Anhembitinerários ou algum modernismo passado a limpo

AutorGeorge Luiz França
Páginas38-61
Anhembitinerários
ou: algum modernismo passado a limpo
George Luiz França1
Pergunta semelhante à feita por Deleuze e Guattari ao começar sua leitura de Kafka2
parece pertinente ao pleitear uma leitura de periódico como texto. Como entrar em Anhembi?
Qual seria o ponto de partida a adotar? Itinerários. Multiplicam-se, cruzam-se, entremeiam-se, e
proliferam, outrossim, as entradas. Para cada uma delas, caminhos que se bifurcam,
vertiginosamente, e redundam sempre num labirinto, tão ao gosto borgiano. Livro-labirinto,
rizoma sem início nem fim, em expansão qual o universo. A angústia de uma deliberação, para
lembrar de Barthes3, e a certeza de uma perda irreconciliável. Sempre restarão espectros a
circundar o discurso, neste caso, um discurso sobre discursos de amarelas páginas de memória.
De memória e de esquecimentos. A cada opção, uma rasura; a cada dito, muitos interditos, não-
ditos, desditos, malditos. Ciente da aventura irreversível de leitura por onde recaem estas veredas
bífidas que se abrem através do tempo, na sobreposição de um passado incessante, de um
presente já passado e de um futuro fantasmagórico, aventuro um primeiro passo, no limiar das
lucubrações, ficções sobre ficções que se pretendem reais e que mais irreais se tornam quanto
mais delas me aproximo e me afasto, como quem procura um ponto de foco ou a anestesia de um
ponto cego.
Um ponto de partida que se poderia estabelecer para começar a ler a revista Anhembi
(neste momento contemplo as capas descoloridas das edições do acervo, onde numa tarja surgem
os contornos de uma floresta, praticamente virgem, cortada por um rio, no qual vejo uma canoa
com cinco remadores, além de uma e outra edificação e de um e outro homem que nela se
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1 Bacharel e Licenciado em Letras – Língua Portuguesa e Literaturas pela UFSC. Mestrando em Teoria Literária, sob
orientação da Profa. Dra. Maria Lucia de Barros Camargo. Agradeço a ela a orientação recebida, bem como a
fundamental contribuição das reflexões e indicações bibliográficas do Prof. Dr. Raúl Antelo a respeito do
Modernismo desenvolvidas ao longo de dois cursos na graduação e um na pós. Este trabalho vem sendo
desenvolvido com o apoio de bolsas (de Iniciação Científica e de Mestrado) do CNPq.
2 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Kafka: por uma literatura menor. Trad. Julio Castagnon Guimarães. Rio de
Janeiro: Imago, 1977.
3 BARTHES, Roland. Deliberação. In.: ______. O rumor da língua. Lisboa: Edições 70, 1987.
aventura) é seu nome. “Rio de unas aves añumas”4, Anhembi é o nome ancestral do Tietê, roteiro
de penetração já utilizado pelos indígenas, primeiros habitantes do Brasil, e importante para os
bandeirantes adentrarem alguns dos rincões que hoje já se encontram amplamente urbanizados. O
próprio diretor da revista, Paulo Duarte, de quem falaremos adiante, dá conta dessas informações
no editorial do primeiro número. Se outrora fora o rio um caminho de penetração física para o
Brasil (e, inevitavelmente, cultural, pois as bandeiras foram parte importante do processo de
apropriação das novas terras pelos europeus), propunha-se o periódico, no final do ano de 1950, a
ser um mecanismo de penetração cultural, e, mais do que isso, de “elevação da cultura brasileira”.
Cabem duas perguntas: que cultura se pretende difundir? E sobre que outra cultura pretende ela
se afirmar? A pergunta é muito ampla para ser respondida em um breve ensaio. Portanto,
traçaremos, ao longo deste, alguns pontos preliminares, pensando, em especial, as relações entre
o periódico e alguma arte brasileira que lhe era contemporânea.
Uma “busca dolorosa de unidade” é o que se revela desde o primeiro editorial da revista.
Unidade que condiz com Estado, que nos leva a pensar no Modernismo, e em suas ligações com
ele e com a criação do que se convencionou chamar uma “identidade nacional”, quão
problemático possa ser pensar em identidades em tempos em que estas estão fadadas a (não) se
firmarem pela alteridade. Estado, entretanto, que não é o Estado Novo, já passado, mas cujo
mentor, Getúlio Vargas, elegera-se novamente presidente nas eleições de outubro de 1950, e é
duramente atacado pela revista. Estado que precisa sacrificar regionalismos em nome de uma
narrativa de nação. Estado que se pretende democrático, mas que jamais poderá fugir de ter
voltados para sobre si interesses (nem sempre idôneos). Ora, ler os propósitos de Paulo Duarte (e
de um certo grupo político que o sustenta e que financia seu projeto) é algo que não se pode fazer
com a inocência de quem crê em uma imprensa neutra e imparcial. É preciso olhar para aquele
que se propõe revolucionário, ou partidário da justiça social, como alguém que se liga às elites
paulistanas, e, nessa condição, produz culturalmente com elas e para elas.
A revista revela, de antemão, um posicionamento editorial, na orelha de sua capa5: só
publica textos inéditos. O que não significa que só publique autores inéditos. O grupo de autores
que ali tem seus textos editados é muito ligado ao próprio editor, e muitas pequenas notas na
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4 DUARTE, Paulo. Anhembi. Anhembi. V. I, n. 1. São Paulo: Anhembi, dez. 1950, p.1.
5 O formato editorial de Anhembi é muito semelhante ao de um livro, tanto em termos de dimensões, quanto de
composição (brochura), quanto pelo fato de ter orelhas. Além disso, a iconografia é parca, aparecendo somente nas

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