Decisão da Presidência nº 31901 de STF. Supremo Tribunal Federal, 11 de Marzo de 2014

Número do processo31901
Data11 Março 2014

Vistos etc.

Trata-se de mandado de segurança, com pedido de liminar, impetrado por Agropastoril, Madeireira e Colonizadora Sanhaço Ltda.

e Mandarim Agropecuária Ltda.

contra ato que, naquela data, se reputava de iminente concretização pela Presidenta da República, e consistente na edição de decreto homologatório da demarcação da Reserva Indígena Kayabi, na fronteira dos Estados do Mato Grosso e Pará.

A inicial assim resume as circunstâncias da impetração: As impetrantes são proprietárias de diversas áreas nas Comarcas de Alta Floresta e Apiacás, Estado do Mato Grosso, todas adquiridas do Estado do Mato Grosso por intermédio da INTERMAT – Instituto de Terras do Mato Grosso, nos idos de dezembro de (...) Importante salientar que antes de as requerentes terem adquirido as mencionadas terras, houve, por parte da FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO – FUNAI a demarcação da Terra Indígena Kayabi, conforme homologação pelo Decreto nº 87.842, de 22.11.82, do então Presidente da República (...).

Todavia, após as conclusões dos trabalhos, a homologação pelo Presidente da República e o registro no Cartório de Imóveis, a FUNAI entendeu de reabrir a questão, dizendo que a demarcação teria ocasionado uma diminuição relativamente à área levantada em 1945, pelo Decreto Estadual nº 251, de 9 de março daquele ano.

Assim, em 1993 foi determinada, pela Portaria nº 1.137/93 da FUNAI, a formação de um Grupo de Trabalho – GT para a Identificação e Delimitação da Terra Indígena KAYABI nos moldes pretendidos para a ampliação, resultando daí Relatório, de 15 de setembro de 1994 (...).

O relatório sugeriu que houve erro na anterior demarcação realizada pela própria FUNAI e que a área de 117.245 hectares deveria na verdade ser de 1.400.000 hectares.

Em decorrência, pela Portaria nº 1.149, de 2 de outubro de 2002, o Ministro da Justiça declarou de posse permanente dos grupos indígenas Kayabi e Apiaká a Terra Indígena KAYABI (...).

Todavia, parte da área descrita inclui terras pertencentes às impetrantes, razão pela qual se insurgiram perante a Autoridade administrativa quanto à nova descrição, alegando que tendo sido precedentemente definida a área necessária a abrigar a comunidade indígena, não se coadunaria com os princípios constitucionais e legais uma nova demarcação.

E, não atendida a insurgência, impetrou-se mandado de segurança (...), que restou denegado à consideração de que o tema envolveria dilação probatória.

Entrementes, o Ministro da Justiça declarou de posse permanente dos indígenas a área levantada pelos aludidos estudos da FUNAI, determinando a demarcação da terra, para posterior homologação, conforme a mencionada Portaria 1.149, publicada no DOU de 3 de outubro de 2002 (...) Certo, de outro lado, que o Ministério do Exército já está procedendo aos trabalhos de demarcação. (doc. 2, fls. 2-8).

Estaria presente, portanto, o fundado receio de que a autoridade apontada como coatora viesse a homologar a nova demarcação.

Tal possibilidade representaria potencial ofensa a direito líquido e certo, pois, segundo a inicial, (...) o Colendo Supremo Tribunal Federal decidiu a questão relativa à demarcação da Reserva Indígena Raposa Serra do Sol (Pet nº 3.388), oriunda do Estado de Roraima, de forma a estabelecer que uma vez realizada a demarcação, ficaria vedada a sua ampliação, inclusive daquelas terras reconhecidas como indígenas antes da Constituição de 1988, nos termos do voto proferido pelo Ministro Menezes Direito (doc. 2, fl. 9).

Concluiu a inicial, portanto, que não seria possível a alteração de área indígena anteriormente delimitada, entendimento que teria apoio na garantia da segurança jurídica; a esse respeito, assim se manifestaram os autores: Em suma, se a cada momento pudesse o Poder Executivo modificar o estudo sobre a real área que deve ser atribuída aos povos indígenas – ampliando a demarcação outrora finda – instalar-se-ia a absoluta insegurança jurídica.

Pior, todos os não índios teriam progressivamente de se acomodar em parcelas cada vez menores do território nacional, caso o crescimento das comunidades indígenas revele a necessidade de ampliação das respectivas terras para acomodá-las convenientemente.

Nenhuma demarcação poderia jamais ser considerada definitiva pelos particulares, já que, a qualquer momento, a questão referente à sua limitação territorial poderia ser revista, a depender dos programas previstos por cada novo Governo para a área indígena (doc. 5, fl. 17).

Os pedidos foram assim deduzidos: a) a concessão de medida liminar (...) a fim de que seja determinado à digna autoridade coatora que se abstenha de homologar a demarcação da terra Indígena Kayabi, nos termos da Portaria nº 1.149, de 3 de outubro de 2002, até o julgamento de mérito do presente mandamus; b) (...) seja concedida a ordem, para determinar que a autoridade coatora não homologue a nova demarcação da área indígena (doc. 2, fls. 18-9).

Por despacho, determinei a notificação da autoridade coatora e da FUNAI para que prestassem as informações necessárias, antes do exame do pedido de liminar.

A Fundação Nacional do Índio – FUNAI – requereu seu ingresso no polo passivo da ação, em resposta à notificação determinada (doc. 14), e prestou as seguintes informações: Conforme demonstra a Informação Técnica nº 57/DPT/2013 da Diretoria de Proteção Territorial da FUNAI, (...) não se cuida de revisão dos limites da área da Terra Indígena Kayabi, mas sim dos primeiros estudos destinados a identificação e delimitação das áreas indígenas Munduruku e Kayabi.

Com efeito, o Decreto nº 87.842, de 22.11.1982, que homologou a Terra Indígena Kayabi era desprovida de estudos antropológicos.

Com a promulgação da Constituição da República em 1988 houve a necessidade de adequar os procedimentos ao disposto no artigo 231, de forma que para o estabelecimento da territorialidade indígena há necessidade de levar em conta seus usos, costumes e tradições.

Em suma, não há na hipótese a revisão da demarcação da Terra Indígena Kayabi, mas o desdobramento dos primeiros estudos antropológicos, os quais seguiram os ditames do artigo 231 da Constituição da República (doc. 14, fl. 5).

As informações prestadas pela autoridade coatora (doc. 71) destacaram (...) o cumprimento de todas as fases do procedimento demarcatório, acrescentando que: Foi aprovado o Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação da citada Terra Indígena pelo Presidente da FUNAI, tendo sido publicado no DOU n. 120, de 25 de junho de 1999, no Diário Oficial do Mato Grosso do Sul, de 1º de julho de 1999 e encaminhado aos Municípios.

Posteriormente, o Ministro de Estado da Justiça, por meio da Portaria n. 1149, de 2 de outubro de 2002, declarou de posse permanente dos grupos indígenas Kayabi, Mundukuru e Apiaká, a Terra Indígena Kayabi, delimitando sua superfície e perímetro.

Nesse mesmo ato determinou-se que a FUNAI promovesse a demarcação administrativa, para posterior homologação.

Por fim, os trabalhos de demarcação da referida Terra Indígena foram concluídos no ano de 2002, por meio do Acordo de Cooperação firmado com o Comando do Exército doc. 71, fls. 6-7).

Por petição de 6.5.2013, os autores requereram a emenda da inicial, para convolar o mandado de segurança à modalidade repressiva, pois por Decreto publicado no Diário Oficial da União de 24 de abril de 2013, a d.

autoridade impetrada praticou o ato que se pretendia impedir, homologando as novas dimensões da Terra Indígena (doc. 75, fl. 2).

Os pedidos foram adaptados, então, aos seguintes termos: (...) requer-se a concessão da medida liminar, para suspender os efeitos do Decreto homologatório, assim como que, ao final, seja concedida a ordem para tornar insubsistente o referido Decreto (doc. 75, fl. 3).

É o relatório.

Decido.

As ‘condicionantes’ adotadas na conclusão do julgamento da Pet 3.388/RR operaram restrições ao alcance de um provimento jurisdicional específico.

O fundamental é anotar que as condicionantes não operam no sentido de contrariar a premissa fundamental que sustenta aquele julgado; apenas limitam, de forma mais ou menos extensa, o campo de abrangência sobre o qual poderia ser estendido o entendimento inicial, caso tais condicionantes não existissem.

À primeira vista, deve-se evitar um processo de rompimento de unidade lógica entre as proposições que perfazem a totalidade do julgado, ou a adoção de soluções compartimentadas que, transportadas a casos correlatos, possam vir a ser aplicadas de modo independente.

Tal resultado prático resultaria contraditório, em última instância, à intenção externada pelo saudoso Ministro Direito – no sentido de fazer da Pet 3.388/RR um caso verdadeiramente paradigmático, a orientar a jurisprudência e a Administração Pública na tomada de decisões futuras a respeito da questão indígena.

Dessa forma, há que se tomar com reservas, em um exame preliminar do tema, a pretensão de destacar uma dessas ‘condicionantes’ do contexto maior em que formulada, para pretendê-la incidente de forma imediata e suficiente em outra relação jurídica diversa daquela em que originariamente inserida.

Se a própria inicial assume que o auxílio ao leading case é necessário, cumpre então tomá-lo na integralidade, sem olvidar sua premissa maior, explicitada no voto vencedor proferido pelo Ministro Relator antes mesmo da adição de qualquer salvaguarda.

Trata-se da estabilização do panorama da ocupação silvícola exatamente na data de vigência da Constituição de 1988, o que se tem por necessário na medida em que esta alterou completamente os fundamentos ideológicos aplicáveis à questão indígena – superando o modelo confinatório e/ou de tutela e incorporação à sociedade civil para um modelo de respeito à diversidade cultural e à história dos povos nativos.

A Ministra Cármen Lúcia traduziu com propriedade essa diretiva ao afirmar, no julgamento da Pet 3.388/RR, que: 17.

Também não se pode deixar de atentar a que a Constituição de 1988 introduz mudança na raiz dos institutos que compõem os direitos constitucionais dos índios.

Esta mudança está na concepção que se supera de que os índios teriam respeitados direitos para ‘vir a compor a comunhão nacional’ ou vir a se incluírem nas concepções e práticas civilizatórias, e não como opção – que tanto lhes deve ser assegurado, como é próprio da liberdade humana – mas como orientação estatal.

Transcrevo da ementa da Pet 3.388/RR os seguintes excertos, que corroboram o quanto expendido: (...) 9.

A DEMARCAÇÃO DE TERRAS INDÍGENAS COMO CAPÍTULO AVANÇADO DO CONSTITUCIONALISMO FRATERNAL.

Os arts. 231 e 232 da Constituição Federal são de finalidade nitidamente fraternal ou solidária, própria de uma quadra constitucional que se volta para a efetivação de um novo tipo de igualdade: a igualdade civil-moral de minorias, tendo em vista o proto-valor da integração comunitária.

Era constitucional compensatória de desvantagens historicamente acumuladas, a se viabilizar pro mecanismos oficiais de ações afirmativas.

No caso, os índios a desfrutar de um espaço fundiário que lhes assegure meios dignos de subsistência econômica pra mais eficazmente poderem preservar sua identidade somática, linguística e cultural.

Processo de uma aculturação que não se dilui no convívio com os não-índios, pois a aculturação de que trata a Constituição não é perda de identidade étnica, mas somatório de mundividências.

Uma soma, e não uma subtração.

Ganho, e não perda.

Relações interétnicas de mútuo proveito, a caracterizar ganhos culturais incessantemente cumulativos.

Concretização constitucional do valor da inclusão comunitária pela via da identidade étnica. 10.

O FALSO ANTAGONISMO ENTRE A QUESTÃO INDÍGENA E O DESENVOLVIMENTO.

Ao Poder Público de todas as dimensões federativas o que incumbe não é subestimar, e muitos menos hostilizar comunidades indígenas brasileiras, mas tirar proveito delas para diversificar o potencial econômico-cultural dos seus territórios (dos entes federativos).

O desenvolvimento que se fizer sem ou contra os índios, ali onde eles se encontrarem instalados por modo tradicional, à data da Constituição de 1988, desrespeita o objetivo fundamental do inciso II do art. 3º da Constituição Federal, assecuratório de um tipo de ‘desenvolvimento nacional’ tão ecologicamente equilibrado quanto humanizado e culturalmente diversificado, de modo a incorporar a realidade indígena. 11.

O CONTEÚDO POSITIVO DO ATO DE DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS. 11.1.

O marco temporal de ocupação.

A Constituição Federal trabalhou com data certa – a data da promulgação dela própria (5 de outubro de 1988) – como insubstituível referencial para o dado da ocupação de um determinado espaço geográfico por essa ou aquela etnia aborígene; ou seja, para o reconhecimento, aos índios, dos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam. 11.2.

O marco da tradicionalidade da ocupação.

É preciso que esse estar coletivamente situado em certo espaço fundiário também ostente o caráter da perdurabilidade, no sentido anímico e psíquico de continuidade etnográfica.

A tradicionalidade da posse nativa, no entanto, não se perde onde, ao tempo da promulgação da Lei Maior de 1988, a reocupação apenas não ocorreu por efeito de renitente esbulho por parte de não-índios.

Caso das ‘fazendas’ situadas na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, cuja ocupação não arrefeceu nos índios sua capacidade de resistência e de afirmação da sua particular presença em todo o complexo geográfico da ‘Raposa Serra do Sol’. 11.3.

O marco da concreta abrangência fundiária e da finalidade prática da ocupação tradicional.

Áreas indígenas são demarcadas para servir concretamente de habitação permanente dos índios de uma determinada etnia, de par com as terras utilizadas para suas atividades produtivas, mais as ‘imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar’ e ainda aquelas que se revelarem ‘necessárias à reprodução física e cultural’ de cada qual das comunidades étnico-indígenas, ‘segundo seus usos, costumes e tradições’ (usos, costumes e tradições deles, indígenas, e não usos, costumes e tradições dos não-índios).

Terra indígena, no imaginário coletivo aborígene, não é um simples objeto de direito, mas ganha a dimensão de verdadeiro ente ou ser que resume em si toda ancestralidade, toda coetaneidade e toda posteridade de uma etnia.

Donde a proibição constitucional de se remover os índios das terras por eles tradicionalmente ocupadas, assim como o reconhecimento do direito a uma posse permanente e usufruto exclusivo, de parelha com a regra de que todas essas terras ‘são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis’ (§ 4º do art. 231 da Constituição Federal).

O que termina por fazer desse tipo tradicional de posse um heterodoxo instituto de Direito Constitucional, e não uma ortodoxa figura de Direito Civil.

Donde a clara intelecção de que OS ARTIGOS 231 E 232 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL CONSTITUEM UM COMPLETO ESTATUTO JURÍDICO DA CAUSA INDÍGENA.

O Pleno do STF, ao julgar os embargos declaratórios opostos contra o acórdão proferido na Pet 3.388/RR, afastou explicitamente a atribuição de efeito vinculante às condicionantes adotadas naquele julgamento, de modo a desconstituir o ponto de partida em que se sustenta a presente inicial – qual seja, o de que cada uma das condicionantes então adotadas no julgamento poderia ser destacada de seu contexto e aplicada a casos diversos.

O acórdão dos embargos declaratórios, relatados pelo Ministro Luis Roberto Barroso, foi publicado no DJe de 04.02.2014 com a seguinte ementa, da qual destaco o quanto exposto no item 4: EMBARGOS DE DECLARAÇÃO.

AÇÃO POPULAR.

DEMARCAÇÃO DA TERRA INDÍGENA RAPOSA SERRA DO SOL. 1.

Embargos de declaração opostos pelo autor, por assistentes, pelo Ministério Público, pelas comunidades indígenas, pelo Estado de Roraima e por terceiros.

Recursos inadmitidos, desprovidos, ou parcialmente providos para fins de mero esclarecimento, sem efeitos modificativos. 2.

Com o trânsito em julgado do acórdão embargado, todos os processos relacionados à Terra Indígena Raposa Serra do Sol deverão adotar as seguintes premissas como necessárias: (i) são válidos a Portaria/MJ nº 534/2005 e o Decreto Presidencial de 15.04.2005, observadas as condições previstas no acórdão; e (ii) a caracterização da área como terra indígena, para os fins dos arts. 20, XI, e 231, da Constituição torna insubsistentes eventuais pretensões possessórias ou dominiais de particulares, salvo no tocante à indenização por benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé (CF/88, art. 231, § 6º). 3.

As chamadas condições ou condicionantes foram consideradas pressupostos para o reconhecimento da validade da demarcação efetuada.

Não apenas por decorrerem, em essência, da própria Constituição, mas também pela necessidade de se explicitarem as diretrizes básicas para o exercício do usufruto indígena, de modo a solucionar de forma efetiva as graves controvérsias existentes na região.

Nesse sentido, as condições integram o objeto do que foi decidido e fazem coisa julgada material.

Isso significa que a sua incidência na Reserva da Raposa Serra do Sol não poderá ser objeto de questionamento em eventuais novos processos. 4.

A decisão proferida em ação popular é desprovida de força vinculante, em sentido técnico.

Nesses termos, os fundamentos adotados pela Corte não se estendem, de forma automática, a outros processos em que se discuta matéria similar.

Sem prejuízo disso, o acórdão embargado ostenta a força moral e persuasiva de uma decisão da mais alta Corte do País, do que decorre um elevado ônus argumentativo nos casos em se cogite da superação de suas razões.

Tomado o precedente Pet 3.388/RR apenas como parâmetro argumentativo, portanto, é de se perquirir acerca de um melhor enquadramento do leading case à hipótese dos autos.

Segundo a inicial, as impetrantes adquiriram várias áreas do Estado do Mato Grosso, por intermédio da INTERMAT (Instituto de Terras do Mato Grosso), em dezembro de 1985.

Em 22.11.82, o Presidente da República havia homologado a criação da Terra Indígena Kayabi, pelo Decreto 87.842.

Tal demarcação diferiu substancialmente, em termos de área reservada, de uma demarcação pretérita, realizada nos idos de 1945, pelo Decreto Estadual 251.

Após a entrada em vigor da CF/88, a Portaria 1.137/93 da FUNAI determinou a formação de grupo de trabalho para revisar os limites da terra indígena, dando origem, em setembro de 1994, ao relatório antropológico que, por sua vez, serviu de base para o ato impugnado nesta oportunidade.

Em conclusão, este laudo declarou haver uma enorme diferença entre a área demarcada em 1984 (117.245 ha) e a área que seria historicamente ocupada pelas populações indígenas interessadas (1.400.000 ha).

Para melhor esclarecer o ponto, transcrevo alguns trechos desse laudo que descrevem as sucessivas tentativas de demarcação da área, assim como as dificuldades enfrentadas para a delimitação da reserva (doc. 61): Em consequência da fundação dos Postos Munduruku e Kayabi no início dos anos 40, ambos envolvidos em contínua atividade comercial, o chefe da 2ª Inspetoria Regional do Pará requereu ao governo estadual a ‘concessão’ de terras aos índios Munduruku do Tapajós e aos Kayabi do Teles Pires.

Segundo Arnaud (1974:30), os requerimentos do SPI visavam proteger as terras indígenas das concessões estaduais de terras destinadas à exploração da borracha.

Assim, o Governo do Pará concedeu, em 25 de março de 1945, através do Decreto nº 305, cerca de 510.000 ha (de acordo com cálculos atualizados) aos Munduruku (deixando várias aldeias e vastas áreas de perambulação do fora); enquanto aos Kayabi do Pará, em 9 de março do mesmo ano, através do Decreto nº 251, publicado no Diário Oficial 14.902, de 11.3.45, concedeu apenas uma faixa de terras de 12 km de largura que ia do igarapé da Prata ao rio São Benedito, ambos afluentes da margem direito do Teles Pires, totalizando 69.000 ha (número aproximado da época, baseado em mapas não muito precisos.

De acordo com cálculos atualizados, a área era de 166.500 ha).

Entretanto, como pode ser visto no mapa da página seguinte e no mapa anexo ao fim do relatório, a 2ª Inspetoria Regional do Pará havia requerido ao governo uma área muito maior, de 514.000 ha (números da época.

Segundo cálculos atuais, a área requerida era de 1.790.000 ha).

Conforme Arnaud (1974:30), ‘no âmbito federal o S.

P.

I.

não conseguiu a sanção de nenhum decreto para melhor garantir as áreas indígenas contra as concessões estaduais destinadas à exploração da borracha’.

Assim, como os Kayabi e Munduruku eram assistidos pela Inspetoria Regional do Pará, apenas o governo estadual do Pará concedeu terras aos Kayabi.

Isto não significa que estes últimos não tivessem aldeias ou que não usassem como área de perambulação as áreas à esquerda do Teles Pires, ou seja, no Estado do Mato Grosso (doc. 61, fls. 111-2).

Em. 8.10.68, através do Decreto nº 63.368, o governo federal criou uma reserva Kayabi, de acordo com os limites, que na época pareciam suficientes, apontados pela Missão Anchieta.

Em 1974, o Decreto nº 74.477 modificou o anterior, diminuindo a área das reservas Kayabi e Apiaká, que são contíguas.

Esta nova delimitação foi demarcada pela PLANTEL, firma contratada pela FUNAI, em 1975, resultando em uma área de 47.450 ha.

Na época, grandes fazendas já haviam chegado nas proximidades da área demarcada, entrando em conflitos com os Kayabi (Meliá, 1993:507-508) (doc. 61, fls. 79-80).

Em 24.8.82, através da Portaria 1372/E, publicada no Diário Oficial da União, em 16.9.82, a FUNAI declarou como de posse permanente do grupo Kayabi a área demarcada em 1975, com 117.246,5646 ha.

A área foi homologada pelo Presidente da República através do Decreto nº 87.842, de 22.11.82, publicado no Diário Oficial da União em 24.11.82.

A Área Indígena Kayabi seria registrada no Cartório da Comarca de Itaituba, Estado do Pará, em 28.4.1983.

É importante notar que o memorial descritivo da Portaria declaratória continha o erro já mencionado anteriormente.

Consta no memorial que um dos limites da área ‘segue pelo Rio Preto’, quando na verdade segue pelo igarapé Piranha Preta, que é um afluente do igarapé Preto.

Como resultado de um parecer da antropóloga Olga Novion, de 8.10.82, mostrando a inexistência de estudos antropológicos para a definição da área Kayabi, a então chefe da DID, antropóloga Sônia Demarquet, propôs, em 4.11.82 e em 2.2.83, a ida de um grupo de trabalho à área, o que acabou não ocorrendo (op.

cit.: 137, 143, 160).

Em um relatório de 15.6.84, o então Delegado da 2ª DR propõe a ‘reaviventação dos limites da reserva’ (op.

cit.: 164).

No ano seguinte, o novo chefe do Posto Kayabi, Francisco José Brasil de Moraes, explicaria em um relatório, datado de 3.7.85, que houve erro durante os trabalhos de demarcação, em 1975/76, feitos pela PLANTEL/AGRITEC, firma que deixou alguns limites incompletos.

Além disso, como já foi dito antes, o mapa da demarcação continha um erro básico quanto à nomenclatura de alguns igarapés (doc. 61, fl. 169).

A demarcação confinou os índios em uma área extremamente pequena, da qual permaneceram de fora áreas de caça e pesca, além do Salto Tatuí, de grande valor simbólico para os Kayabi do rio dos Peixes.

Após anos de reivindicações, contando com o apoio da Missão Anchieta, os Kayabi e Apiaká conseguiram que a FUNAI identificasse a área em 1985, o que resultou na demarcação da Terra Indígena Apiaká-Kayabi em 1988, com 109.245 ha.

Apesar da ampliação (...), a área demarcada continua representando uma ínfima porção do território de ocupação imemorial (doc. 61, fl. 80).

Um novo decreto (nº 94.945) a respeito da regularização fundiária das áreas indígenas, expedido em 23.9.87, proibia qualquer alteração de limites das áreas já demarcadas, enquanto não fossem concluídas todas as demarcações de áreas indígenas.

Mesmo assim, nos anos de 88 e 89, alguns técnicos da FUNAI sugeriram que as áreas entre o igarapé Preto e o igarapé da Prata, ao norte, e entre o rio Cururuzinho e o rio São Benedito, ao sul, totalizando a área do Decreto nº 251, fossem interditadas separadamente, como áreas distintas, o que não configuraria uma ‘ampliação’ (op.

cit.:12-20).

Assim, após a aprovação do Superintendente da SUAF (:27) e um parecer favorável do Procurador da FUNAI (:31), deu-se início ao processo administrativo para interdição das áreas, contíguas à área Kayabi demarcada, que seriam chamadas de ‘Gleba Norte’ e ‘Gleba Sul’.

Entretanto, como resultado das pesquisas realizadas in loco por um grupo de trabalho da FUNAI, em 1987, coordenado pela antropóloga Carmem Affonso, da 4ª SUER (Belém), havia uma proposta de interdição para a Área Munduruku, que ia até o limite norte da área Kayabi demarcada, abrangendo a área da ‘Gleba Norte’.

Como a ‘Gleba Norte’ já estava incluída na proposta da área Munduruku, não se justificava outra interdição.

Desse modo, apenas a área chamada de ‘Gleba Sul’ seria interditada pela FUNAI em 12.6.90, através da Portaria nº 573, publicada no Diário Oficial da União de 19.6.90.

A Área Indígena Gleba Sul foi interditada com 52.500 ha (doc. 61, fl. 171).

Desde a década de 80, é grande a preocupação dos Munduruku e Kayabi em relação à preservação ambiental, principalmente no que diz respeito ao manancial hídrico da região, para se evitar a contaminação dos rios ainda não poluídos.

A situação do rio Teles Pires é vista como um exemplo a ser evitado.

Em uma reunião realizada no Posto Kayabi, em 3.11.89, os Kayabi já manifestavam ao chefe de posto Francisco Brasil a preocupação com a preservação, principalmente, das cabeceiras do rio Cururuzinho.

Sendo assim, a interdição da Gleba Sul, em 1990, não foi suficiente para atender às reivindicações que já vinham sendo feitas pelos Kayabi, no que diz respeito à ampliação da área.

Então, em 1993, finalmente a FUNAI enviou um grupo de trabalho à região, integrado por esta antropóloga, com a finalidade de identificar as áreas Kayabi e Munduruku, propondo as alterações que fossem necessárias (doc. 61, fl. 177).

Assim, pode-se dizer com certeza que as aldeias Kayabi, desde a década de 20, pelo menos, depois do fim do aldeamento Tabuleiro, distribuíam-se na região compreendida, no mínimo, pelo rio dos Apiakás, ao sul, e o igarapé Preto, ao norte, incluindo afluentes do rio Teles Pires situados tanto no Mato Grosso quanto no Pará.

Todavia, a região apontada refere-se apenas à distribuição espacial das aldeias Kayabi, não incluindo as áreas de perambulação, tradicionalmente utilizadas e necessárias à subsistência, as quais serão o assunto do próximo item (doc. 61, fl. 189).

Durante a visita do grupo técnico à terra indígena, os Kayabi apontaram as regiões de coleta, caça e pesca necessárias à subsistência e à manutenção de aspectos da cultura tradicional.

Ficou claro que grande parte dos produtos coletados e consumidos é retirada do lado da margem esquerda do rio Teles Pires.

Os Kayabi utilizam tradicionalmente áreas do Mato Grosso desde que vieram morar na aldeia Tabuleiro, na foz do rio dos Apiakás, muito antes da concessão de terras, pelo Governo do Pará, na margem direita do rio Teles Pires (doc. 61, fl. 200).

Como já foi explicado, para além da margem direita do Teles Pires, entre a Cachoeira Sete Quedas ou Rasteira e o igarapé Preto, aproximadamente, há uma grande área de campos pedregosos, que pode ser vista inclusive nas cartas geográficas do IBGE.

Esta região é praticamente inaproveitável, restando aos Kayabi muito poucas áreas de matas no lado do Pará, dentro da área demarcada em 75.

Há ainda campos alagados entre o Cururuzinho e o São Benedito.

A ampliação a ser proposta do lado do Pará tem como principal objetivo incluir na área indígena as cabeceiras do rio Cururu-açú ou Cururuzinho.

Trata-se do rio mais importante para os Kayabi, em função da relativa proximidade do posto indígena.

O rio Cururuzinho e seus afluentes, como o Arapari, são riquíssimos em peixes, o que pôde ser visto pessoalmente pela antropóloga (...).

Durante um dia de visita ao rio Cururuzinho e ao Arapari, vários peixes, de tamanhos e qualidades diversas, como o pintado, a pirarara, o pacu preto e a Matrinchã, foram pescados por Artur e José Kayabi com grande facilidade.

Para além das margens do Cururuzinho, os Kayabi mencionaram a existência de lagoas escondidas e repletas de peixes, como o tucunaré, altamente apreciado.

Somente os Kayabi têm acesso ao Cururuzinho, um rio totalmente puro e preservado, que nasce na Serra do Cachimbo e corre por dentro de matas onde se tem notícia da presença de índios Munduruku ainda isolados (doc. 61, fls. 200-1).

Confrontando-se a decisão integral proferida na Pet 3.388/RR, em toda a sua extensão e complexidade, com as particularidades do caso, não verifico incompatibilidade absoluta e inconteste, verificável de plano em sede liminar, entre a edição do ato administrativo impugnado e o leading case.

Como anteriormente ressaltado, a condicionante relativa à proibição de alteração de reserva já demarcada não opera de forma autônoma à premissa maior do julgado, que é a atribuição, aos índios, das terras por eles tradicionalmente ocupadas em 1988, não antes e nem depois.

Na hipótese, encontram-se disponíveis nos autos elementos de prova acerca de circunstâncias históricas específicas que teriam condicionado o procedimento de demarcação anterior à CF/88 a um resultado tido por insuficiente em uma segunda análise, esta já realizada em 1993/94.

Não é evidente a contrariedade dessa constatação ao que restou disposto no julgamento da Pet 3.388/RR; esse acórdão indica que a adoção de salvaguarda relativa à eventual proposta de ampliação de reserva já demarcada teria, ali, objetivo de evitar que um eventual crescimento da população indígena venha a criar uma pressão demográfica para a extensão da base territorial reservada sobre propriedades lindeiras.

Ora, tal salvaguarda, se interpretada nesses termos – ou seja, como uma condicionante que opera efeitos diante de eventos futuros e incertos – mantém inteira consonância com a ideia principal do voto, à qual já me referi seguidas vezes, e que se refere à atribuição, aos povos indígenas, apenas e tão somente das terras por eles tradicionalmente ocupadas em outubro de 1988 (às quais aderem as terras que, não sendo objeto de renúncia pelos índios, foram esbulhadas).

Ressalte-se, por oportuno, que não há questionamentos, na inicial, acerca da legalidade do procedimento demarcatório que deu origem ao decreto homologatório.

Os questionamentos relativos ao procedimento, na verdade, já foram examinados e afastados por esta Corte no julgamento do RMS 28.952/DF, interposto pela mesma Agropastoril, Madeireira e Colonizadora Sanhaço Ltda., ao qual negado seguimento em 24.5.2012, com trânsito em julgado em 19.6.2012 (decisão monocrática proferida pelo Ministro Dias Toffoli).

Dela destaco os seguintes trechos: Postulam as impetrantes, com o ajuizamento deste mandamus, a declaração de nulidade da Portaria nº 1.140 do Ministério da Justiça que declarou de posse permanente dos grupos indígenas Kayabi, Munduruku e Apiaká terras que seriam de sua propriedade e também autorizou a respectiva demarcação administrativa.

O Superior Tribunal de Justiça extinguiu a segurança, sem resolução do mérito (...).

A partir da análise dos fundamentos do recurso, verifico que a decisão impugnada não merece reforma, visto que as recorrentes não aduzem novos argumentos capazes de afastar as razões nela expendidas.

Com efeito, a questão relativa à demarcação de terras indígenas envolve diversos problemas de índole fática como a extensão das terras; a firmeza dos títulos dominiais; a cadeia sucessória dos títulos e outros aspectos de idêntica relevância.

Em tudo e por tudo, bem se vê, que existe um forte elemento fático-probatório, que ultrapassa os limites estreitos do mandado de segurança, ação documental por excelência.

Demais disso, como bem ressaltado pelo Ministro João Otávio de Noronha, em consonância com o parecer do Ministério Público Federal, as impetrantes não juntaram documentos comprobatórios sequer da cadeia dominial particular do imóvel, adquirido pelos impetrantes por meio de leilão.

Contudo, segundo anotou o Ministério Público Federal, [n]ão se sabe quem realizou o leilão, a data em que foi realizado, se as áreas foram transferidas com ou sem restrições, desde quando as impetrantes encontram-se na posse dos imóveis, se tinham ou não conhecimento de que se cuida de terras indígenas (fl. 580). (...) No que concerne à alegação de falta de adequação do Relatório de Identificação e Delimitação da Terra Indígenas aos novos procedimentos documentados pelo Decreto nº 1.775/96 e pela Portaria MJ nº 14/96, entendo que a análise de tal argumento, de igual modo, demandaria o exame aprofundado de fatos e provas, inclusive sobre a questão do levantamento fundiário.

Conforme se verifica na petição inicial e demais recursos interpostos pelas impetrantes, a alegação de existência de inconsistências no Relatório de Identificação e Delimitação da Terra Indígenas baseia-se em Laudo Pericial preparado pelo técnico Carlos Antonio de Siqueira, em atendimento à solicitação das impetrantes (fls. 46/49), a revelar a forte presença de matéria fática controvertida, sobressaindo a necessidade de produção probatória, inclusive pericial, o que, em sede de mandado de segurança, não se mostra possível, visto tratar-se de instrumento destinado à proteção de direito demonstrável de plano, que não admite dilação probatória.

Por fim, muito embora as impetrantes tenham trazido precedente de minha antecessora, Ministra Ellen Gracie, deferindo liminar em caso reputado semelhante (MS 29.293/DF, decisão de 18.11.2010), há também recentes decisões monocráticas em sentido diverso: MS 32.162/DF, publicada em 19.8.2013, Ministro Marco Aurélio, ao entendimento de que o mandado de segurança não é o meio próprio a alcançar a uniformização de jurisprudência; e MS 31.240/DF, publicada em 17.12.2012, Ministro Luiz Fux, ao fundamento de que o mandado de segurança versaria sobre questões que demandam dilação probatória, pertinentes à legalidade de ampliação de reserva indígena.

É certo que houve deferimento parcial de liminar na Rcl 14.473 MC/RO, decisão de 27.9.2012 (Ministro Marco Aurélio), mas a hipótese ali versada continha peculiaridades, por se tratar da terceira iniciativa de demarcação ampliativa da mesma reserva, a partir de comando jurisdicional proferido em ação civil pública – sendo que a segunda demarcação já ocorrera na vigência da CF/88.

Diante do exposto, indefiro a liminar, sem prejuízo de exame mais acurado em momento oportuno.

Retifique-se a autuação para que a FUNAI passe a constar como assistente litisconsorcial da autoridade coatora.

Dê-se vista ao Ministério Público Federal (arts. 12, caput, da Lei 12.016/09 e 205 do RISTF).

Publique-se.

Brasília, 11 de março de 2.014.

Ministra Rosa Weber Relatora

Partes

Recte.(s) : Alice Goncalves Lopes

adv.(a/S) : HÉlder Gonçalves Dias Rodrigues e Outro(a/S)

recdo.(a/S) : Instituto Nacional de Seguro Social - Inss

proc.(a/S)(Es) : Procurador-Geral Federal

adv.(a/S) : Alex Frezzato

Observação

PROCESSO ELETRÔNICO

DJe-051 DIVULG 14/03/2014 PUBLIC 17/03/2014

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