Decisão Monocrática nº 2008/0066044-4 de T6 - SEXTA TURMA

Número do processo2008/0066044-4
Data18 Agosto 2008
ÓrgãoSexta Turma (Superior Tribunal de Justiça do Brasil)

RECURSO ESPECIAL Nº 1.043.279 - PR (2008/0066044-4)

RELATORA : MINISTRA JANE SILVA (DESEMBARGADORA CONVOCADA DO TJ/MG) RECORRENTE : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO PARANÁ

RECORRIDO : J.H.C.

ADVOGADO : MIGUEL NICOLAU JUNIOR E OUTRO(S)

PENAL. PROCESSUAL. RECURSO ESPECIAL. HOMICÍDIO. ACIDENTE DE

TRÂNSITO. DOLO EVENTUAL. CULPA CONSCIENTE. REVALORAÇÃO DE PROVAS.

POSSIBILIDADE. INEXISTÊNCIA DE ELEMENTOS DO DOLO EVENTUAL.

CIRCUNSTÂNCIAS DO FATO QUE NÃO EVIDENCIAM A ANTEVISÃO E A ASSUNÇÃO DO RESULTADO PELO RÉU. DESCLASSIFICAÇÃO DA CONDUTA QUE SE IMPÕE.

RECURSO A QUE SE NEGA SEGUIMENTO.

DECISÃO

Trata-se de recurso especial interposto pelo MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO PARANÁ em face de acórdão do TJ/PR, fundado nas alíneas "a" e "c" do permissivo constitucional. O acórdão do Tribunal a quo restou assim ementado:

PROCESSUAL PENAL. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. RÉU QUE DIRIGINDO EMBRIAGADO COMETE HOMICÍDIO. PRONÚNCIA PELA PRÁTICA DE HOMICÍDIO DOLOSO, DOLO EVENTUAL. DISTINÇÃO INTRINCADA ENTRE DOLO EVENTUAL E CULPA CONSCIENTE, QUE EXIGE CONTROLE MAIS ACURADO NO JUÍZO DE ADMISSIBILIDADE DA PRONÚNCIA, NOS CRIMES CONTRA A VIDA, EM QUE ENVOLVA ACIDENTE DE TRÂNSITO. INEXISTÊNCIA DE ELEMENTO CONCRETO, DIVERSO DA EMBRIAGUEZ, QUE DEMONSTRE TER O RÉU ANUIDO AO DIRIGIR EMBRIAGADO COM O RESULTADO MORTE. RECURSO PROVIDO PARA

DESCLASSIFICAR O CRIME DE HOMICÍDIO DOLOSO (ART. 121, CAPUT, DO CP) PARA O CRIME DE HOMICÍDIO CULPOSO COMETIDO NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR (ART. 302, DO CTN).

- A complexidade em distinguir o dolo eventual da culpa consciente demonstra a temeridade de se "lavar as mãos", com fundamento no princípio "in dúbio pro societates" submetendo, de forma automática, o agente de crime cometido contra pessoa no trânsito a julgamento perante o Tribunal do Júri, sendo imprescindível um controle mais acurado no juízo de admissibilidade da pronúncia nestes casos.

- Não basta tão-somente que o agente esteja dirigindo bêbado ao ocasionar o acidente e consequentemente à morte, pois tal fato, por si só, configura quebra do dever de cuidado objetivo exigido pela própria lei de trânsitos (art. 165, do CTB), configurando o crime culposo. É necessário, a configuração de um "plus" que demonstre realmente que o agente anuiu com o resultado e não que este tenha apenas confiando, de forma leviana, que ao dirigir bêbado poderia evitar o resultado (culpa consciente).

- A alta velocidade que exceda de forma manifesta as normas de trânsito, constitui o "plus" aliado a embriagues no volante

demonstrativos do "motivo egoístico", da torpeza no comportamento, ou melhor, a imprudência de dirigir embriagado, o que por si só já permite a representação do resultado lesivo, somada com a velocidade manifestamente excessiva no trânsito constitui indícios de fundada suspeita de que o agente anuiu, integrou, o risco de lesar o bem jurídico na realização do seu plano concreto, o que ampara a

pronúncia de fundada suspeita na configuração do dolo eventual.

- Na espécie, embora esteja comprovado que o réu estava dirigindo bêbado, não há indícios de que o réu estava em alta velocidade, que poderia consistir no "plus" demonstrativo do motivo egoístico, da torpeza, do agente que decide, "custe o que custar", agir. Desse modo não havendo elemento concreto que possibilite amparar um juízo de fundada suspeita na configuração do dolo eventual, é de rigor a desclassificação do crime de homicídio doloso (art. 121, caput, do CP) para o crime de homicídio culposo cometido na direção de veículo automotor (art. 302, do CTN).

- É de se frisar que aqui não se está a afastar a competência, constitucionalmente assegurada, do Tribunal do Júri para julgar os crimes dolosos contra a vida, o que se faz é, através da distinção do dolo eventual da culpa consciente, com amparo em balizas mais concretas, consistente na necessidade de ficar evidenciado um "plus" que demonstre o agir egoístico, torpe, do motorista embriagado que possa evidenciar que o mesmo anuiu com o resultado morte, afastar a configuração do dolo eventual.

Originalmente, J.C.P.T.J., interpôs RECURSO EM SENTIDO ESTRITO, contra a decisão de fls. 96/99 que o pronunciou como incurso nas sanções do artigo 121, caput, (homicídio simples), do Código Penal, para ser submetido a julgamento pelo Tribunal do Júri, pela prática do seguintes fatos descritos na denúncia:

Em 19.02.2003, após ter permanecido durante a noite em boate nesta cidade, local onde ingeriu alta quantidade de bebidas alcoólicas, o denunciado, tornou a direção do veículo automotor Ford F1000, de placas BIQ-3105, chassi LA7NAT31973, em estado de influência

alcoólica (conforme laudo de alcoolêmico 0,59 mg/1 sangue), passando a imprimir ao conduzido altíssima velocidade em perímetro urbano desta cidade de Guarapuava/PR. Ao passar pela Av. Moacir Júlio Silvestri, sentido bairro-centro, ainda conduzindo o veículo citado, aproximadamente às 06:00 horas da manhã, e em altíssima velocidade para o local, situado em perímetro urbano, o denunciado, em razão de seu estado etílico, assumindo o risco de vir a desgovernar-se e assentindo com qualquer resultado lesivo daí resultante, consciente da ilicitude de sua conduta, adentrou o passeio (= área destinada a pedestres) da citada avenida, transitando aí por cerca de 62,50 (sessenta e dois vírgula cinquenta ) metros, com o rodado a uma distância de aproximadamente 0,80 (zero vírgula oitenta) metros do asfalto, ocasião em que, sem proporcionar á vitima Sandra Missi- que encontrava-se caminhando no passeio -, qualquer possibilidade de defesa, veio a com ela colidir, causando-lhe lesões

crânio-encefálicas que foram a causa da morte da mesma, conforme laudo de fls. 32. Logo após a colisão com a vítima, o denunciado, então, e só então, acionou os freios do veículo, vindo a atravessar a pista para o lado contrario de sua mão de direção (frenagem que perdurou por cerca de 25 metros), tendo colidido com a grade do muro de uma casa, o que fez com que o veículo parasse. Momentos após, o denunciado, buscou evadir-se do local do atropelamento homicida, não logrando êxito, em razão das avarias que o veículo sofreu em virtude dos choques acima citados, bem como pela rápida ação do Sr. Dinarte Machado dos Santos que prendeu o denunciado em flagrante."

Em suas razões de recurso, alegou o réu que não agiu com dolo eventual, consoante consta da denúncia, e sim com culpa consciente, o que a fasta a possibilidade de sua pronúncia, não podendo ser ele submetido a julgamento pelo Tribunal do Júri, tão-somente com fundamento no ultrapassado princípio in dubio pro societate. Com base em tais fundamentos, pediu a desclassificação do crime de homicídio doloso (art. 121, caput, do CP), para o crime de homicídio culposo cometido na direção de veículo automotor (art. 302,

parágrafo único, V, do CTB) (f. 107).

A Primeira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, por unanimidade de votos, deu provimento ao presente recurso de apelação para desclassificar o crime de homicídio doloso (art.

121, caput, do CP) para o crime de homicídio culposo cometido na direção de veículo automotor (art. 302, do CTN), determinando o prosseguimento do julgamento. Eis os fundamentos:

Pretende o apelante a desclassificação do crime de homicídio doloso (art. 121, caput, do CP) para o crime de homicídio culposo cometido na direção de veículo automotor (art. 302, parágrafo único, V, do CTB), sustentando que não agiu com dolo eventual, consoante consta da denúncia, e sim com culpa consciente, o que a fasta a

possibilidade de sua pronúncia.

O egrégio Superior Tribunal Justiça ao se pronunciar a respeito do dolo eventual, nos crimes de trânsito, assentou o seguinte

entendimento, verbis: "(...)III - Não se pode generalizar a exclusão do dolo eventual em delitos praticados no trânsito. Na hipótese de "racha", em se tratando de pronúncia, a desclassificação da

modalidade dolosa de homicídio para a culposa deve ser calcada em prova por demais sólida. No iudicium accusationis, inclusive, a eventual dúvida não favorece os acusados, incidindo, aí, a regra exposta na velha parêmia in dubio pro societate.

IV - O dolo eventual, na prática, não é extraído da mente do autor mas, isto sim, das circunstâncias. Nele, não se exige que resultado seja aceito como tal, o que seria adequado ao dolo direto, mas isto sim, que a aceitação se mostre no plano do possível, provável.

V - O tráfego é atividade própria de risco permitido. O "racha", no entanto, é - em princípio - anomalia extrema que escapa dos limites próprios da atividade regulamentada. Recurso não conhecido." (STJ, REsp nº 249604/SP, 5ª Turma, Rel. Min. Felix Fischer, DJU de

24/09/2002).

Consoante o precedente supracitado, a exclusão do dolo eventual, nos crimes de trânsito, é exceção.

A distinção entre o dolo eventual e a culpa consciente é uma das questões mais controvertidas do direito penal.

Como se observa da leitura do art. 18, I, in fine, do Código Penal, em que prevê que o agente deve "assumir o risco de produzi-lo (o resultado)" que o nosso ordenamento jurídico adotou a teoria do consentimento do dolo eventual. Ou seja, para a configuração do dolo eventual é necessário a presença dos dois elementos do dolo o cognitivo e o volitivo, pois como observa Alberto Silva Franco, citando Diaz Palos, o dolo eventual, ""es dolo antes que eventual".

E por ser dolo e desta forma exigir os dois momentos, não pode ser conceituado com desprezo de um deles, como fazem os adeptos da teoria da probabilidade, que se desinteressam por completo do momento volitivo." (in "Código Penal e sua interpretação

jurisprudencial", 5ª edição, RT, 2002, 1995, pág. 205).

O eminente professor Juarez Tavares assim leciona sobre o tema, verbis:

"A distinção ente o dolo eventual e a culpa consciente continua sendo um dos pontos mais controvertidos e nevrálgicos da teoria do delito. A fim de estabelecer essa distinção, atendendo aos

fundamentos antes enunciados, deve-se partir de dois pressupostos.

O primeiro, de que o dolo eventual...

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