A fundamentação do princípio da exclusão: análise hermenêutica da vedação das provas ilícitas no processo penal

AutorFlaviane de Magalhães Barros; Ricardo Augusto de Araújo Teixeira
Páginas108-117

"The quality of a nation's civilization can be largely measured by the methods it uses in the enforcement of criminal law"

Miranda v. Arizona (1966).

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1 Introdução

Como parte de uma série de outras garantias em sede de persecução penal, a Constituição brasileira de 1988 traz em seu artigo 5º, LVI a regra que determina que "são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meio ilícito", corolário de um dos princípios base do estado de direito, qual seja, o do devido processo legal.12

A referida garantia é uma constante nos ordenamentos jurídicos ocidentais, e tem sua origem usualmente associada ao caso Weeks v. United States (DRESSLER, 1997, p. 320), julgado pela Suprema Corte em 1914, em que, com base na "Quarta Emenda"3, entendeu-se que a garantia prevista se aplicava a crimes federais.

Não obstante, de acordo com Walter Pakter, citado por Yue Ma (1999), há registros de anulação de processos em razão de buscas ilegais na França já em 1672, e, mesmo no século XX, há registros da exclusão de provas em razão da ilegalidade da busca e apreensão na França em 1910, portanto, quatro anos antes da correlata decisão nos Estados Unidos.

No Brasil, há construção jurisprudencial de tal garantia já antes da atual Constituição, notadamente no HC 63.834 de 18/12/1986, de relatoria do Ministro Célio Borja.

Já sob o atual regime constitucional, o leading case na matéria é o HC 69.912, de relatoria do Ministro Sepúlveda Pertence, no qual, todavia, a discussão é mais focada na questão da prova ilícita por derivação, vez que se assume que, em razão da regra explícita da inadmissibilidade trazida no corpo da Constituição, não há de se discutir a regra objeto deste estudo.

Desta feita, a meu ver, a base teórica desta garantia processual nos ordenamentos jurídicos ocidentais remonta, invariavelmente, à elaboração da Suprema Corte dos Estados Unidos acerca da regra prevista na Quarta Emenda.

Assim sendo, a primeira parte deste estudo abordará a evolução da regra da inadmissibilidade das provas ilícitas no processo penal na jurisprudência da Suprema Corte dos Estados Unidos, ou seja, como se deu a construção da garantia chamada de Exclusionary Rule a partir da regra da 'Quarta Emenda'. Posteriormente, apresentará o posicionamento corrente da jurisprudência e da doutrina brasileira sobre tal regra. Por fim, analisará os argumentos utilizados na construção de tal garantia, a fim de identificar as correntes teóricas que servem de base a esta garantia, a fim de questionar se, dentro da proposta de compreensão fazzalariana do processo - como procedimento em contraditório -, passando pelo filtro da Teoria Discursiva de Jürgen Habermas, tal regra deve subsistir nos termos absolutos em que se encontra atualmente na doutrina pátria.

2 A "Quarta Emenda" e a Exclusionary Rule

Estudar, ainda que dentro de uma proposta limitada como esta, o sistema de justiça criminal dos Estados Unidos exige que duas tarefas sejam cumpridas simultaneamente. É preciso entender como os precedentes judiciais promovem o desenvolvimento do sistema e, também, como os profissionais do Direito lidam com a questão dos precedentes.

É preciso, ainda, contextualizar desde logo os textos legais com os quais estaremos trabalhando, a fim de restar claro que as posições mais "liberais" ou "conservadoras" (DRESSLER, 1997, p. 17) que serão apontadas dizem respeito tão-somente à série de problemas relacionados com os dispositivos legais que dizem respeito ao sistema de justiça criminal.

O foco deste trabalho está na chamada "Quarta Emenda" da Constituição norte-americana. Vale lembrar desde já que o conjunto das dez primeiras emendas, conhecido como Bill of Rights, deu-se no mesmo momento histórico da aprovação da Constituição dos Estados Unidos, qual seja, o fim do século XVIII e início do XIX. Todavia, em certo momento, haverá referências à "14º emenda", incorporada ao texto constitucional na segunda metade do século XIX.

O Bill of Rights contém uma série de dispositivos que dizem respeito ao sistema criminal, notadamente na quarta, quinta e sexta emendas.

Apesar da clareza que tais textos têm para nós atualmente, eles permaneceram em grande parte inexplorados até o início do século XX. Daí alguns autores falarem em criminal justice revolution Page 109 (LaFAVE, 1993, p. 1), quando se referem ao desenvolvimento proporcionado pela Suprema Corte nesta seara a partir, notadamente, de 1914.

Por se tratar da formação de um país a partir da transformação de uma confederação numa federação, havia - e ainda há - sérias preocupações referentes à excessiva centralização de poder no ente federal.

Em razão destas preocupações, foi criado o Bill of Rights, que trazia regras "projetadas como limitações ao poder do governo federal, e que não foram planejadas para restringir as ações dos governos dos Estados". (DRESSLER, 1997, p. 322).

A estrutura como foi concebido o Bill of Rights criou um problema maior do que a própria compreensão de seus dispositivos, qual seja, a questão de sua aplicação em sede estadual.

Em princípio, poder-se-ia dizer que, em razão do objetivo definido das emendas, não haveria por que se questionar sobre sua aplicação nos estados. Todavia, essa separação rígida das regras do sistema federal para os sistemas estaduais causaria um sério problema de incoerência caso os Estados-membros não tomassem, por si sós, medidas a fim de adaptar suas legislações ao modelo federal estabelecido nas emendas constitucionais do século XVIII.

Em suma, podemos verificar que, em um primeiro momento, a situação que se apresentava ao Judiciário americano, no início do século XX, como carente de regras definidas em âmbito do sistema de justiça criminal federal e, tão logo, tais regras começaram a ser estabelecidas, a Suprema Corte foi questionada sobre sua aplicação, nos Estados-membros, em nome de uma integridade judicial.

A " 4th amendment " traz, basicamente, normas de proteção contra busca e apreensões não razoáveis e cria regras para a emissão de mandados de busca e apreensão.

No intuito de se dar força àquelas regras, a Suprema Corte dos Estados Unidos, a partir do caso Weeks v. United States4 (1914), criou a regra hoje conhecida como "princípio da exclusão" ( exclusionary rule).

No referido caso, a polícia estadual do Kansas entrou na casa de Fremont Weeks e apreendeu documentos que foram usados para condená-lo pelo delito de transportar bilhetes de loteria pelo correio. Posteriormente, os agentes estaduais voltaram à residência de Weeks, acompanhados por um U.S. Marshal, e apreenderam mais documentos e cartas, inclusive retirando-os de dentro de armários. Weeks foi condenado. Tanto a primeira apreensão, conduzida apenas por agentes estaduais, quanto a segunda, conduzida por um agente federal, foram realizadas sem mandado de busca e apreensão. (OYEZ Project, 2008).

Os advogados de Weeks conseguiram levar o caso à Suprema Corte, sustentando que a atuação das organizações policiais envolvidas violava diretamente o disposto na Quarta Emenda.

Num julgamento unânime, a Corte de White considerou que os fatos ocorridos eram efetivamente incompatíveis com a regra do Bill of Rights, de modo que tais provas deveriam ser excluídas do processo.

Assim, a Suprema Corte criava a exclusionary rule, uma garantia contra eventuais violações à regra para a busca e apreensão.

O princípio da exclusão, nos moldes como foi concebido, teria duas finalidades. A primeira seria desencorajar ações policiais ilegais, vez que os policiais saberiam que as provas obtidas fora das regras não poderiam ser utilizadas no processo. A segunda seria o imperativo de integridade judicial (DRESSLER, 1997, p.324).

Estabelecida tal garantia, seria uma questão de tempo até a Suprema Corte ser questionada sobre sua aplicação em sede estadual. Em Wolf v. Colorado (1949), o Justice Felix Frankfurter afirmou que a "segurança da privacidade de alguém contra intrusões arbitrárias pela polícia - que é o coração da Quarta Emenda - é básica para uma sociedade livre." (DRESSLER, 1997, p. 320).

No entanto, foi só em Rochin v. Califórnia5 (1952) que ficou claro que se tentaria aplicar o princípio da exclusão, ainda que de modo mais restrito do que o previsto na Quarta Emenda, ao âmbito estadual.

Neste caso, três auxiliares do xerife do condado de Los Angeles entraram sem mandado na residência de Rochin. Os policiais viram duas cápsulas sobre um criado-mudo. Imediatamente Rochin as pegou Page 110 e as engoliu, sendo agarrado pelos policiais que tentaram fazer com que ele expelisse as cápsulas. Depois dessa tentativa fracassada da polícia, Rochin foi algemado e conduzido a um hospital, onde teve as cápsulas retiradas de seu estômago. Testes posteriores concluíram se tratar de morfi na.

O caso chegou à Suprema Corte que determinou a exclusão das provas que haviam sido obtidas por meio de uma "conduta que choca a consciência". (LaFAVE, 1992, p. 106).

"A Corte concluiu que a regra do devido processo da Décima quarta Emenda proíbe o uso em julgamentos de provas, ainda que de natureza confiável, obtidas de maneira que viole certos níveis de conduta civilizada". (DRESSLER, 1997, p. 321).

Como se pode observar, apesar de não referir a decisão diretamente à Quarta Emenda, a Suprema Corte interpretou a regra do devido processo da Décima quarta emenda6 - emenda esta que diz respeito aos Estados-membros, e não ao governo federal - de modo a fazer valer algumas convicções surgidas a partir da elaboração da exclusionary rule.

O passo seguinte seria a aplicação da regra da exclusão em sua totalidade aos casos estaduais. Tal decisão seria tomada pela Corte de Warren em 1961, no caso Mapp v. Ohio .7

A polícia de Cleveland recebeu uma denúncia anônima de...

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