Acórdão nº REsp 930460 / PR de T3 - TERCEIRA TURMA

Data19 Maio 2011
Número do processoREsp 930460 / PR
ÓrgãoTerceira Turma (Superior Tribunal de Justiça do Brasil)

RECURSO ESPECIAL Nº 930.460 - PR (2007⁄0044989-0)

RELATORA : MINISTRA NANCY ANDRIGHI
RECORRENTE : L M DE F
ADVOGADO : VANESSA CRISTINA CRUZ SCHEREMETA E OUTRO(S)
RECORRIDO : S L - ESPÓLIO
REPR. POR : B L - INVENTARIANTE
ADVOGADO : PATRÍCIA TOURINHO BERALDI E OUTRO

EMENTA

CIVIL. RECURSO ESPECIAL. FAMÍLIA. AÇÃO DE RECONHECIMENTO E DISSOLUÇÃO DE UNIÃO AFETIVA ENTRE PESSOAS DO MESMO SEXO POST MORTEM CUMULADA COM PEDIDO DE PARTILHA DE BENS. PRESUNÇÃO DE ESFORÇO COMUM.

  1. Despida de normatividade, a união afetiva constituída entre pessoas de mesmo sexo tem batido às portas do Poder Judiciário ante a necessidade de tutela. Essa circunstância não pode ser ignorada, seja pelo legislador, seja pelo julgador, que devem estar preparados para regular as relações contextualizadas em uma sociedade pós-moderna, com estruturas de convívio cada vez mais complexas, a fim de albergar, na esfera de entidade familiar, os mais diversos arranjos vivenciais.

  2. Os princípios da igualdade e da dignidade humana, que têm como função principal a promoção da autodeterminação e impõem tratamento igualitário entre as diferentes estruturas de convívio sob o âmbito do direito de família, justificam o reconhecimento das parcerias afetivas entre homossexuais como mais uma das várias modalidades de entidade familiar.

  3. O art. 4º da LICC permite a equidade na busca da Justiça. O manejo da analogia frente à lacuna da lei é perfeitamente aceitável para alavancar, como entidades familiares, as uniões de afeto entre pessoas do mesmo sexo. Para ensejar o reconhecimento, como entidades familiares, de referidas uniões patenteadas pela vida social entre parceiros homossexuais, é de rigor a demonstração inequívoca da presença dos elementos essenciais à caracterização de entidade familiar diversa e que serve, na hipótese, como parâmetro diante do vazio legal – a de união estável – com a evidente exceção da diversidade de sexos.

  4. Demonstrada a convivência, entre duas pessoas do mesmo sexo, pública, contínua e duradoura, estabelecida com o objetivo de constituição de família, sem a ocorrência dos impedimentos do art. 1.521 do CC⁄02, com a exceção do inc. VI quanto à pessoa casada separada de fato ou judicialmente, haverá, por consequência, o reconhecimento dessa parceria como entidade familiar, com a respectiva atribuição de efeitos jurídicos dela advindos.

  5. Comprovada a existência de união afetiva entre pessoas do mesmo sexo, é de se reconhecer o direito do companheiro sobrevivente à meação dos bens adquiridos a título oneroso ao longo do relacionamento, mesmo que registrados unicamente em nome do falecido, sem que se exija, para tanto, a prova do esforço comum, que nesses casos, é presumida.

  6. Recurso especial provido.

    ACÓRDÃO

    Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas constantes dos autos, prosseguindo no julgamento, após o voto-vista do Sr. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino e a retificação dos votos dos Srs. Ministros Massami Uyeda e S.B., por unanimidade, dar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Massami Uyeda, S.B. e Paulo de Tarso Sanseverino votaram com a Sra. Ministra Relatora.

    Brasília (DF), 19 de maio de 2011(Data do Julgamento)

    MINISTRA NANCY ANDRIGHI

    Relatora

    RECURSO ESPECIAL Nº 930.460 - PR (2007⁄0044989-0)

    RECORRENTE : L M DE F
    ADVOGADO : VANESSA CRISTINA CRUZ SCHEREMETA E OUTRO(S)
    RECORRIDO : S L - ESPÓLIO
    REPR. POR : B L - INVENTARIANTE
    ADVOGADO : PATRÍCIA TOURINHO BERALDI E OUTRO

    Relatora: MINISTRA NANCY ANDRIGHI

    RELATÓRIO

    Cuida-se de recurso especial interposto por L. M. DE F., com fundamento nas alíneas “a” e “c” do permissivo constitucional, contra acórdão exarado pelo TJ⁄PR.

    Ação (inicial às fls. 2⁄20): “declaratória de união estável c⁄c pedido de partilha”, ajuizada por L. M. DE F., em face do ESPÓLIO DE S. L.

    A autora sustenta, como causa de pedir, que conviveu em alegada “união estável” com S. L., de 1996 até a data do óbito da companheira, ocorrido em 23.1.2003. Esclarece que

    em momentos difíceis da vida de S., em especial, quando ela restou acometida por doença grave que demandou a realização de um transplante de órgão, a autora sempre esteve ao seu lado, ministrando-lhe os cuidados indispensáveis à recuperação de sua saúde, bem como a assistência e apoio afetivos (fl. 3 – com adaptações).

    Assinala que se tratava de uma relação “duradoura, não efêmera, portanto, baseada em recíproca colaboração e solidariedade” (fl. 16).

    Aduz que, com a morte da companheira, a representante do espólio e irmã da falecida, ao ingressar, juntamente com a outra irmã, com o pedido de arrolamento dos bens deixados por S. L., ignorou a existência da aludida união, bem como a vontade manifestada pela falecida, perante a família, de deixar para a companheira uma chácara adquirida na constância da relação. Por isso, formulou pedido incidental nos autos do arrolamento, para fins de reserva da meação do patrimônio amealhado no período da convivência, consistente em um lote de terreno (a mencionada chácara) e direitos sobre a aquisição de um apartamento, ambos descritos na inicial. O pedido foi deferido, nos autos do arrolamento, para determinar a reserva dos dois bens indicados (fl. 26).

    Pleiteia, dessa forma, o reconhecimento de “união estável homoafetiva, por equiparação”, bem como a declaração do “direito da requerente na partilha dos bens da 'de cujus', amealhados durante a constância do relacionamento”. Alternativamente, pugna para que seja fixada “indenização em favor da companheira, em razão do tempo de convivência e dedicação dispensados pela autora à falecida” (fl. 19).

    Contestação: apresentada às fls. 146⁄164.

    Sentença (fls. 341⁄349): julgou improcedente o pedido, ao entendimento de que

    não obstante a existência de relação estável, homossexual, duradoura, calcada em (sic) na fidelidade e amor recíprocos, não há que se falar em partilha ou mesmo em indenização, porquanto indemonstrada (sic) a contribuição que a autora possa ter dado à constituição do patrimônio formado por S. no curso da relação havida entre elas (fl. 348 – com adaptações).

    Acórdão (fls. 422⁄436): deu parcial provimento ao recurso interposto por L. M. DE F., apenas para reconhecer a existência de sociedade de fato, sem, contudo, permitir a partilha dos bens deixados por S. L., ante a ausência de demonstração do esforço comum.

    Embargos de declaração: interpostos por L. M. DE F. (fls. 439⁄441), foram rejeitados (fls. 446⁄453).

    Recurso especial (fls. 499⁄533): interposto sob alegação de ofensa aos arts. 4º da LICC; 126 e 535, do CPC; 1.363 do CC⁄16; 1º e 5º, da Lei n.º 9.278, de 1996; além de dissídio jurisprudencial.

    Recurso extraordinário: interposto às fls. 456⁄473.

    Contrarrazões: apresentadas pelo Espólio às fls. 597⁄607.

    Juízo Prévio de Admissibilidade (fls. 632⁄636): o TJ⁄PR admitiu o recurso especial, determinando a remessa dos autos ao STJ.

    Parecer do MPF (fls. 670⁄680): da lavra do i. Subprocurador-Geral da República Henrique Fagundes Filho, pelo não provimento do recurso especial. Contudo, em manifestação oral do i. Subprocurador-Geral da R.M. deP.C., opinou-se no sentido do provimento do recurso.

    Vieram conclusos os autos, com parecer, em 14.12.2010.

    É o relatório.

    RECURSO ESPECIAL Nº 930.460 - PR (2007⁄0044989-0)

    RELATORA : MINISTRA NANCY ANDRIGHI
    RECORRENTE : L M DE F
    ADVOGADO : VANESSA CRISTINA CRUZ SCHEREMETA E OUTRO(S)
    RECORRIDO : S L - ESPÓLIO
    REPR. POR : B L - INVENTARIANTE
    ADVOGADO : PATRÍCIA TOURINHO BERALDI E OUTRO

    VOTO

    A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relatora):

    1. Da delimitação da lide e de seus contornos fáticos.

      A matéria controvertida refere-se à possibilidade ou não de que sejam conferidos efeitos – marcadamente patrimoniais – idênticos aos do reconhecimento e dissolução de união estável às parcerias afetivas entre pessoas do mesmo sexo.

      O TJ⁄PR reconheceu, sob a ótica do direito das obrigações (art. 1.363 do CC⁄16), a existência de sociedade de fato entre L. M. DE F. e S. L., exigindo, para tanto, a demonstração do esforço comum para aquisição do patrimônio a ser partilhado. A repartição dos bens, sob essa premissa, somente poderia ocorrer na proporção da contribuição pessoal, direta e efetiva de cada uma das companheiras.

      A discussão aqui tratada, todavia, vai além da órbita dos efeitos patrimoniais cingidos ao direito das obrigações. Ela se firma na possibilidade ou não de reconhecimento da existência de união afetiva entre pessoas do mesmo sexo, sob a perspectiva do direito de família, com a consequente demarcação dos efeitos patrimoniais daí advindos.

      Delimitado o debate, cabe adentrar na análise dessa temática que tem se tornado recorrente não só nos Tribunais do Brasil, mas do mundo.

    2. Dos princípios fundamentais e do emprego da analogia como método integrativo para que se produzam os idênticos efeitos do reconhecimento de união estável a relação de afeto entre pessoas do mesmo sexo.

      Despida de normatividade, a união afetiva constituída entre pessoas de mesmo sexo tem batido às portas do Poder Judiciário ante a necessidade de tutela. Essa circunstância que não pode ser ignorada, seja pelo legislador, seja pelo julgador, que devem estar preparados para regular as relações contextualizadas em uma sociedade pós-moderna, com estruturas de convívio cada vez mais complexas, a fim de albergar, na esfera de entidade familiar, os mais diversos arranjos vivenciais.

      Sob essa ótica, a proteção do Estado ao ser humano deve ser conferida com os olhos fitos no respeito às diferenças interpessoais, no sentido de vedar condutas preconceituosas, discriminatórias e estigmatizantes, sob a firme escolta dos princípios fundamentais da igualdade, da dignidade e da liberdade do ser humano.

      De fato, só teria sentido identificar uma pessoa em função de sua orientação sexual se a atração pelo mesmo sexo fosse relevante a ponto de impor diferenças de tratamento, como se de Âdesvio de comportamento se...

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