Acórdão nº 2006/0121910-4 de T1 - PRIMEIRA TURMA

Data23 Outubro 2007
Número do processo2006/0121910-4
ÓrgãoPrimeira Turma (Superior Tribunal de Justiça do Brasil)

RECURSO ESPECIAL Nº 845.228 - RJ (2006/0121910-4)

RELATOR : MINISTRO LUIZ FUX
RECORRENTE : D.C.
ADVOGADO : PAULO SÉRGIO DA COSTA MARTINS E OUTRO(S)
RECORRIDO : UNIÃO

EMENTA

PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. INDENIZAÇÃO. REPARAÇÃO DE DANOS MATERIAIS E MORAIS. REGIME MILITAR. DISSIDENTE POLÍTICO PRESO NA ÉPOCA DO REGIME MILITAR. TORTURA. DANO MORAL. FATO NOTÓRIO. NEXO CAUSAL. NÃO INCIDÊNCIA DA PRESCRIÇÃO QUINQUENAL - ART. 1º DECRETO 20.910/1932. IMPRESCRITIBILIDADE.

  1. Ação ordinária proposta com objetivo de reconhecimento dos efeitos previdenciários e trabalhistas, acrescidos de danos materiais e morais, em face do Estado, pela prática de atos ilegítimos decorrentes de perseguições políticas perpetradas por ocasião do golpe militar de 1964, que culminaram na prisão do autor, bem como na sua tortura, cujas conseqüências alega irreparáveis.

  2. Prova inequívoca da perseguição política à vítima e de imposição, por via oblíqua, de sobrevivência clandestina, atentando contra a dignidade da pessoa humana, acrescido do fato de ter sido atingida a sua capacidade laboral quando na prisão fora torturado, impedindo atualmente seu auto sustento.

  3. A indenização pretendida tem amparo constitucional no art. 8º, § 3º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Precedentes.

  4. Deveras, a tortura e morte são os mais expressivos atentados à dignidade da pessoa humana, valor erigido como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil.

  5. Sob esse ângulo, dispõe a Constituição Federal:

    Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

    (...)

    III - a dignidade da pessoa humana;

    Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes;

    (...)

    III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;

  6. Destarte, o egrégio STF assentou que:

    "...o delito de tortura - por comportar formas múltiplas de execução - caracteriza- se pela inflição de tormentos e suplícios que exasperam, na dimensão física, moral ou psíquica em que se projetam os seus efeitos, o sofrimento da vítima por atos de desnecessária, abusiva e inaceitável crueldade. - A norma inscrita no art. 233 da Lei nº 8.069/90, ao definir o crime de tortura contra a criança e o adolescente, ajusta-se, com extrema fidelidade, ao princípio constitucional da tipicidade dos delitos (CF, art. 5º, XXXIX). A TORTURA COMO PRÁTICA INACEITÁVEL DE OFENSA À DIGNIDADE DA PESSOA. A simples referência normativa à tortura, constante da descrição típica consubstanciada no art. 233 do Estatuto da Criança e do Adolescente, exterioriza um universo conceitual impregnado de noções com que o senso comum e o sentimento de decência das pessoas identificam as condutas aviltantes que traduzem, na concreção de sua prática, o gesto ominoso de ofensa à dignidade da pessoa humana. A tortura constitui a negação arbitrária dos direitos humanos, pois reflete - enquanto prática ilegítima, imoral e abusiva - um inaceitável ensaio de atuação estatal tendente a asfixiar e, até mesmo, a suprimir a dignidade, a autonomia e a liberdade com que o indivíduo foi dotado, de maneira indisponível, pelo ordenamento positivo." (HC 70.389/SP, Rel. p. Acórdão Min. Celso de Mello, DJ 10/08/2001)

  7. À luz das cláusulas pétreas constitucionais, é juridicamente sustentável assentar que a proteção da dignidade da pessoa humana perdura enquanto subsiste a República Federativa, posto seu fundamento.

  8. Consectariamente, não há falar em prescrição da ação que visa implementar um dos pilares da República, máxime porque a Constituição não estipulou lapso prescricional ao direito de agir, correspondente ao direito inalienável à dignidade.

  9. Outrossim, a Lei 9.140/95, que criou as ações correspondentes às violações à dignidade humana, perpetradas em período de supressão das liberdades públicas, previu a ação condenatória no art. 14, sem estipular-lhe prazo prescricional, por isso que a lex specialis convive com a lex generalis, sendo incabível qualquer aplicação analógica do Código Civil no afã de superar a reparação de atentados aos direitos fundamentais da pessoa humana, como sói ser a dignidade retratada no respeito à integridade física do ser humano.

  10. Adjuntem-se à lei interna, as inúmeras convenções internacionais firmadas pelo Brasil, a começar pela Declaração Universal da ONU, e demais convenções específicas sobre a tortura, tais como a Convenção contra a Tortura adotada pela Assembléia Geral da ONU, a Conveção Interamericana contra a Tortura, concluída em Cartagena, e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica).

  11. A dignidade humana violentada, in casu, decorreu do fato de ter sido o autor torturado- revelando flagrante atentado ao mais elementar dos direitos humanos, os quais, segundo os tratadistas, são inatos, universais, absolutos, inalienáveis e imprescritíveis.

  12. Inequívoco que foi produzida importante prova indiciária representada pelos comprovantes de tratamento e pelas declarações médicas que instruem os autos, consoante se extrai da sentença de fls. 72/79.

  13. A exigibillidade a qualquer tempo dos consectários às violações dos direitos humanos decorre do princípio de que o reconhecimento da dignidade humana é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz, razão por que a Declaração Universal inaugura seu regramento superior estabelecendo no art. 1º que "todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos".

  14. Deflui da Constituição federal que a dignidade da pessoa humana é premissa inarredável de qualquer sistema de direito que afirme a existência, no seu corpo de normas, dos denominados direitos fundamentais e os efetive em nome da promessa da inafastabilidade da jurisdição, marcando a relação umbilical entre os direitos humanos e o direito processual.

  15. O egrégio STJ, em oportunidades ímpares de criação jurisprudencial, vaticinou:

    "RECURSO ESPECIAL. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E MATERIAIS. PRISÃO, TORTURA E MORTE DO PAI E MARIDO DAS RECORRIDAS. REGIME MILITAR. ALEGADA PRESCRIÇÃO. INOCORRÊNCIA. LEI N. 9.140/95. RECONHECIMENTO OFICIAL DO FALECIMENTO, PELA COMISSÃO ESPECIAL DE DESAPARECIDOS POLÍTICOS, EM 1996. DIES A QUO PARA A CONTAGEM DO PRAZO PRESCRICIONAL.

    A Lei n. 9.140, de 04.12.95, reabriu o prazo para investigação, e conseqüente reconhecimento de mortes decorrentes de perseguição política no período de 2 de setembro de 1961 a 05 de outubro de 1998, para possibilitar tanto os registros de óbito dessas pessoas como as indenizações para reparar os danos causados pelo Estado às pessoas perseguidas, ou ao seu cônjuge, companheiro ou companheira, descendentes, ascendentes ou colaterais até o quarto grau.

    omissis

    ...em se tratando de lesão à integridade física, deve-se entender que esse direito é imprescritível, pois não há confundi-lo com seus efeitos patrimoniais reflexos e dependentes.

    "O dano noticiado, caso seja provado, atinge o mais consagrado direito da cidadania: o de respeito pelo Estado à vida e de respeito à dignidade humana. O delito de tortura é hediondo. A imprescritibilidade deve ser a regra quando se busca indenização por danos morais conseqüentes da sua prática" (REsp n. 379.414/PR, Rel. Min. José Delgado, in DJ de 17.02.2003).

    Recurso especial não conhecido." (REsp 449.000/PE, 2ª T., Rel. Min. Franciulli Netto, DJ 3/06/2003)

  16. Recurso especial provido para afastar in casu a aplicação da norma inserta no art. 1.º do Decreto n.º 20.910/32, determinando o retorno dos autos à instância de origem, para que dê prosseguimento ao feito.

    ACÓRDÃO

    Vistos, relatados e discutidos estes autos, os Ministros da PRIMEIRA TURMA do Superior Tribunal de Justiça acordam, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas a seguir, por maioria, vencidos os Srs. Ministros Teori Albino Zavascki (voto-vista) e Francisco Falcão, dar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Denise Arruda e José Delgado votaram com o Sr. Ministro Relator.

    Brasília (DF), 23 de outubro de 2007(Data do Julgamento)

    MINISTRO LUIZ FUX

    Relator

    RECURSO ESPECIAL Nº 845.228 - RJ (2006/0121910-4)

    RELATÓRIO

    O EXMO. SR. MINISTRO LUIZ FUX (Relator): Trata-se de recurso especial interposto por D.C. com fundamento no art. 105, III, alíneas "a" e "c", da Constituição Federal, contra acórdão do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, nos termos da seguinte ementa:

    "ADMINISTRATIVO E PROCESSO CIVIL. SENTENÇA CITRA PETITA - ART. 515, § 3º, DO CPC - ANISTIA. PRESCRIÇÃO. ART. 8º, ADCT. DANOS MORAIS.

    1 - Ab initio, releva considerar a omissão do decisum a quo quanto à questão da prescrição, aduzida pelo ente federativo em sua peça de bloqueio (fls. 62); o que evidencia violação ao princípio da adstrição do juiz aos limites da demanda, conforme o art. 128 do Digesto Processual, restando, dessa forma, frustrada a promessa constitucional de indeclinabilidade da tutela jurisdicional (art. 5º, XXXV, CF/88), a impor, num primeiro momento, a anulação do decisório sub examine.

    2 - Inexistindo, in casu, negativa da Administração quanto ao pedido de anistia - encartado no art. 8º do ADCT/88 -, o prazo prescricional contar-se-á do surgimento do pretenso direito, ou seja, a partir da promulgação da atual Carta Magna, que se deu em 05 de outubro de 1988; o que, na espécie, fulmina a pretensão autoral, na medida em que se cuida de demanda ajuizada após o qüinqüênio da nova Ordem Constitucional.

    3 - No que tange às agruras morais, impende considerar que “o prazo prescricional para propositura da ação de indenização por danos morais segue aquele previsto para pleitear a reparação dos prejuízos patrimoniais” (STJ-2ª Turma, REsp nº 288724/PR, rel. Min. Laurita Vaz, in DJ de 01.07.2002), o que leva ao...

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