminológico no nome dado à ação, sendo clara a intenção do autor de buscar o reconhecimento de uma 'união estável', e não mera 'sociedade de fato'. Versando a controvérsia sobre direito de família, a competência funcional é das Varas de Famílias.

    RECONHECIMENTO E DISSOLUÇÃO DE UNIÃO ESTÁVEL. A união homoafetiva é fato social que se perpetua no tempo, não se podendo admitir a exclusão do abrigamento legal, impondo prevalecer a relação de afeto exteriorizada ao efeito de efetiva constituição de família, sob pena de afronta ao direito pessoal individual à vida, com violação dos princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana.

    Diante da prova contida nos autos, mantém-se o reconhecimento proferido na sentença da união estável entre as partes, já que entre os litigantes existiu por mais de dez anos forte relação de afeto com sentimentos e envolvimentos emocionais, numa convivência more uxoria, pública e notória, com comunhão de vida e mútua assistência econômica, sendo a partilha dos bens mera conseqüência.

    ALIMENTOS. DESCABIMENTO. Revelando-se o requerente pessoa jovem e sem qualquer impedimento ao trabalho, é de se indeferir o pensionamento, impondo-se a efetiva reinserção no mercado de trabalho, como, aliás, indicado nos autos (fl. 405 – com destaques no original).

    Embargos de declaração: interpostos por F. J. F. (fls. 428⁄429), foram rejeitados (fls. 432⁄433).

    Recurso especial (fls. 440⁄447): interposto sob alegação de ofensa aos arts. e , da Lei n.º 9.278, de 1996; 1.363 do CC⁄16; e 1.723 do CC⁄02; além de dissídio jurisprudencial.

    Recurso extraordinário: interposto às fls. 451⁄454.

    Contrarrazões: apresentadas às fls. 459⁄465.

    Prévio Juízo de Admissibilidade (fls. 487⁄489): o TJ⁄RS admitiu o recurso especial, determinando a remessa dos autos ao STJ.

    Parecer do MPF (fls. 494⁄502): da lavra do i. Subprocurador-Geral da República Henrique Fagundes Filho, pelo provimento do recurso especial.

    Vieram conclusos os autos, com parecer, em 13.12.2010.

    É o relatório.

    RECURSO ESPECIAL Nº 1.085.646 - RS (2008⁄0192762-5)

    RELATORA : MINISTRA NANCY ANDRIGHI
    RECORRENTE : F J F
    ADVOGADO : NÁDIA LUCY KINCZEL CAETANO E OUTRO(S)
    RECORRIDO : R D C
    ADVOGADO : MARIA LUIZA PEREIRA DE ALMEIDA

    VOTO

    A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relatora):

    1. Da delimitação da lide e de seus contornos fáticos.

      A matéria controvertida refere-se à possibilidade ou não de que sejam conferidos efeitos – marcadamente patrimoniais – idênticos aos do reconhecimento e dissolução de união estável às parcerias afetivas entre pessoas do mesmo sexo.

      O TJ⁄RS reconheceu a existência de “união estável” entre F. J. F. e R. D. C., com base nos seguintes contornos fáticos:

      No caso em apreço, não há qualquer dúvida de que houve vida em comum, laços afetivos, coabitação duradoura e com solução de continuidade, divisão de despesas e aquisição de patrimônio, não se podendo, assim, negar efeitos jurídicos à união homoafetiva entretida.

      (...)

      Embora o apelante procure negar a existência da união estável, tenho que o reconhecimento da entidade familiar decorreu do quadro probatório existente nos autos, extremamente farto.

      Quanto a coabitação conjunta e duradoura das partes, o próprio apelante, em seu depoimento pessoal de fl. 252, confirma que conheceu o autor no ano de 1994, e que ele passou a morar com o apelante em um apartamento alugado na Rua dos Andradas, nesta Capital.

      Então desde essa época até o término da relação, no final de 2004, embora tenham trocado de residência várias vezes, as partes sempre moraram juntas, conforme se observa do afirmado pelo apelante (fls. 252-253) e pelas testemunhas ouvidas em juízo (fls. 417⁄418).

      (...)

      A prova documental: fotografias acostadas nos autos, as viagens que efetuaram juntos, o fato do autor ser dependente do cartão de crédito do réu (fls. 26 a 28 e 30), os cartões comemorativos trocados, a circunstância do autor ser beneficiário de um seguro de vida realizado pelo réu, no Unibanco (fl. 115), as várias empresas criadas em nome dos dois, entre outros, também é no sentido de que as partes...

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