20 anos da Constituição Democrática de 1988

AutorCarlos Roberto de Siqueira Castro
Páginas200-214

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Todos 1 sabemos o quanto a Constituição democrática de 1988 tem sido, desde sua promulgação, ameaçada pelo revanchismo das elites reacionárias. Estas jamais pouparam argumentos falaciosos para desacreditar a Carta Política que comemora 20 anos e apressar uma revisão constitucional e sucessivas emendas que lhes restaurem os privilégios castiços e interrompa a ascenção do povo brasileiro aos predicados da cidadania e dos direitos humanos. Nunca se atacou tanto um diploma constitucional reponsável pela pacificação nacional e restauração do convívio democrá-tico em nosso país. Contra a Constituição de 1988 levantaram-se sempre alguns dos mais funestos personagens do período ditatorial, a vociferar seu desdém para com as causas populares e os legítimos interesses da soberania nacional. Trata-se, enfim, dos reacionários de sempre, ultima-mente travestidos de neo-liberais e de arautos da modernidade, que há duas décadas sustentaram a inconveniência de uma Assembléia Nacional Constituinte corregedora das trapaças institucionais que perpetraram e, sobretudo, que resgatasse os malefícios inflingidos aos direitos humanos e ao povo trabalhador na fase obscurantista da vida brasileira pós 64. Desses algozes da Constituição podemos dizer, com Camile Claudel: "A imaginação, o sentimento, o novo, o imprevisto que surge do espírito desenvolvido, é proibido para eles, cabeças fechadas, cérebros obtusos, eternamente negados à luz". Infelizmente, esses partisans do arbítrio e do Page 201elitismo em fim de linha possuem lugar cativo em certos setores da mídia cartelizada, que acolhem e não raro se associam aos seus apetites de poder e de lucro fácil. É isto o bastante para disseminar a desinformação e a dúvida do grande público acerca das virtudes e do saudável roteiro de transformações sociais descortinado pela Constituição do Brasil. Lembrome, para exemplificar a insanidade e o preconceito de tantos detratores da Constituição, que uma das críticas mais comumente ouvidas durante e após o encerramento do trabalho constituinte pautava-se na extensão analítica do texto constitucional, contando com 245 artigos na parte permanente e com 70 artigos no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Essa intolerância cúmplice de interesses inconfessáveis recebeu à época a resposta lúcida e cortante de Osny Duarte Pereira, ao sustentar: "As pequenas constituições de países industrializados não são duráveis pelo fato de serem sintéticas, mas pela circunstância de regularem a existência de povos de economia já estratificada, sem uma distribuição insultante de riquezas como ocorre com a dos países periféricos. O atendimento à maior parte da classe trabalhadora em suas necessidades fundamentais, nos países ricos, que recolhem também renda dos países pobres, possibilita um relacionamento pacífico e pouco reivindicativo. Daí uma constituição estável. O mesmo não ocorre em países como o Brasil, em que a estrutura do Estado é tremendamente injusta e a insatisfação do povo gera um equilíbrio precário e sujeito a transformações sempre almejadas.... A nação encontra-se em período de transição de um regime autoritário, ainda presente, para um regime que se espera democrático e impregnado de justiça social. Essas esperanças devem estar consignadas no texto constitucional, para que não sejam esquecidas e abolidas, pela inércia e pelo cansaço de tanto lutar" (no volume Constituinte - Anteprojeto da Comissão Afonso Arinos, Ed. Universidade de Brasília, 1987, pág. 24).

Creio que devamos bem compreender a importância histórica da Constituição de 1988 para o processo de transição democrática em nosso País. Após 20 anos do regime autoritário que caracterizou o "governo dos generais" iniciado com o golpe militar no ano de 1964, a sociedade brasileira não mais escondia seu desprezo e inconformismo para com a nefanda experiência da ditadura. A par do imperativo histórico da anistia ampla, geral e irrestrita que resgatasse todos os compatriotas que amargaram no exílio, na clandestinidade ou no simples banimento social e político os horrores e a truculência ditatorial,generalizava-se, de um lado, no Page 202 início dos anos 80, a reivindicação por eleições diretas para Presidente da República que pusesse fim ao seriado de nomeações de presidentes decididas nos quartéis, de resto homologadas por um Congresso Nacional subserviente em sua maioria. De outro lado, as forças da resistência democrática - sediadas sobretudo no então único partido de oposição - o MDB - e em instituições de vanguarda intelectual e política, como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Associação Brasileira de Imprensa (ABI), as universidades, os sindicatos e também em setores da Igreja progressista - pregavam a inadiável convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte. Esta era vista como única via de expressão popular legítima e capaz de encerrar o ciclo do barbarismo jurídico representado por dezenas de atos institucionais e complementares editados pelos governos militares que conspurcavam o ordenamento constitucional, com o propósito declarado de centralizar o poder governamental nas mãos do Executivo militarizado, de maneira a fragilizar a atuação do Poder Legislativo, a subtrair as garantias da Magistratura e a desfalcar as liberdades públicas e os direitos fundamentais do homem. Só a Constituinte, livremente eleita pelo povo, estaria habilitada a reconstruir a comunidade nacional após duas décadas de arbítrio e de ressentimentos em face das autoridades golpistas escudadas na arrogância das baionetas. Não foi mera coincidência, portanto, que tanto as eleições presidenciais quanto a Constituinte sobreviessem praticamente juntas num espaço de dois anos. Primeiramente, instalou-se a Assembléia Nacional Constituinte em 1º de fevereiro de 1987, convocada que fora pela Emenda Constitucional nº 26, promulgada pelo Congresso Nacional em 27 de novembro de 1985. Em seguida, e já por determinação da nova Constituição do Brasil, esta finalmente promulgada em 5 de outubro de 1988, fez-se possível a reali-zação do sufrágio direto para Presidente da República há tanto reclamado pelo povo brasileiro, que ocorreu em 15 de novembro de 1989, segundo o sistema de dois turnos estabelecido no art. 77 do novo estatuto constitucional, semelhante àquele previsto no art. 7 da Constituição francesa de 1958.

É certo, todavia, que o ato convocatório da Constituinte (a Emenda Constitucional nº 26/85) não cuidou de instalar uma Assembléia autônoma e unicamente dedicada à tarefa monumental de editar e promulgar a nova Constituição. Em realidade, elegeu-se um novo Congresso- Nacional integrado por 487 Deputados e 72 Senadores, nos moldes da Page 203 tradição bicameral brasileira herdada no constitucionalismo republicano norte-americano. Tal circunstância infortunada provocou, por certo, o refugo da candidatura de inúmeras personalidades expoentes do pensamento democrático nacional, a exemplo de Barbosa Lima Sobrinho e Raymundo Faoro, que não se animaram a disputar um mandato eletivo com políticos profissionais, tanto mais que o êxito de uma postulação eleitoral num sistema partidário rigidamente proporcional exigia, além da concorrida indicação dos poucos partidos historicamente respeitáveis, a disponibilidade de vultosos recursos financeiros. Por isso, a Consti-tuinte, apenas num primeiro momento, refletiu mais a representação da classe política tradicional do que propriamente a capilaridade extensiva da sociedade civil. Sua composição exibiu em grande parte parlamentares já detentores de mandato eletivo ou egressos da militância políticopartidária nas últimas décadas, ora de tendência conservadora, ora de inclinação progressista, mas de um modo geral comprometidos com o esquema da transição constitucional lenta e gradual projetada pelos arquitetos do declínio da ditadura, o que vale dizer, sem qualquer vocação para a ruptura drástica com o recente passado autoritário. Era, enfim, a Nova República cumprindo o seu papel de carruagem rumo ao governo civil e aos umbrais da democracia representativa.

Nada obstante, esse perfil ideológico temperado da Constituinte, onde predominou o chamado grupo do Centrão, cujos componentes...

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