Acórdão nº 2005/0086585-2 de T1 - PRIMEIRA TURMA

Número do processo2005/0086585-2
Data27 Março 2007
ÓrgãoPrimeira Turma (Superior Tribunal de Justiça do Brasil)

RECURSO ESPECIAL Nº 753.565 - MS (2005/0086585-2)

RELATOR : MINISTRO LUIZ FUX
RECORRENTE : ESTADO DE MATO GROSSO DO SUL
PROCURADOR : BELMIRES SOLES RIBEIRO E OUTRO(S)
RECORRIDO : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO MATO GROSSO DO SUL
INTERES. : MUNICÍPIO DE IVINHEMA E OUTRO
ADVOGADO : SEM REPRESENTAÇÃO NOS AUTOS

EMENTA

ADMINISTRATIVO. CONSTITUCIONAL. ART. 127 DA CF/88. ART. 7. DA LEI N.º 8.069/90. DIREITO AO ENSINO FUNDAMENTAL AOS MENORES DE SEIS ANOS "INCOMPLETOS". NORMA CONSTITUCIONAL REPRODUZIDA NO ART. 54 DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. NORMA DEFINIDORA DE DIREITOS NÃO PROGRAMÁTICA. EXIGIBILIDADE EM JUÍZO. INTERESSE TRANSINDIVIDUAL ATINENTE ÀS CRIANÇAS SITUADAS NESSA FAIXA ETÁRIA. CABIMENTO E PROCEDÊNCIA.

  1. O direito à educação, insculpido na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente, é direito indisponível, em função do bem comum, maior a proteger, derivado da própria força impositiva dos preceitos de ordem pública que regulam a matéria.

  2. O direito constitucional ao ensino fundamental aos menores de seis anos incompletos é consagrado em norma constitucional reproduzida no art. 54 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n.º 8.069/90):

    "Art. 54. É dever do Estado assegurar à criança e ao adolescente: (...) V - acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um; (omissis)"

  3. In casu, como anotado no aresto recorrido "a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional prever, em seu art. 87, § 3º, inciso I, que a matrícula no ensino fundamental está condicionada a que a criança tenha 7 (sete) anos de idade, ou facultativamente, a partir dos seis anos, a Constituição Federal , em seu art. 208, inciso V, dispõe que o acesso aos diversos níveis de educação depende da capacidade de cada um, sem explicitar qualquer critério restritivo, relativo a idade. O dispositivo constitucional acima mencionado, está ínsito no art. 54, inciso V, do Estatuto da Criança e do Adolescente, sendo dever do Estado assegurar à criança e ao adolescente o acesso à educação, considerada direito fundamental. Destarte, havendo nos autos (fls. 88 a 296), comprovação de capacidade das crianças residentes em Ivinhema e Novo Horizonte do Sul, através de laudos de avaliação psicopedagógica, considerando-as aptas para serem matriculadas no ensino infantil e fundamental, tenho que dever ser-lhes assegurado o direito constitucional à educação (...)"

  4. Conclui-se, assim, que o decisum impugnado assegurou um dos consectários do direito à educação, fundado nas provas, concluindo que a capacidade de aprendizagem da criança deve ser analisada de forma individual, não genérica, porque tal condição não se afere única e exclusivamente pela idade cronológica, o que conduz ao não conhecimento do recurso nos termos da Súmula 7 do STJ, verbis: "A pretensão de simples reexame de prova não enseja Recurso Especial".

  5. Releva notar que uma Constituição Federal é fruto da vontade política nacional, erigida mediante consulta das expectativas e das possibilidades do que se vai consagrar, por isso que cogentes e eficazes suas promessas, sob pena de restarem vãs e frias enquanto letras mortas no papel. Ressoa inconcebível que direitos consagrados em normas menores como Circulares, Portarias, Medidas Provisórias, Leis Ordinárias tenham eficácia imediata e os direitos consagrados constitucionalmente, inspirados nos mais altos valores éticos e morais da nação sejam relegados a segundo plano. Prometendo o Estado o direito à creche, cumpre adimpli-lo, porquanto a vontade política e constitucional, para utilizarmos a expressão de Konrad Hesse, foi no sentido da erradicação da miséria intelectual que assola o país. O direito à creche é consagrado em regra com normatividade mais do que suficiente, porquanto se define pelo dever, indicando o sujeito passivo, in casu, o Estado.

  6. Consagrado por um lado o dever do Estado, revela-se, pelo outro ângulo, o direito subjetivo da criança. Consectariamente, em função do princípio da inafastabilidade da jurisdição consagrado constitucionalmente, a todo direito corresponde uma ação que o assegura, sendo certo que todas as crianças nas condições estipuladas pela lei encartam-se na esfera desse direito e podem exigi-lo em juízo. A homogeneidade e transindividualidade do direito em foco enseja a propositura da ação civil pública.

  7. A determinação judicial desse dever pelo Estado, não encerra suposta ingerência do judiciário na esfera da administração. Deveras, não há discricionariedade do administrador frente aos direitos consagrados, quiçá constitucionalmente. Nesse campo a atividade é vinculada sem admissão de qualquer exegese que vise afastar a garantia pétrea.

  8. Um país cujo preâmbulo constitucional promete a disseminação das desigualdades e a proteção à dignidade humana, alçadas ao mesmo patamar da defesa da Federação e da República, não pode relegar o direito à educação das crianças a um plano diverso daquele que o coloca, como uma das mais belas e justas garantias constitucionais.

  9. Afastada a tese descabida da discricionariedade, a única dúvida que se poderia suscitar resvalaria na natureza da norma ora sob enfoque, se programática ou definidora de direitos. Muito embora a matéria seja, somente nesse particular, constitucional, porém sem importância revela-se essa categorização, tendo em vista a explicitude do ECA, inequívoca se revela a normatividade suficiente à promessa constitucional, a ensejar a acionabilidade do direito consagrado no preceito educacional.

  10. As meras diretrizes traçadas pelas políticas públicas não são ainda direitos senão promessas de lege ferenda, encartando-se na esfera insindicável pelo Poder Judiciário, qual a da oportunidade de sua implementação.

  11. Diversa é a hipótese segundo a qual a Constituição Federal consagra um direito e a norma infraconstitucional o explicita, impondo-se ao judiciário torná-lo realidade, ainda que para isso, resulte obrigação de fazer, com repercussão na esfera orçamentária.

  12. Ressoa evidente que toda imposição jurisdicional à Fazenda Pública implica em dispêndio e atuar, sem que isso infrinja a harmonia dos poderes, porquanto no regime democrático e no estado de direito o Estado soberano submete-se à própria justiça que instituiu. Afastada, assim, a ingerência entre os poderes, o judiciário, alegado o malferimento da lei, nada mais fez do que cumpri-la ao determinar a realização prática da promessa constitucional.

  13. Ad argumentandum tantum, o direito do menor à freqüência de escola, insta o Estado a desincumbir-se do mesmo através da sua rede própria. Deveras, matricular um menor de seis anos no início do ano e deixar de fazê-lo com relação aquele que completaria a referida idade em um mês, por exemplo, significa o mesmo que tentar legalizar a mais violenta afronta ao princípio da isonomia, pilar não só da sociedade democrática anunciada pela Carta Magna, mercê de ferir de morte a cláusula de defesa da dignidade humana.

  14. O Estado não tem o dever de inserir a criança numa escola particular, porquanto as relações privadas subsumem-se a burocracias sequer previstas na Constituição. O que o Estado soberano promete por si ou por seus delegatários é cumprir o dever de educação mediante o oferecimento de creche para crianças de zero a seis anos. Visando ao cumprimento de seus desígnios, o Estado tem domínio iminente sobre bens, podendo valer-se da propriedade privada, etc. O que não ressoa lícito é repassar o seu encargo para o particular, quer incluindo o menor numa 'fila de espera', quer sugerindo uma medida que tangencia a legalidade, porquanto a inserção numa creche particular somente poderia ser realizada sob o pálio da licitação ou delegação legalizada, acaso a entidade fosse uma longa manu do Estado ou anuísse, voluntariamente, fazer-lhe as vezes. Precedente jurisprudencial do STJ: RESP 575.280/SP, desta relatoria p/ acórdão, publicado no DJ de 25.10.2004.

  15. O Supremo Tribunal Federal, no exame de hipótese análoga, nos autos do RE 436.996-6/SP, Relator Ministro Celso de Mello, publicado no DJ de 07.11.2005, decidiu verbis:

    "CRIANÇA DE ATÉ SEIS ANOS DE IDADE. ATENDIMENTO EM CRECHE E EM PRÉ-ESCOLA. EDUCAÇÃO INFANTIL. DIREITO ASSEGURADO PELO PRÓPRIO TEXTO CONSTITUCIONAL (CF, ART. 208, IV). COMPREENSÃO GLOBAL DO DIREITO CONSTITUCIONAL À EDUCAÇÃO. DEVER JURÍDICO CUJA EXECUÇÃO SE IMPÕE AO PODER PÚBLICO, NOTADAMENTE AO MUNICÍPIO(CF, ART. 211, § 2º). RECURSO EXTRAORDINÁRIO CONHECIDO E PROVIDO.

    - A educação infantil representa prerrogativa constitucional indisponível, que, deferida às crianças, a estas assegura, para efeito de seu desenvolvimento integral, e como primeira etapa do processo de educação básica, o atendimento em creche e o acesso à pré-escola (CF, art. 208, IV).

    - Essa prerrogativa jurídica, em conseqüência, impõe, ao Estado, por efeito da alta significação social de que se reveste a educação infantil, a obrigação constitucional de criar condições objetivas que possibilitem, de maneira concreta, em favor das "crianças de zero a seis anos de idade" (CF, art. 208, IV), o efetivo acesso e atendimento em creches e unidades de pré-escola, sob pena de configurar-se inaceitável omissão governamental, apta a frustrar, injustamente, por inércia, o integral adimplemento, pelo Poder Público, de prestação estatal que lhe impôs o próprio texto da Constituição Federal.

    - A educação infantil, por qualificar-se como direito fundamental de toda criança, não se expõe, em seu processo de concretização, a avaliações meramente discricionárias da Administração Pública, nem se subordina a razões de puro pragmatismo governamental.

    - Os Municípios - que atuarão, prioritariamente, no ensino fundamental e na educação infantil (CF, art. 211, § 2º) - não poderão demitir-se do mandato constitucional, juridicamente vinculante, que lhes foi outorgado pelo art. 208, IV, da Lei Fundamental da República, e que representa fator de limitação da discricionariedade político--administrativa dos entes municipais, cujas...

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