Decisão da Presidência nº 228 de STF. Supremo Tribunal Federal, 14 de Octubre de 2008

Magistrado ResponsávelMin. Presidente
Data da Resolução14 de Octubre de 2008
Tipo de RecursoSuspensão de Liminar

DECISÃO: Trata-se de pedido de suspensão de liminar, ajuizada pela União, contra decisão proferida pelo Juízo da 18ª Vara Federal de Sobral (Ação Civil Pública nº 2007.81.03.000799-0) e mantida pelo Tribunal Regional Federal da 5ª Região (Agravo de Instrumento no 2007.05.00.077007-0), a qual determinou à União, ao Estado do Ceará e ao Município de Sobral a transferência de todos os pacientes necessitados de atendimento em Unidades de Tratamento Intensivo (UTIs) para hospitais públicos ou particulares que disponham de tais unidades, assim como o início de ações tendentes à instalação e ao funcionamento de 10 leitos de UTIs adultas, 10 leitos de UTIs neonatais e 10 leitos de UTIs pediátricas, no prazo máximo de 90 dias. Na origem, o Ministério Público Federal e o Ministério Público do Ceará ajuizaram ação civil pública, com pedido de liminar, buscando garantir à população dos 61 municípios que compõem a Macro-Região Administrativa do SUS de Sobral o acesso aos serviços médicos de urgência necessários ao tratamento intensivo quando em condições de grave risco à saúde. Alegaram que, após a instauração do Inquérito Civil Público nº 1.15.003.000048/2007-94, constatou-se um quadro de saúde pública extremamente agravado na região, a qual só disponibiliza 9 leitos para atendimento aos pacientes do SUS (fl. 3). O Juízo da 18ª Vara Federal de Sobral concedeu a liminar na forma pleiteada na inicial, determinando, na hipótese de descumprimento, multa diária para cada réu no valor de R$ 10.000,00 (fls. 72-89). Contra essa decisão, a União interpôs Agravo de Instrumento perante o TRF da 5ª Região (fls. 16-48). O Desembargador Relator negou o efeito suspensivo ativo ao Agravo de Instrumento, mantendo a decisão agravada nos seus exatos termos até o julgamento final do recurso (fls. 92-94). A União pede a suspensão dessa decisão com base na alegação de lesão à ordem público-administrativa, à saúde pública, à economia pública, violação ao princípio da separação funcional dos poderes, desrespeito ao princípio da legalidade orçamentária e inobservância da cláusula da reserva do financeiramente possível. Os autos foram remetidos a esta Corte em 24 de março de 2008 (fl. 96). O Ministério Público Federal manifestou-se pelo parcial deferimento do pedido, tão-somente para sustar a imposição da multa diária fixada na decisão impugnada (fls. 98-108). Decido. A base normativa que fundamenta o instituto da suspensão (Leis nos 4.348/1964, 8.437/1992, 9.494/1997 e art. 297 do RI-STF) permite que a Presidência do Supremo Tribunal Federal, para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas, suspenda a execução de decisões concessivas de segurança, de liminar ou de tutela antecipada, proferidas em única ou última instância, pelos tribunais locais ou federais, quando a discussão travada na origem for de índole constitucional. Assim, é a natureza constitucional da controvérsia que justifica a competência do Supremo Tribunal Federal para apreciar o pedido de contracautela, conforme a pacificada jurisprudência desta Corte, destacando-se os seguintes julgados: RCL-AgR no 497/RS, Rel. Carlos Velloso, Plenário, maioria, DJ 6.4.2001; SS-AgR no 2.187/SC, Rel. Maurício Corrêa, DJ 21.10.2003; e SS no 2.465/SC, Rel. Nelson Jobim, DJ 20.10

No presente caso, reconheço que a controvérsia instaurada na ação em apreço evidencia a existência de matéria constitucional: alegação de ofensa aos arts. , , caput, 167, 196 e 198 da Constituição. Destaco que a suspensão da execução de ato judicial constitui medida excepcional, a ser deferida, caso a caso, somente quando atendidos os requisitos autorizadores (grave lesão à ordem, à saúde, à segurança ou à economia públicas). Neste sentido, confira-se trecho de decisão proferida pela Ministra Ellen Gracie no julgamento da STA no 138/RN: '[...] os pedidos de contracautela formulados em situações como a que ensejou a antecipação da tutela ora impugnada devem ser analisados, caso a caso, de forma concreta, e não de forma abstrata e genérica, certo, ainda, que as decisões proferidas em pedido de suspensão se restringem ao caso específico analisado, não se estendendo os seus efeitos e as suas razões a outros casos, por se tratar de medida tópica, pontual' ' (STA no 138/RN, Presidente Min. Ellen Gracie, DJ 19.9.2007). Ressalte-se, não obstante, que, na análise do pedido de suspensão de decisão judicial, não é vedado ao Presidente do Supremo Tribunal Federal proferir um juízo mínimo de delibação a respeito das questões jurídicas presentes na ação principal, conforme tem entendido a jurisprudência desta Corte, da qual se destacam os seguintes julgados: SS-AgR no 846/DF, Rel. Sepúlveda Pertence, DJ 8.11.1996 e SS-AgR no 1.272/RJ, Rel. Carlos Velloso, DJ 18.5.2001. O art. 4º da Lei no 8.437/1992 c/c art. 1º da Lei 9.494/1997 autoriza o deferimento do pedido de suspensão da execução da tutela antecipada concedida nas ações movidas contra o Poder Público ou seus agentes, a requerimento da pessoa jurídica de direito público interessada, em caso de manifesto interesse público ou de flagrante ilegitimidade, e para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas. A decisão liminar que a União busca suspender, ao determinar que todos os pacientes que necessitem de atendimento em Unidades de Tratamento Intensivo sejam transferidos para hospitais que as possuam e que sejam realizadas as ações necessárias para providenciar a instalação e o funcionamento de 10 leitos de UTIs neonatal, 10 leitos de UTIs pediátrica e 10 leitos de UTIs adulta na macro-região de Sobral, fundamentou-se na aplicação imediata do direito fundamental social à saúde, concretizado pela legislação do Sistema Único de Saúde e pelas Portarias do Ministério da Saúde. A doutrina constitucional brasileira há muito se dedica à interpretação do artigo 196 da Constituição. Teses, muitas vezes antagônicas, proliferaram-se em todas as instâncias do Poder Judiciário e na seara acadêmica. Tais teses buscam definir se, como e em que medida o direito constitucional à saúde se traduz em um direito subjetivo público a prestações positivas do Estado, passível de garantia pela via judicial. As divergências doutrinárias quanto ao efetivo âmbito de proteção da norma constitucional do direito à saúde decorrem, especialmente, da natureza prestacional desse direito e da necessidade de compatibilização do que se convencionou denominar de 'mínimo existencial' e da 'reserva do possível' (Vorbehalt des Möglichen). Como tenho analisado em estudos doutrinários, os direitos fundamentais não contêm apenas uma proibição de intervenção (Eingriffsverbote), expressando também um postulado de proteção (Schutzgebote). Haveria, assim, para utilizar uma expressão de Canaris, não apenas uma proibição de excesso (Übermassverbot), mas também uma proibição de proteção insuficiente (Untermassverbot) (Claus-Wilhelm Canaris, Grundrechtswirkungen um Verhältnismässigkeitsprinzip in der richterlichen Anwendung und Fortbildung des Privatsrechts, JuS, 1989, p. 161.). Nessa dimensão objetiva, também assume relevo a perspectiva dos direitos à organização e ao procedimento (Recht auf Organization und auf Verfahren), que são aqueles direitos fundamentais que dependem, na sua realização, de providências estatais com vistas à criação e conformação de órgãos e procedimentos indispensáveis à sua efetivação. Ressalto, nessa perspectiva, as contribuições de Stephen Holmes e Cass Sunstein para o reconhecimento de que todas as dimensões dos direitos fundamentais têm custos públicos, dando significativo relevo ao tema da 'reserva do possível', especialmente ao evidenciar a 'escassez dos recursos' e a necessidade de se fazer escolhas alocativas, concluindo, a partir da perspectiva das finanças públicas, que 'levar a sério os direitos significa levar à sério a escassez' (HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass. The Cost of Rights: Why Liberty Depends on Taxes. W. W. Norton & Company: Nova Iorque, 1999.). Embora os direitos sociais, assim como os direitos e liberdades individuais, impliquem tanto direitos a prestações em sentido estrito (positivos), quanto direitos de defesa (negativos), e ambas as dimensões demandem o emprego de recursos públicos para a sua garantia, é a dimensão prestacional (positiva) dos direitos sociais o principal argumento contrário à sua judicialização. A dependência de recursos econômicos para a efetivação dos direitos de caráter social leva parte da doutrina a defender que as normas que consagram tais direitos assumem a feição de normas programáticas, dependentes, portanto, da formulação de políticas públicas para se tornarem exigíveis. Nesse sentido, também se defende que a intervenção do Poder Judiciário, ante a omissão estatal quanto à construção satisfatória dessas políticas, violaria o princípio da separação dos poderes e o princípio da reserva do financeiramente possível. Em relação aos direitos sociais, é preciso levar em consideração que a prestação devida pelo Estado varia de acordo com a necessidade específica de cada cidadão. Assim, enquanto o Estado tem que dispor de um valor determinado para arcar com o aparato capaz de garantir a liberdade dos cidadãos universalmente, no caso de um direito social como a saúde, por outro lado, deve dispor de valores variáveis em função das necessidades individuais de cada cidadão. Gastar mais recursos com uns do que com outros envolve, portanto, a adoção de critérios distributivos para esses recursos. Assim, em razão da inexistência de suportes financeiros suficientes para a satisfação de todas as necessidades sociais, enfatiza-se que a formulação das políticas sociais e econômicas voltadas à implementação dos direitos sociais implicaria, invariavelmente, escolhas alocativas. Tais escolhas seguiriam critérios de justiça distributiva (o quanto disponibilizar e a quem atender), configurando-se como típicas opções políticas, as quais pressupõem 'escolhas trágicas' pautadas por critérios de macro-justiça. É dizer, a escolha da destinação de recursos para uma política e não para outra leva em consideração fatores como o número de cidadãos atingidos pela política eleita, a efetividade e eficácia do serviço a ser prestado, a maximização dos resultados, etc. Nessa linha de análise, argumenta-se que o Poder Judiciário, o qual estaria vocacionado a concretizar a justiça do caso concreto (micro-justiça), muitas vezes não teria condições de, ao examinar determinada pretensão à prestação de um direito social, analisar as conseqüências globais da destinação de recursos públicos em benefício da parte com invariável prejuízo para o todo (AMARAL, Gustavo. Direito, Escassez e Escolha. Renovar: Rio de Janeiro, 2001). Por outro lado, defensores da atuação do Poder Judiciário na concretização dos direitos sociais, em especial do direito à saúde, argumentam que tais direitos são indispensáveis para a realização da dignidade da pessoa humana. Assim, ao menos o 'mínimo existencial' de cada um dos direitos, exigência lógica do princípio da dignidade da pessoa humana, não poderia deixar de ser objeto de apreciação judicial. O fato é que o denominado problema da 'judicialização do direito à saúde' ganhou tamanha importância teórica e prática que envolve não apenas os operadores do direito, mas também os gestores públicos, os profissionais da área de saúde e a sociedade civil como um todo. Se, por um lado, a atuação do Poder Judiciário é fundamental para o exercício efetivo da cidadania, por outro, as decisões judiciais têm significado um forte ponto de tensão perante os elaboradores e executores das políticas públicas, que se vêem compelidos a garantir prestações de direitos sociais das mais diversas, muitas vezes contrastantes com a política estabelecida pelos governos para a área de saúde e além das possibilidades orçamentárias. Lembro, nesse ponto, a sagaz assertiva do professor Canotilho segundo a qual 'paira sobre a dogmática e teoria jurídica dos direitos econômicos, sociais e culturais a carga metodológica da vaguidez, indeterminação e impressionismo que a teoria da ciência vem apelidando, em termos caricaturais, sob a designação de `fuzzismo' ou `metodologia fuzzy''. 'Em toda a sua radicalidade ' enfatiza Canotilho ' a censura de fuzzysmo lançada aos juristas significa basicamente que eles não sabem do que estão a falar quando abordam os complexos problemas dos direitos econômicos, sociais e culturais' ( CANOTILHO, J. J. Gomes. Metodologia 'fuzzy' e 'camaleões normativos' na problemática actual dos direitos econômicos, sociais e culturais. In: Estudos sobre direitos fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 100.) . Nesse aspecto, não surpreende o fato de que a problemática dos direitos sociais tenha sido deslocada, em grande parte, para as teorias da justiça, as teorias da argumentação e as teorias econômicas do direito (CANOTILHO, op. cit., p. 98). Enfim, como enfatiza Canotilho, 'havemos de convir que a problemática jurídica dos direitos sociais se encontra hoje numa posição desconfortável' (CANOTILHO, op. cit., p. 99). De toda forma, parece sensato concluir que, ao fim e ao cabo, problemas concretos deverão ser resolvidos levando-se em consideração todas as perspectivas que a questão dos direitos sociais envolve. Juízos de ponderação são inevitáveis nesse contexto prenhe de complexas relações conflituosas entre princípios e diretrizes políticas ou, em outros termos, entre direitos individuais e bens coletivos. Alexy segue linha semelhante de conclusão ao constatar a necessidade de um modelo que leve em conta todos os argumentos favoráveis e contra os direitos sociais, da seguinte forma: 'Considerando os argumentos contrários e favoráveis aos direitos fundamentais sociais, fica claro que ambos os lados dispõem de argumentos de peso. A solução consiste em um modelo que leve em consideração tanto os argumentos a favor quantos os argumentos contrários. Esse modelo é a expressão da idéia-guia formal apresentada anteriormente, segundo a qual os direitos fundamentais da Constituição alemã são posições que, do ponto de vista do direito constitucional, são tão importantes que a decisão sobre garanti-las ou não garanti-las não pode ser simplesmente deixada para a maioria parlamentar. (...) De acordo com essa fórmula, a questão acerca de quais direitos fundamentais sociais o indivíduo definitivamente tem é uma questão de sopesamento entre princípios. De um lado está, sobretudo, o princípio da liberdade fática. Do outro lado estão os princípios formais da competência decisória do legislador democraticamente legitimado e o princípio da separação de poderes, além de princípios materiais, que dizem respeito sobretudo à liberdade jurídica de terceiros, mas também a outros direitos fundamentais sociais e a interesses coletivos.' (ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros Editores, 2008, p. 511-512) Ressalte-se, não obstante, que a questão dos direitos fundamentais sociais enfrenta desafios no direito comparado que não se apresentam em nossa realidade. Isso porque a própria existência de direitos fundamentais sociais é questionada em países cujas Constituições não os prevêem de maneira expressa ou não lhes atribuem eficácia plena. É o caso da Alemanha, por exemplo, cuja Constituição Federal praticamente não contém direitos fundamentais de maneira expressa (ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros Editores, 2008, p. 500), e de Portugal, que diferenciou o regime constitucional dos direitos, liberdades e garantias do regime constitucional dos direitos sociais (ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. 3ª Edição. Coimbra: Almedina, 2004, p. 385). A Constituição brasileira não só prevê expressamente a existência de direitos fundamentais sociais (artigo 6º), especificando seu conteúdo e forma de prestação (artigos 196, 201, 203, 205, 215, 217, entre outros), como não faz distinção entre os direitos e deveres individuais e coletivos (capítulo I do Título II) e os direitos sociais (capítulo II do Título II), ao estabelecer que os direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata (artigo 5º, § 1º, CF/88). Vê-se, pois, que os direitos fundamentais sociais foram acolhidos pela Constituição Federal de 1988 como autênticos direitos fundamentais. Não há dúvida ' deixe-se claro ' que as demandas que buscam a efetivação de prestações de saúde devem ser resolvidas a partir da análise de nosso contexto constitucional e de suas peculiaridades. Portanto, ante a impreterível necessidade de ponderações, são as circunstâncias específicas de cada caso que serão decisivas para a solução da controvérsia. Há que se partir, de toda forma, do texto constitucional e de como ele consagra o direito fundamental à saúde. Passo então a algumas considerações a respeito do tema. O direito à saúde é estabelecido pelo artigo 196 da Constituição Federal como (1) 'direito de todos' e (2) 'dever do Estado', (3) garantido mediante 'políticas sociais e econômicas (4) que visem à redução do risco de doenças e de outros agravos', (5) regido pelo princípio do 'acesso universal e igualitário' (6) 'às ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação'. Examinemos cada um desses elementos. (1) direito de todos: É possível identificar na redação do artigo constitucional tanto um direito individual quanto um direito coletivo à saúde. Dizer que a norma do artigo 196, por tratar de um direito social, consubstancia-se tão-somente em norma programática, incapaz de produzir efeitos, apenas indicando diretrizes a serem observadas pelo poder público, significaria negar a força normativa da Constituição. A dimensão individual do direito à saúde foi destacada pelo Ministro Celso de Mello, relator do AgR-RE nº 271.286-8/RS, ao reconhecer o direito à saúde como um direito público subjetivo assegurado à generalidade das pessoas, que conduz o indivíduo e o Estado a uma relação jurídica obrigacional. Ressaltou o Ministro que 'a interpretação da norma programática não pode transformá-la em promessa constitucional inconseqüente', impondo aos entes federados um dever de prestação positiva. Concluiu que 'a essencialidade do direito à saúde fez com que o legislador constituinte qualificasse como prestações de relevância pública as ações e serviços de saúde (CF, art. 197)', legitimando a atuação do Poder Judiciário nas hipóteses em que a Administração Pública descumpra o mandamento constitucional em apreço. (AgR-RE N. 271.286-8/RS, Rel. Celso de Mello, DJ 12.09.2000). Não obstante, esse direito subjetivo público é assegurado mediante políticas sociais e econômicas. Ou seja, não há um direito absoluto a todo e qualquer procedimento necessário para a proteção, promoção e recuperação da saúde, independentemente da existência de uma política pública que o concretize. Há um direito público subjetivo a políticas públicas que promovam, protejam e recuperem a saúde. Em decisão proferida na ADPF nº 45/DF, o Min. Celso de Mello consignou o seguinte: 'Desnecessário acentuar-se, considerando o encargo governamental de tornar efetiva a aplicação dos direitos econômicos, sociais e culturais, que os elementos componentes do mencionado binômio (razoabilidade da pretensão + disponibilidade financeira do Estado) devem configurar-se de modo afirmativo e em situação de cumulativa ocorrência, pois, ausentes qualquer desses elementos, descaracterizar-se-á a possibilidade estatal de realização prática de tais direitos'.(ADPF-MC Nº 45, Rel. Celso de Mello, DJ 4.5.2004). Dessa forma, a garantia judicial da prestação individual de saúde, prima facie, estaria condicionada ao não comprometimento do funcionamento do Sistema Único de Saúde. (2) dever do Estado: O dispositivo constitucional deixa claro que, para além do direito fundamental à saúde, há o dever fundamental de prestação de saúde por parte do Estado (União, Estados, Distrito Federal e Municípios). O dever de desenvolver políticas públicas que visem à redução de doenças, à promoção, à proteção e à recuperação da saúde está expresso no artigo 196. A competência comum dos entes da federação para cuidar da saúde consta do art. 23, II, da Constituição. União, Estados, Distrito Federal e Municípios são responsáveis solidários pela saúde junto ao indivíduo e à coletividade e, dessa forma, são legitimados passivos nas demandas cuja causa de pedir é a negativa, pelo SUS (seja pelo gestor municipal, estadual ou federal), de prestações na área de saúde. O fato do Sistema Único de Saúde ter descentralizado os serviços e conjugado os recursos financeiros dos entes da federação, com o objetivo de aumentar a qualidade e o acesso aos serviços de saúde, apenas reforça a obrigação solidária e subsidiária entre eles. As ações e serviços de saúde são de relevância pública, integrantes de uma rede regionalizada e hierarquizada, segundo o critério da subsidiariedade, e constituem um sistema único. Foram estabelecidas quatro diretrizes básicas para as ações de saúde: direção administrativa única em cada nível de governo; descentralização político-administrativa; atendimento integral, com preferência para as atividades preventivas; e participação da comunidade. O Sistema Único de Saúde está baseado no financiamento público e na cobertura universal das ações de saúde. Dessa forma, para que o Estado possa garantir a manutenção do sistema é necessário que se atente para a estabilidade dos gastos com a saúde e, conseqüentemente, para a captação de recursos. O financiamento do Sistema Único de Saúde, nos termos do art. 195, opera-se com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes. A Emenda Constitucional nº 29/2000, visando a dar maior estabilidade para os recursos de saúde, consolidou um mecanismo de co-financiamento das políticas de saúde pelos entes da Federação. A Emenda acrescentou dois novos parágrafos ao artigo 198 da Constituição, assegurando percentuais mínimos a serem destinados pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios para a saúde, o que possibilitará um aumento e uma maior estabilidade dos recursos. No entanto, Lei Complementar deverá estabelecer: os percentuais mínimos de que trata o § 2º; os critérios de rateio entre os entes; as normas de fiscalização, avaliação e controle das despesas com saúde; as normas de cálculo do montante a ser aplicado pela União; além, é claro, de especificar as ações e serviços públicos de saúde. O art. 200 da Constituição, que estabeleceu as competências do Sistema Único de Saúde - SUS, é regulamentado pelas Leis Federais 8.080/90 e 8.142/90. O SUS consiste no conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, da Administração direta e indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público, incluídas as instituições públicas federais, estaduais e municipais de controle de qualidade, pesquisa e produção de insumos, medicamentos, inclusive de sangue e hemoderivados, e de equipamentos para saúde. (3) garantido mediante políticas sociais e econômicas: A garantia mediante políticas sociais e econômicas ressalva, justamente, a necessidade de formulação de políticas públicas que concretizem o direito à saúde através de escolhas alocativas. É incontestável que, além da necessidade de se distribuir recursos naturalmente escassos por meio de critérios distributivos, a própria evolução da medicina impõe um viés programático ao direito à saúde, pois sempre haverá uma nova descoberta, um novo exame, um novo prognóstico ou procedimento cirúrgico, uma nova doença ou a volta de uma doença supostamente erradicada. (4) políticas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos: Tais políticas visam à redução do risco de doença e outros agravos, de forma a evidenciar sua dimensão preventiva. As ações preventivas na área da saúde foram, inclusive, indicadas como prioritárias pelo artigo 198, inciso II, da Constituição. (5) políticas que visem ao acesso universal e igualitário: O constituinte estabeleceu, ainda, um sistema universalista de acesso aos serviços públicos de saúde. Assim, as ações e prestações de saúde devem ser garantidas a todos, como decorrência lógica do princípio da dignidade da pessoa humana. Nesse sentido, a Ministra Ellen Gracie, na STA 91, ressaltou que, no seu entendimento, o art. 196 da Constituição refere-se, em princípio, à efetivação de políticas públicas que alcancem a população como um todo (STA 91-1/AL, Ministra Ellen Gracie, DJ 26.02.2007). O princípio do acesso igualitário e universal reforça a responsabilidade solidária dos entes da federação, impedindo, inclusive, a discriminação dos pacientes em razão do domicílio ou da nacionalidade. (6) ações e serviços para promoção, proteção e recuperação da saúde: O estudo do direito à saúde no Brasil leva à concluir que os problemas de eficácia social desse direito fundamental devem-se muito mais a questões ligadas à implementação e manutenção das políticas públicas de saúde já existentes - o que implica também a composição dos orçamentos dos entes da federação - do que à falta de legislação específica. Em outros termos, o problema não é de inexistência, mas de execução (administrativa) das políticas públicas pelos entes federados. Nessa perspectiva, talvez seja necessário redimensionar a questão da judicialização dos direitos sociais no Brasil. Isso porque, na maioria dos casos, a intervenção judicial não ocorre tendo em vista uma omissão (legislativa) absoluta em matéria de políticas públicas voltadas à proteção do direito à saúde, mas em razão de uma necessária determinação judicial para o cumprimento de políticas já estabelecidas. Portanto, não se cogita do problema da interferência judicial em âmbitos de livre apreciação ou de ampla discricionariedade de outros poderes quanto à formulação de políticas públicas. Esse dado pode ser importante para a construção de um critério ou parâmetro para a decisão em casos como este, no qual se discute, primordialmente, o problema da interferência do Poder Judiciário na esfera dos outros Poderes. O primeiro dado a ser considerado é a existência, ou não, de política estatal que abranja a prestação de saúde pleiteada pela parte no processo. Ao deferir uma prestação de saúde incluída entre as políticas sociais e econômicas formuladas pelo Sistema Único de Saúde, o judiciário não está criando política pública, mas apenas determinando o seu cumprimento. Nesses casos, a existência de um direito subjetivo público a determinada política pública de saúde parece ser evidente. Se a prestação de saúde pleiteada não for abrangida pelas políticas do SUS, é imprescindível distinguir se a não-prestação decorre de uma omissão legislativa ou administrativa, ou de uma decisão administrativa de não fornecer. Nesses casos, a ponderação dos princípios em conflito dará a resposta ao caso concreto. Importante, no entanto, que os critérios de justiça comutativa que orientam a decisão judicial sejam compatibilizados com os critérios das justiças distributiva e social que determinam a elaboração de políticas públicas. Em outras palavras, ao determinar o fornecimento de um serviço de saúde (internação hospitalar, cirurgia, medicamentos, etc.), o julgador precisa assegurar-se de que o Sistema de Saúde possui condições de arcar não só com as despesas da parte, mas também com as despesas de todos os outros cidadãos que se encontrem em situação idêntica. Essas considerações já são suficientes para a análise do pedido. O argumento central apontado pela União reside na violação ao princípio da separação de poderes (art. 2º, CF/88), formulado em sentido forte, que veda intromissão do Poder Judiciário no âmbito de discricionariedade do Poder Executivo. No caso, entendo inexistente a ocorrência de grave lesão à ordem pública, por violação ao art. 2º da Constituição. A alegação de violação à separação dos Poderes não justifica a inércia do Poder Executivo em cumprir seu dever constitucional de garantia do direito à saúde de todos (art. 196), com a absoluta prioridade para o atendimento das crianças e adolescentes (art. 227), legalmente estabelecido pelas normas que regem o Sistema Único de Saúde, e tecnicamente especificado pelas Portarias do Ministério da Saúde. Não se pode conceber grave lesão à economia da União, diante de determinação constitucional expressa de primazia na formulação de políticas sociais e econômicas nesta área, bem como na alta prioridade de destinação orçamentária respectiva. A Constituição indica de forma clara os valores a serem priorizados, corroborada pelo disposto nas Leis Federais 8.080/90 e 8.142/90. Tais determinações devem ser seriamente consideradas quando da formulação orçamentária, pois representam comandos vinculativos para o poder público. Ademais, a decisão impugnada está em consonância com a jurisprudência desta Corte, a qual firmou entendimento, em casos como o presente, de que se impõe ao Estado a obrigação constitucional de criar condições objetivas que possibilitem, de maneira concreta, a efetiva proteção de direitos constitucionalmente assegurados. Nesse sentido, destacam-se os seguintes julgados: RE 271.286/RS, Rel. Min. Celso de Mello; AI 238.328-0, Rel. Min. Marco Aurélio). Quanto à possibilidade de intervenção do Poder Judiciário, destaco a ementa da decisão proferida na ADPF-MC 45/DF, relator Celso de Mello, DJ 29.4.2004: 'EMENTA: ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. A QUESTÃO DA LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DO CONTROLE E DA INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO EM TEMA DE IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS, QUANDO CONFIGURADA HIPÓTESE DE ABUSIVIDADE GOVERNAMENTAL. DIMENSÃO POLÍTICA DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL ATRIBUÍDA AO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. INOPONIBILIDADE DO ARBÍTRIO ESTATAL À EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS, ECONÔMICOS E CULTURAIS. CARÁCTER RELATIVO DA LIBERDADE DE CONFORMAÇÃO DO LEGISLADOR. CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA CLÁUSULA DA `RESERVA DO POSSÍVEL'. NECESSIDADE DE PRESERVAÇÃO, EM FAVOR DOS INDIVÍDUOS, DA INTEGRIDADE E DA INTANGIBILIDADE DO NÚCLEO CONSUBSTANCIADOR DO `MÍNIMO EXISTENCIAL'. VIABILIDADE INSTRUMENTAL DA ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO NO PROCESSO DE CONCRETIZAÇÃO DAS LIBERDADES POSITIVAS (DIREITOS CONSTITUCIONAIS DE SEGUNDA GERAÇÃO).' Nesse sentido é a lição de Christian Courtis e Victor Abramovich (ABRAMOVICH, Victor; COURTS, Christian, Los derechos sociales como derechos exigibles, Trotta, 2004, p. 251): 'Por ello, el Poder Judicial no tiene la tarea de diseñar políticas públicas, sino la de confrontar el diseño de políticas asumidas con los estándares jurídicos aplicables y ' en caso de hallar divergencias ' reenviar la cuestión a los poderes pertinentes para que ellos reaccionen ajustando su actividad en consecuencia. Cuando las normas constitucionales o legales fijen pautas para el diseño de políticas públicas y los poderes respectivos no hayan adoptado ninguna medida, corresponderá al Poder Judicial reprochar esa omisión y reenviarles la cuestión para que elaboren alguna medida. Esta dimensión de la actuación judicial puede ser conceptualizada como la participación en un > entre los distintos poderes del Estado para la concreción del programa jurídico-político establecido por la constitución o por los pactos de derechos humanos.' Dos documentos acostados aos autos, ressalto os seguintes dados fáticos como imprescindíveis para a análise do pleito: a) o Ministério Público Federal e o Ministério Público do Estado do Ceará instauraram, conjuntamente, o Inquérito Civil Público nº 1.15.003.000048/2007-94 (em 23.05.2007) para apurar o alto índice de incidência de casos de dengue e o número preocupante de óbitos na região de Sobral (fl. 50); b) o Município de Sobral, uma macro-região do Sistema Único de Saúde no Ceará que compreende 61 municípios, possui apenas 9 leitos de Unidades de Terapia Intensiva ' UTI no Hospital Santa Casa de Misericórdia (entidade filantrópica), que atende 1,6 milhão de habitantes (fl. 51); c) inexistem leitos de UTI pediátrica para atender as crianças de 28 dias a 14 anos (fl. 51); e d) inexistem leitos de UTI neonatal para o atendimento de recém-nascidos que necessitem de tratamento intensivo em toda a macro-região do SUS de Sobral (fl. 51). O Coordenador do Serviço de Neonatologia da Santa Casa de Misericórdia testemunhou que: '(...)diariamente todos os leitos ficam preenchidos, e há um improviso porque a demanda sempre supera a capacidade instalada; que aproximadamente 90% dos pacientes internados apresentam perfil de UTI neonatal; que estes pacientes ficam sendo atendidos em leitos de média complexidade na neonatologia e ficam, a depender do caso, esperando vagas nos hospitais de Fortaleza (...) que a mortalidade neonatal é muito alta, devido a um carente acompanhamento da gestante e da falta de condições técnicas do serviço, e os recém-nascidos com peso inferior a 1,5 Kg precisam de cuidados intensivos (...) que o recém-nascido exige um cuidado especial, já que é um ser indefeso, com baixa imunidade, especialmente quando exposto a agentes infectantes presentes no hospital; que numa região pobre como o norte do Ceará, muitas vezes, nem mesmo a proporcionalidade estabelecida pelas normas do SUS são adequadas, já que a realidade local é influenciada por fatores próprios da pobreza, tais como a falta de acompanhamento das grávidas, planejamento familiar etc., o que existe em menor grau nas regiões mais desenvolvidas; que desde o início da estruturação da maternidade, houve a identificação da necessidade de criação de leitos UTI neonatal, mas as autoridades não avançam na resolução do problema (...) que há, no total, 9 incubadoras no setor de média complexidade, atendendo pacientes de alto risco; que, geralmente, há a dolorosa escolha médica de retirar paciente em estado grave da incubadora para a substituição por outro em estado mais grave; que o ideal seria 1 leito de UTI neonatal para cada 1.000 nascimentos; que além de poucas vagas em Fortaleza para transferência de pacientes em alto risco, há problema de falta de equipe e veículos para transferência (...) que o recurso repassado para fazer face à UTI pediátrica é menor que aquele destinado à neonatal (...).' (fls. 52-53) A Diretora Administrativa da Santa Casa, Regina Célia Carvalho da Silva, declarou que: '(...) Por falta de vagas no hospital e em outros da região, o paciente fica internado nos leitos de observação e em macas, sendo que os mais graves ficam no leito de ressuscitação. Que são colocadas macas na sala de ressuscitação e também nos corredores do hospital por falta de vagas. Que a Santa Casa tem 9 leitos de UTI, sendo que nenhum deles é pediátrico ou para UTI neonatal (...)'. (fl. 55). O Secretário Municipal de Saúde de Sobral, Arnaldo Ribeiro Costa Lima, disse ao Ministério Público o seguinte: 'Que, no total, são 9 leitos de UTI adulta, presentes na Santa Casa e 10 de UTI especificamente cardiológica no hospital do Coração; que na macro-região de Sobral, a proporção é de 88.000 pessoas para cada leito de UTI, enquanto a recomendação da Organização mundial de Saúde indica a necessidade de 10.000 pessoas para cada leito da UTI; que cada paciente internado custa R$ 900 diariamente, e o Estado do Ceará repasse nenhum valor, sendo que a União repassa R$ 450 diários por leito; que há necessidade de que o Estado repasse pelo menos R$ 150 mil por mês; que há projeto do aumento do número de UTIs em duas versões; que o primeiro não se mostra viável financeiramente, e o segundo projeto, levado em consideração pelo Município de Sobral, visa a instalação de 10 leitos de UTI neonatal e 8 pediátricas, mantendo-se os 10 leitos de UTI adulta (em verdade quis referir-se aos 9 já existentes) (...) que quando chega um paciente em estado grave, e inexiste leito disponível, o direcionamento do paciente é feito por uma central estadual de regulação de leitos, cabendo à prefeitura transportar o paciente para o local de acordo com a vaga encontrada (...).' (fls. 55-56) A decisão impugnada, ao deferir a antecipação de tutela postulada, descreve a situação precária da saúde pública na Região do SUS de Sobral/CE, nos seguintes termos: '(...) Esse fato, porém, não nos autoriza a aquiescer com as políticas públicas adotadas em relação ao Sistema Único de Saúde, o qual, embora referência em determinadas áreas de sua atuação (e.g. fornecimento de medicamentos aos infectados com o vírus HIV), está deixando a desejar no que se refere à saúde dos habitantes da região norte do Estado do Ceará. É que da análise da documentação encartada aos autos, percebe-se claramente que o número de leitos de UTI que atende à vasta área e ao denso grupo populacional é desproporcional à demanda por serviços de alta complexidade. (...) Imergindo propriamente no mérito da discussão que gravita em torno do tema abordado na presente demanda e a partir da análise da sua causa de pedir, estou em que as fotografias de fls. 29/39 são uma demonstração inicial e eloqüente da precariedade do atendimento que vem sendo dispensado à população da região norte do Estado do Ceará no único hospital de alta complexidade da região conveniado ao SUS: os flagrantes exibem pessoas (inclusive crianças) sendo atendidas nos corredores, em acomodações inadequadas e em condições incompatíveis com o que exige o estado de saúde. A tanto some-se que a Tabela V de fl. 52 sinaliza que a macroregião de Sobral é a que se encontra na pior relação leito/habitante no Estado, considerada a Portaria nº 1.101/GM de 2002, do Ministério da Saúde, a qual estabelece os parâmetros de cobertura assistencial no âmbito do Sistema Único de Saúde ' SUS a partir de recomendações técnicas ideais, constituindo-se em referências para orientar os gestores do SUS dos três níveis de governo no planejamento, programação e priorização das ações de saúde a serem desenvolvidas (art. 1º e parágrafo único). Ademais, a Portaria nº 3.432/GM, de 12 de agosto de 2002, do Ministério da Saúde, ao estatuir sobre os critérios de classificação entre as diferentes Unidades de Tratamento Intensivo ' UTI, fixa que `Todo hospital que atenda gestante de alto risco deve dispor de leitos de tratamento intensivo adulto e neonatal' (item 1.5 do anexo). Ou seja, contando com apenas nove leitos de UTI para o atendimento de uma população estimada em mais de 1,5 milhão de habitantes, o único hospital de alta complexidade conveniado ao SUS da região norte nem de longe corresponde às recomendações do Ministério da Saúde. É certo que há informações dando conta da existência de aproximadamente uma dezena de leitos de UTI no Hospital do Coração, também em Sobral; porém, as internações naquela unidade hospitalar se vinculam à especialidade cardiológica, o que, de certa forma, restringe o espectro de sua atuação. Desse quadro, vislumbra-se que a região dispõe de menos da metade do número mínimo de leitos comuns por macroregião, defasagem essa que também diz respeito aos leitos de UTI, cuja necessidade é estimada em 4% a 10% dos leitos hospitalares, em média (v. Item 3.5, letra `b', do Anexo da Portaria 1.101/2002). Isso sem falar da absoluta ausência de leitos de UTI pediátrica e neonatal. Tais dados revelam o descaso com que vem sendo tratada a saúde na região norte do Ceará, submetendo toda a sua população às conseqüências dessa omissão, as quais resultaram em diversas mortes que certamente poderiam ter sido evitadas.' (fl. 81/82) Verifico que a decisão objeto do pedido de suspensão, especialmente na parte em que determinou a instalação de UTIs neonatais e pediátricas, apenas determinou o cumprimento de política pública constitucionalmente definida como prioritária (art. 196 c/c 227, caput, e §1º, I) e especificada de maneira clara e concreta por atos normativos do próprio Ministério da Saúde. A Portaria MS/GM nº 1.101, de 13.06.2002, que estabelece os parâmetros de cobertura assistencial no âmbito do SUS, especifica a quantidade mínima de leitos de Unidades de Tratamento Intensivo de acordo com o número de habitantes de cada região: '3.5. Necessidade de Leitos Hospitalares Em linhas gerais, estima-se a necessidade de leitos hospitalares da seguinte forma: a) Leitos Hospitalares Totais = 2,5 a 3 leitos para cada 1.000 habitantes; b) Leitos de UTI: calcula-se, em média, a necessidade de 4% a 10% do total de Leitos Hospitalares; (média para municípios grandes, regiões, etc.); c) Leitos em Unidade de Recuperação (pós-cirúrgico): calcula-se, em média, 2 a 3 leitos por Sala Cirúrgica; d) Leitos para pré-parto: calcula-se, no mínimo, 2 leitos por Sala de Parto.' A Portaria MS/GM nº 3.432, de 13.08.1998, alterada pela Portaria nº 332, de 28.03.2000, que estabelece critérios de classificação para as Unidades de Tratamento Intensivo, torna obrigatória a existência de leitos de UTI neonatal nas unidades que possuam maternidade de alto risco: '1.5. Todo hospital que atenda gestante de alto risco deve dispor de leitos de tratamento intensivo adulto e neonatal.' Inocorrentes os pressupostos contidos no art. 4º da Lei no 8.437/1992, verifico que a suspensão da decisão atacada poderá ocasionar graves e irreparáveis danos à saúde e à vida da população abrangida pela macro-região do Município de Sobral. Reforçando esse entendimento, a Procuradoria-Geral da República asseverou o seguinte: '[...] A ponderação dos valores discutidos, neste caso, portanto, leva ao indeferimento do pedido de contracautela, uma vez que a suspensão dos efeitos da decisão impugnada afrontaria a necessidade premente dos serviços de saúde em causa pela população, mostrando-se indubitável, na espécie, o chamado perigo de dano inverso, a demonstrar a elevada plausibilidade da pretensão veiculada na ação civil, minando, em contrapartida, a razoabilidade da suspensão requerida' - (fl. 107). Contudo, a decisão impugnada fixou multa diária no valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais) para cada um dos réus: 'À luz do exposto e de tudo o mais que dos autos consta, concedo a liminar na forma como pleiteada (art. 12, Lei nº 7.347/85), pelo que determino, sob pena de multa diária individualizada (art. 11, LACP) para cada um dos réus, na hipótese de descumprimento de quaisquer dos comandos da decisão, no valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais): i.) ao MUNICÍPIO DE SOBRAL que providencie, imediatamente, a transferência de todos os pacientes que se encontram ou que venham a se encontrar necessitando de atendimento em Unidades de Tratamento Intensivo ' UTI, para hospitais públicos ou particulares detentores de tais unidades de tratamento, que deverão ser contratados para esse fim, competindo à UNIÃO e ao ESTADO DO CEARÁ, conjunta ou separadamente através do SUS, a adoção dos meios necessários para auxiliar o MUNICÍPIO DE SOBRAL no cumprimento das medidas acima especificadas. ii.) que através dos seus órgãos de gestão e execução, no âmbito de suas respectivas competências, a UNIÃO, o ESTADO DO CEARÁ e o MUNICÍPIO DE SOBRAL, iniciem, no prazo máximo de 90 (noventa) dias, as ações tendentes à instalação e ao funcionamento de pelo menos 10 (dez) novos leitos de UTIs adulta, 10 (dez) leitos de UTI neonatal e 10 (dez) leitos de UTI pediátrica;' Entendo que tão-somente neste ponto a decisão impugnada gera lesão à economia pública, ou seja, apenas quanto à fixação de multa por não cumprimento, em 90 (noventa) dias, da determinação de iniciar as ações tendentes à instalação e ao funcionamento de pelo menos 10 (dez) novos leitos de UTIs adulta, 10 (dez) leitos de UTI neonatal e 10 (dez) leitos de UTI pediátrica. Para se chegar a essa constatação, basta observar que a fixação de multa em valor elevado e sem limitação máxima constitui ônus excessivo ao Poder Público e à coletividade, pois impõe remanejamento financeiro das contas estaduais, em detrimento de outras políticas públicas estaduais de alta prioridade. Dessa forma, remanesce íntegra a decisão, quanto à possibilidade de multa por não transferir os pacientes que necessitem de atendimento em Unidade de Tratamento Intensivo para hospitais, públicos ou particulares, que as possuam. Destaco, contudo, que não se impede a fixação de multa por descumprimento de decisão judicial. O que não se pode perder de vista é a possibilidade de vultoso prejuízo à coletividade, por multa fixada em decisão liminar baseada em juízo cognitivo sumário. Assim, não vislumbro grave lesão à ordem, à saúde, à segurança ou à economia públicas, valores protegidos pela Lei no 8.437, com exceção da fixação de multa diária em valor demasiadamente elevado. Ante o exposto, defiro parcialmente o pedido de suspensão, tão-somente quanto à fixação de multa diária por descumprimento da ordem judicial quanto ao início das ações para a instalação e funcionamento dos leitos de UTIs em 90 dias, mantendo a decisão liminar nos seus demais termos. Comunique-se com urgência. Publique-se. Brasília, 14 de outubro de 2008. Ministro GILMAR MENDES Presidente 1

Partes

Pacte.(s): Valzemir José Duarte ou Valzenir José Duarte

impte.(S): Bruno César Gonçalves da Silva e Outro(a/S)

coator(a/S)(Es): Relator do Habeas Corpus Nº 109040 do Superior Tribunal de Justiça

Publicação

DJe-199 DIVULG 20/10/2008 PUBLIC 21/10/2008

Observação

Legislação Feita por:(Esb)

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