Acórdão nº 2005/0195461-0 de T1 - PRIMEIRA TURMA

Número do processo2005/0195461-0
Data18 Outubro 2007
ÓrgãoPrimeira Turma (Superior Tribunal de Justiça do Brasil)

RECURSO ESPECIAL Nº 799.841 - RS (2005/0195461-0)

RELATOR : MINISTRO LUIZ FUX
RECORRENTE : MINISTÉRIO PÚBLICO
RECORRIDO : J.A.A.D.S.
ADVOGADO : SEM REPRESENTAÇÃO NOS AUTOS

EMENTA

PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. RESSARCIMENTO À UNIÃO DE VALORES INDEVIDAMENTE RECEBIDOS DO FUNDO DE INDENIZAÇÃO DO TRABALHADOR PORTUÁRIO AVULSO (FITP). REPETIÇÃO DO INDÉBITO. CONFLITO DE CARÁTER TRIBUTÁRIO. INTERESSE SECUNDÁRIO DA ADMINISTRAÇÃO. ILEGITIMIDADE ATIVA AD CAUSAM DO MINISTÉRIO PÚBLICO. DIVERGÊNCIA NÃO DEMONSTRADA.

  1. O Ministério Público Federal não ostenta legitimidade ativa ad causam para ajuizar ação civil pública objetivando o ressarcimento, em favor da União, de valor indevidamente recebido por trabalhador portuário avulso, oriunda do Fundo de Indenização do Trabalhador Portuário Avulso - FITP, porquanto a sua atuação, in casu, não denota defesa do erário, ao revés, revela repetição do indébito, ora rotulada de ação civil pública, em nome da União, que, inclusive, dispõe de Procuradoria para fazê-lo.Precedente desta Corte: REsp 799.883/RS, desta relatoria, DJ de 04.06.2007.

  2. Ação Civil Pública ajuizada pelo Ministério Público Federal em face de trabalhador portuário, objetivando o ressarcimento, em favor da União, de valores indevidamente recebidos pelo réu, a título de indenização pelo cancelamento de registro de trabalhador portuário avulso, ao fundamento de que a Lei nº 8.630/93, concretizando projeto de modernização dos portos, estabeleceu a obrigatoriedade de os trabalhadores portuários avulsos estarem registrados junto ao Órgão Gestor de Mão-de-Obra-OGMO, constituído pelos operadores portuários, mediante o cumprimento de determinadas condições, que o réu, por já gozar do benefício da aposentadoria, não preenchia e, via de conseqüência, não fazia jus à referida indenização.

  3. Deveras, mercê de o Fundo de Indenização do Trabalhador Portuário Avulso - AITP configurar receita da União, resta equivocada, com a devida vênia, a sua inserção na categoria de patrimônio público federal, utilizada pelo Parquet como fator legitimador para o aforamento da ação civil pública em baila. É que o patrimônio público se perfaz de bens que pertencem a toda coletividade, não individualizáveis, e que não sofrem distinção pertinente a eventuais direitos subjetivos, como por exemplo, imóveis tombados pelo Patrimônio Histórico-Cultural. Daí, inviável se considerar receita da União como patrimônio público federal, na medida em que o seu ressarcimento não denota interesse metaindividual relevante, mas sim do próprio ente público. Nesse sentido é doutrina pátria:

    "(...)A ação civil pública é instrumento de defesa dos interesses sociais, categoria que compreende o interesse de preservação do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos, expressões que, na lição de Miguel Reale (Questões de Direito Público, São Paulo: Saraiva, 1997, p. 132). "compõem uma díade incindível", enquanto bens pertencentes a toda a comunidade, "a todos e a cada um, como um bem comum, não individualizável, isto é, sem haver possibilidade de distinção formal individualizadora em termos de direitos subjetivos ou situações jurídicas subjetivas". (Ilmar Galvão, A ação civil pública e o Ministério Público, in Aspectos Polêmicos da Ação Civil Pública, São Paulo, Arnoldo Wald, 2003, p. 2002.)

  4. Consectariamente, a rubrica receita da União caracteriza-se como interesse secundário da Administração, o qual não gravita na órbita dos interesses públicos (interesse primário da Administração), e, por isso, não guarnecido pela via da ação civil pública, consoante assente em sede doutrinária:

    "(...)Um segundo limite é o que se estabelece a partir da distinção entre interesse social (ou interesse público) e interesse da Administração Pública. Embora a atividade administrativa tenha como objetivo próprio o de concretizar o interesse público, é certo que não se pode confundir tal interesse com o de eventuais interesses próprios das entidades públicas. Daí a classificação doutrinária que distingue os interesses primários da Administração (que são os interesses públicos, sociais, da coletividade) e os seus interesses secundários (que se limitam à esfera interna do ente estatal). "Assim", escreveu C.A.B. deM., "independentemente do fato de ser, por definição, encarregado dos interesses públicos, o Estado pode ter, tanto quanto as demais pessoas, interesses que lhes são particulares, individuais, e que, tal como os interesses delas, concebidas em suas meras individualidades, se encarnam no Estado enquanto pessoas. Estes últimos não são interesses públicos, mas interesses individuais do Estado, similares, pois (sob o prisma extrajurídico), aos interesses de qualquer sujeito". Nessa linha distintiva, fica claro que a Administração, nas suas funções institucionais, atua em representação de interesses sociais e, eventualmente, de interesses exclusivamente seus. Portanto, embora com vasto campo de identificação, não se pode estabelecer sinonímia entre interesse social e interesse da Administração.

    Pode-se afirmar, utilizando a classificação de Engisch, que interesse social encerra conceito jurídico indeterminado (porque o seu "conteúdo e extensão são em larga medida incertos") e normativo (porque "carecido de um preenchimento valorativo"), e sua função "em boa parte é justamente permanecerem abertos às mudanças das valorações".

    Conforme observou o Ministro Sepúlveda Pertence, em voto proferido no Supremo Tribunal Federal, "é preciso ter em conta que o interesse social não é um conceito axiologicamente neutro, mas, ao contrário - e dado o permanente conflito de interesses parciais inerente à vida em sociedade - é idéia carregada de ideologia e valor, por isso, relativa e condicionada ao tempo e ao espaço em que se deva afirmar". É natural, portanto, que os interesses sociais não comportem definições de caráter genérico com significação unívoca. Como demonstrou J. J. Calmon de Passos, "a individualização do interesse público não ocorre, de uma vez por todas, em um só momento, mas deriva da constante combinação de diversas influências, algumas das quais provêm da experiência passada, enquanto outras nascem da escolha que cada operador jurídico singular cumpre, hic et nunc, no exercício da função que lhe foi atribuída. Assim, a atividade para individualização dos interesses públicos é uma atividade de interpretação de atos e fatos e normas jurídicas (recepção dos interesses públicos fixados no curso da experiência jurídica anterior) e em parte é uma valoração direta da realidade pelo operador jurídico, atendidos os pressupostos ideológicos e sociais que o informam e à sociedade em que vive, submetidos à ação dos fatos novos, capazes de modificar juízos anteriormente irreversíveis" .

    Genericamente, como Calmon de Passos, pode-se definir interesse público ou interesse social o "interesse cuja tutela, no âmbito de um determinado ordenamento jurídico, é julgada como oportuna para o progresso material e moral da sociedade a cujo ordenamento jurídico corresponde".

    A Constituição identifica claramente vários exemplares dessa categoria de interesses, como, por exemplo, a preservação do patrimônio público e da moral idade administrativa, cuja defesa pode ser exercida inclusive pelos próprios cidadãos, mediante ação popular (CF, art. 5.°, LXXIII), o exercício probo da administração pública, que sujeita seus infratores a sanções de variada natureza, penal, civil, e política (CF, art. 37, § 4.º), e a manutenção da ordem econômica, que "tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social" (CF, art. 170). São interesses, não apenas das pessoas de direito público, mas de todo o corpo social, de toda a comunidade, da própria sociedade como ente coletivo. (ZAVASKI, Teori Albino, Processo Coletivo: Tutela de Direitos Coletivos e Tutela Coletiva de Direitos, São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 2006. p. 52-54.)

  5. A Procuradoria da Fazenda Nacional, no seu mister, detém atribuições legalmente instituídas que, acaso não observadas, importa em procedimento administrativo na órbita funcional, e até criminal. Descabida, portanto, a atuação do Ministério Público Federal, in casu, na defesa de interesse da União, juridicamente acautelado por órgão próprio.

  6. Gravitando a demanda em torno de tema de natureza tributária, há que se aplicar o art. 1º, parágrafo único, da Lei da Lei 7.347/85, com redação conferida pela Lei 8.884/94, consoante os precedentes da Suprema Corte e deste STJ (AgRg no RExt 248.191 - 2 - SP, Relator Ministro CARLOS VELLOSO, Segunda Turma, DJ de 25 de outubro de 2.002 e REsp 845.034 - DF, Relator Ministro José Delgado, Primeira Seção Seção, julgado em 14 de fevereiro de 2.007), os quais assentam a ilegitimidade ativa ad causam do Ministério Público para impugnar a cobrança de tributos ou pleitear a sua restituição.

  7. A admissão do Recurso Especial pela alínea "c" exige a demonstração do dissídio na forma prevista pelo RISTJ, com a demonstração das circunstâncias que assemelham os casos confrontados, não bastando, para tanto, a simples transcrição das ementas dos paradigmas.

  8. In casu, o acórdão recorrido cingiu-se à ilegitimidade ativa ad causam do Ministério Público para o ajuizamento de ação civil pública, objetivando o ressarcimento, em favor da União, de valor indevidamente recebido por trabalhador portuário avulso, oriunda do Fundo de Indenização do Trabalhador Portuário Avulso - FITP e os paradigmas colacionados, ao revés, tratam de forma ampla e genérica o cabimento de ação civil pública objetivando a defesa do patrimônio público.

  9. Recurso especial desprovido.

    ACÓRDÃO

    Vistos, relatados e discutidos estes autos, os Ministros da PRIMEIRA TURMA do Superior Tribunal de Justiça acordam, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas a seguir, por unanimidade, negar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Teori Albino Zavascki...

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