Raça, classe e ação afirmativa na trajetória política de militantes negros de esquerda

AutorClaudete Gomes Soares
CargoProfessora Adjunta I da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), em Chapecó ? Santa Catarina ? Brasil da área de conhecimento de Sociologia e Política. Doutora em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Publicou artigos nas revistas Perseu: História, Memória e Política; Teoria e Debate; e Ideias ? Rev. do IFCH-Unicamp
Páginas41-74
Política & Sociedade - Vol. 11 - Nº 22 - Novembro de 2012
4141 – 74
Raça, classe e ação af‌irmativa
na trajetória política de
militantes negros de esquerda
Claudete Gomes Soares1
Resumo
Passados dez anos da Conferência Mundial de Combate ao Racismo (2001), é possível dizer que
a sociedade brasileira acomodou-se às experiências de ações af‌irmativas para a população negra.
No entanto, quando esse debate se iniciou em 2001, permeado por todo o tipo de polêmicas,
ele era novo também para os militantes do movimento social negro. Este artigo v ai tratar dos
dilemas e desaf‌ios que estiveram presentes na conversão da militância negra de esquerda às
propostas de ações af‌irmativas. A nossa análise terá como referência a experiência da militância
negra com atuação no Par tido dos Trabalhadores que apostou na ar ticulação entre raça e classe
como estratégia de politização da questão racial. A adesão desse setor da militância às políticas
de ações af‌irmativas para a população negra signif‌icou o confronto com as concepções políticas
e ideológicas construídas no campo da esquerda.
Palavras-chave: Ações af‌irmativas. Luta de classe. Cidadania. Movimento Social Negro. Partido
dos Trabalhadores.
Apresentação
Neste artigo exploraremos duas estratégias de politização da questão ra-
cial no Brasil: uma – que esteve na gênese da emergência do movimento negro
contemporâneo na década de 1970 – se expressa por meio da articulação entre
raça e classe; a outra – que tem como marco a Marcha Zumbi de 1995, mas só
se completa com a Conferência Mundial de Durban em 2001 – se dene pelas
demandas de políticas públicas referenciadas à raça e à etnia, e de ampliação
de direitos para a população negra.
1 Professora Adjunta I da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), em Chapecó – Santa Catarina – Brasil
da área de conhecimento de Sociologia e Política. Doutora em Sociologia pela Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp). Publicou artigos nas revistas Perseu: História, Memória e Política; Teoria e Debate; e
Ideias – Rev. do IFCH-Unicamp. E-mail: claudete.soares@uffs.edu.br.
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Trabalhamos com a hipótese de que o encaminhamento público que a
questão racial passou a ter a partir de 2001, quando da intensicação das de-
mandas do movimento negro por ações armativas e pelas políticas de cotas,
signicou uma inexão nos princípios políticos e ideológicos que guiaram
setores signicativos da militância negra, que iniciou sua atuação política na
década de 1970 e 1980 e teve no campo da esquerda uma referência política
para suas ações e concepções político-ideológicas. A adesão dessa militância
à nova forma de enfrentamento das desigualdades raciais, por meio da ci-
dadania diferencialista, expressa pelas ações armativas, exigiu uma revisão,
reelaboração, ressignicação de perspectivas anteriores, processo nem sempre
vivido de forma tranquila.
Desenvolveremos essa reexão com base nos dados de uma pesquisa sobre
a questão racial e os projetos políticos do Partido dos Trabalhadores (PT),
que nos possibilitou ter contato com as estratégias utilizadas pelo movimento
negro e pela militância negra petista no processo de politização da questão
racial no Brasil – bem como perceber os desaos e obstáculos colocados a uma
geração de militantes que foi socializada politicamente no campo da esquerda
e que em razão disso procurou politizar a questão racial a partir desse quadro
de referência.
A politização da questão racial, ancorada na articulação entre raça e classe,
será evidenciada com base nos elementos ideológicos que estiveram presentes
na construção dos espaços de combate ao racismo na estrutura partidária do
PT e nas intervenções da militância negra ao interpelar e pressionar o parti-
do objetivando o seu comprometimento político com a problemática racial.
Ver-se-á que essa construção esteve claramente inserida em uma perspectiva
que associava a questão racial a um projeto de transformação das estruturas
capitalistas. Nesse ponto, nos preocuparemos em caracterizar essa militância
negra, liada a um projeto de transformação da realidade social, por meio de
suas experiências nos espaços de socialização política de esquerda.
A adesão às políticas públicas especiais para a população negra, na forma
geral de ações armativas ou na forma particular de política de cotas, implicou
um processo de conversão a um tipo de política que a princípio não signica
o questionamento ou a negação da forma de organização da sociedade capi-
talista. O que submeteu esse setor da militância negra a um dilema: aceitar as
políticas públicas especiais referenciadas à raça seria abrir mão de um projeto
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de transformação social? A revolução podia ser ressignicada de forma que a
conversão a essas políticas não implicasse a negação de um passado político?
Ou seria necessário rever as posições políticas e teóricas de forma a adequar o
novo posicionamento diante da fase atual de politização da questão racial no
Brasil? Essas são questões que aparecem nas entrevistas realizadas com alguns
militantes negros participantes da construção dos espaços de combate ao ra-
cismo no PT – o qual se consolidou como o principal partido de esquerda na
cultura política brasileira – e que podem ser encontradas também em alguns
dos depoimentos coletados por Alberti e Pereira (2007), Histórias do Movi-
mento Negro no Brasil: depoimento ao CPDOC.
Embora esses dilemas sejam aqui enfatizados por meio dos engajamentos
individuais, e das estratégias de politização da questão racial, não podemos
nos esquecer que eles fazem parte de um universo mais amplo que diz respeito
à própria denição e redenição de campos políticos: direita e esquerda, e que
têm impactado as práticas militantes individuais.
1. Trajetórias militantes: a identidade racial e o campo da
esquerda
1.1 A esquerda e a questão racial
O movimento negro contemporâneo2 reemergiu no contexto de valori-
zação da democracia e de crítica ao Estado autoritário no nal da década de
19703. Ao lado de outros movimentos, compôs o quadro de fortalecimento da
sociedade civil que ocorreu no nal de década de 1970 e começo de 1980. Uma
das características dessa cojuntura é que vários dos movimentos e organizações
2 Embora se tenha optado no texto pela denominação movimento negro ou, em alguns momentos, movimento
negro contemporâneo, não se deseja com isso ocultar a diversidade e as divergências que caracterizam o
movimento social negro no Brasil. Em razão do momento tratado, a década de 1980, a principal expressão
do movimento negro no Brasil era o MNU (Movimento Negro Unif‌icado), que foi formado por um conjunto
de entidades, o que marca inclusive a sua diversidade interna. No entanto, sabemos que o movimento negro
não se limita e nunca se limitou ao MNU, ele é constituído por uma teia de entidades e organizações com
características e projetos diversos.
3 É preciso considerar que a organização política do negro teve lugar em vários momentos da história do
Brasil: ora com maior capacidade organizativa ora com menos, são destaque na literatura sobre o tema: a
Frente Negra Brasileira, a Impresa Negra e o Teatro Experimental do Negro, movimentos que antecederam as
organizações e entidades negras que surgiram junto com a luta pela redemocratização. Ver: ANDREWS, G. R.
Negros e brancos em São Paulo 1888-1988. Bauru: Edusc, 1998.

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