As afinidades eletivas entre o direito e a antropologia na perspectiva de Clifford Geertz

AutorLaura Garbini Both
Páginas413-424

Page 413

Introdução

O trecho reproduzido a seguir é parte de uma obra da maturidade de Goethe, publicada em 1809, na qual o autor conta a história de Eduardo e Otília, Capitão e Carlota, Conde e Baronesa, casais não no sentido matrimonial do termo, mas pares formados por atrações inevitáveis de "afinidades eletivas": 12

" - Julgo, apartou Eduardo, que tornaríamos a questão mais fácil para Carlota, e para nós mesmos, por meio de exemplos. Considera a água , o óleo , o mercúrio: encontrarás unidade, coesão entre as moléculas. Não abandonam essa intimidade senão pela força ou por outra determinação; desaparecida essa, tornam logo a juntarse.

- Sem dúvida, concorda Carlota, as gotas de chuva juntam-se em torrentes; quando éramos crianças, brincávamos estonteados com o mercúrio, separando-os em bolinhas e deixando-as unirem-se novamente.

- Isso me permite, continua o Capitão, mencionar, de passagem, um ponto importante: essa relação, absolutamente pura, possível através da fluidez determina-se e se distingue sempre pela forma globosa. A gota de água que cai é redonda; as bolinhas de mercúrio, Carlota já falou, e até o chumbo derretido, ao cair, com o tempo necessário para consolidar-se, toma a forma esférica.

- Permitam que me adiante, propôs Carlota, para ver se atino aonde querem chegar. Como tudo tem conexão entre si, deverão também todos os seres estar em correspondência uns com os outros.

- Essa conexão será diferente, segundo a diversidade dos seres prosseguiu Eduardo. Ora se encontram, como amigos e velhos conhecidos, que se juntam, se ligam, sem nada modificar um ao outro ( como o vinho ao misturar-se com a água); ora, ao contrário se conservam estranhos um ao outro, e até por meio de fricções, ou mecanicamente misturados, não se interpenetram de maneira alguma, como o óleo e a água , os quais sacolejados juntos, logo depois se separam.

- Não falta muito, considera Carlota, para que vejamos nessas simples formas, as pessoas que conhecemos; lembram principalmente, as sociedades em já vivemos. No entanto, a maior analogia com esses seres inanimados existe nas massas, que se Page 414 enfrentam no mundo: as classes, as profissões, a nobreza, o terceiro estado, o militar e o civil.

- No entanto, replicou-lhe Eduardo, como esses agrupamentos , por meio de costumes e leis se unem - do mesmo modo, no nosso mundo químico, há agentes para juntar o que reciprocamente se repele.

- Assim é, interrompeu o Capitão, que mesclamos o óleo com a água por meio de um álcali.

- Não vá tão depressa na sua dissertação, pede-lhe Carlota, para que eu possa demonstrar que o sigo passo à passo. Não chegamos, aqui, às afinidades?

- Exatamente, respondeu-lhe o Capitão, e já iremos conhecê-las em toda sua força e exatidão. Aos corpos que, ao se concentrarem, se prendem no mesmo instante, um ao outro, e mutuamente se fixam, chamamos afins. Nos álcalis e nos ácidos ( apesar de serem opostos, talvez devidos à isso mesmo, se procuram, agarram-se da maneira mais decidida, transformam-se e formam junto um corpo novo), essa afinidade é assombrosa. Pensemos somente na cal, que tem grande atração por todos os ácidos: imperativo desejo de ligar-se a eles. Logo que chegue o nosso laboratório químico, deixá-la-emos presenciar algumas experiências muito divertidas, que evidenciam noção mais clara que palavras, nomes e termos técnicos.

- Deixe-me confessar -lhe, disse-lhe Carlota, que , se o Capitão chama "afins" a essas substâncias estranhas, elas não me parecem consangüíneas , mas espiritualmente parentes pela alma. É dessa forma precisamente, que, entre os homens pode originar-se uma verdadeira e sólida amizade, pois caracteres opostos tornam assim possível entre eles íntima união. Agora esperarei que o Capitão apresente aos meus olhos esses efeitos misteriosos. Não te molestarei mais, continuou ela, dirigindo-se a Eduardo, quando leres em voz alta; mais bem instruída agora, ouvirei com atenção tuas palavras." 3

Na sua introdução a esta obra, Meyer4 nota que a díade homem-mulher é considerada não só na sua complementação sexual, mas é também, e principalmente objeto de análise moral e psicológica, pois ao descasar e reagrupar os casais, o autor sugere, para além das obscuras atrações do instinto, o jogo imprevisível de outras formas de afinidades.

Para Meyer5, o interesse essencial do romance, sua peculiaridade, é não se concentrar num personagem determinado. A originalidade da construção literária/ dramática consiste no jogo das polaridades, atrações e repulsões. Goethe parece ter voltado todo seu empenho em acentuar, de forma simétrica e minuciosa, a interdependência que governa e condiciona as coisas da vida, das relações, do mundo, uma vez que a obra é quase toda tecida por detalhes significativos que em um primeiro momento aparentam não ter uma associação lógica ao desenvolvimento da ação. Page 415 Contudo, ao evoluir, a narrativa revela que a repetição (estrutural) com variantes (conjunturais) cria novas correlações episódio a episódio: os menores fragmentos revelam uma perfeita simetria, projetam uma compreensão integral do significado.

Em estudo sobre o tema, Lowy6 designa por "afinidade eletiva - termo originário das enciclopédias de ciências naturais - um tipo muito particular de relação dialética que se estabelece entre duas configurações sociais ou culturais não redutíveis à determinação causal direta ou influência mútua no sentido tradicional. Ressalta que o itinerário desse termo vai da alquimia à sociologia, passando pela literatura romanesca, e aparece em autores como Alberto, o Grande (século XIII), no já mencionado Wolfgang Goethe e até Max Weber. A expressão afinidade eletiva parece ter sido usada pela primeira vez em 1775, pelo químico T. Bergmann em 1785 e foi retomado por Goethe em seu romance destacado aqui. Da filosofia à química, daí para a literatura, e finalmente para a sociologia através de novos significados operados dentre outros por Weber, diz Lowy:

"Da acepção antiga irá conservar as conotações de escolha recíproca, atração e combinação, mas a dimensão da novidade parece desaparecer. O conceito de Wahlverwandtschaft - assim como este outro, de significação próxima: sinnaftinitäten (afinidades de sentido) - aparece em três contextos precisos nos escritos de Weber. Em seu sentido central em Weber o conceito de afinidades eletivas busca "analisar a relação entre doutrinas religiosas e formas de ethos econômico" 7

Para a análise aqui empreendida, o que importa destacar é o quanto o conceito de afinidade eletiva abre possibilidades para a compreensão de realidades e relações complexas abrindo o campo para a superação de um reducionismo estrito que apaga nuances dos significados atribuídos às relações sociais estabelecidas.

Ressalta Lowy8 que tanto a produção quanto a recepção e a apropriação dos conceitos, inclusive do próprio conceito de afinidade eletiva, têm sido sempre o resultado de uma complexa trama de aproximações e repulsões, de afinidades e interditos, de movimentos de convergência, de atração recíproca, de combinação, podendo chegar à fusão em múltiplas escalas e temporalidades.

Esta forma, essencialmente antropológica de interpretação e compreensão dos fenômenos da sociedade e expressa no sentido atribuído ao conceito de sociedade se realiza pela interveniência da mediação, da interação, da fusão, da metamorfose. Afirma Lowy:

É um conceito que nos permite justificar processos de interação que não dependem nem da causalidade direta, nem da relação "expressiva" entre forma e conteúdo (por exemplo, a forma religiosa como "expressão" de um conteúdo político ou social). (...) Naturalmente, a afinidade eletiva não se dá no vazio ou na placidez da espiritualidade pura: ela é favorecida (ou Page 416 desfavorecida) por condições históricas ou sociais. (...). Neste sentido, uma análise em termos de afinidade eletiva é perfeitamente compatível com o reconhecimento do papel determinante das condições econômicas e sociais. 9

Em palestra proferida na Faculdade de Direito de Yale, em 1981 Geertz10, propõe-se a discorrer sobre as afinidades eletivas entre o Direito e a Antropologia. Para tanto, apresenta um mini-tratado dedicado: i) a uma disciplina específica da "vida da mente"-pressuposto de que pensamentos são coisas sociais- o Direito; ii) a uma problemática específica dessa disciplina, qual seja, a relação entre a apuração dos fatos e o uso dos procedimentos em processos circunscritos ao universo dos julgamentos ( adjudicação). O objetivo é discutir um assunto central na jurisprudência e adjudicação da Common Law anglo-americana: a distinção (de fundamento kantiano) entre o ser e o dever ser, entre o que aconteceu e o que é legal, e delinear seus meio-paralelos em outras três tradições legais: islâmica, índica e malaio-indonésia.

A ideia central da palestra-ensaio consiste em: 1) examinar como essa problemática (ser-dever ser) aparece nos EUA contemporâneo; 2) descrever as diferentes formas que essa problemática assume nessas outras tradições; 3) discutir as consequências destas diferenças para a evolução da adjudicação onde...

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