O Problema do Antagonismo Político na Formação do Poder Constituinte Originário

AutorLuiz Elias Miranda dos Santos
CargoAdvogado (João Pessoa-PB)
Páginas19-24

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1. Considerações preliminares e colocação do problema

O poder constituinte é um dos grandes temas do direito constitucional clássico. Sua teorização foi impulsionada pelo constitucionalismo francês de cariz revolucionário que enfatiza a brutal ruptura institucional com o poder previamente constituído.

Segundo a definição mais recorrente para o fenômeno do poder constituinte originário, ele consiste no poder máximo de criação ilimitado de uma nova ordem jurídica, não se submetendo a qualquer limitação no momento de seu exercício.

Contudo, tal compreensão do poder constituinte pode apresentar alguns problemas. É o que se pretende demonstrar no presente trabalho: a incorreção da concepção do poder constituinte originário como fenômeno político de natureza ilimitada/ incondicionada.

Outra questão que se busca esclarecer é o mito da sociedade plural e da fraternidade que se intenta disseminar como existente no âmbito do direito constitucional na atualidade. Trata-se de entender o papel das minorias dentro do sistema de direitos e garantias fundamentais da constituição, papel que hoje fica muito mais evidente com a heterogenei-dade e a questão do risco na sociedade pós-moderna1.

Neste panorama problemático, no qual coexistem o princípio da maioria e a proteção das minorias, percebe-se a natureza conflituosa da política, conflito este que se expressa através do próprio exercício do poder constituinte originário, como a seguir se demonstrará.

A ênfase do presente texto não recai no exercício do poder constituinte em si, mas sim na "decisão política de elaborar uma lei fundamental"2. Na realidade, este momento está na origem daquele que dá forma (constituição).

Em suma, nosso objetivo é demonstrar o caráter antagonista da política moderna e as consequências de tal conflito na formação do Estado e da constituição.

2. O poder constituinte e sua atual concepção no âmbito do direito constitucional

Não há um consenso sobre a real natureza do poder constituinte, se política, jurídica ou se seria uma mescla entre as duas.

Apesar de o poder constituinte, em verdade, revelar-se "como uma questão de poder, de força ou de autoridade política que está em condições de, numa determinada situação concreta, criar, garantir ou eliminar uma Constituição"3, o mesmo não pode ser compreen-dido como algo puramente político, mas sim como uma categoria

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que deve ser pensada sob o prisma político, jurídico e filosófico.

A dificuldade de determinação da natureza do poder constituinte não é algo dele exclusiva. Semelhante dificuldade pode ser encontrada ao se abordar temas capitais de filosofia política e direito constitucional, como é o caso do estado de exceção4, da guerra ou da revolução5.

De fato, pode-se afirmar que a ideia de poder constituinte situase em uma zona de indeterminação (zona gris) entre o direito e a política, não sendo propriamente um conceito jurídico, nem muito menos uma questão de pura força determinada exclusivamente pela dinâmica das forças políticas do Estado.

Habitualmente, para a compreensão da teoria do poder constituinte há três modelos distintos, quais sejam, o historicista (revelar a norma) de matriz inglesa, o americano (dizer a norma) e o francês (criar a norma), também conhecido por sua natureza revolucionária. Devido às proporções do presente texto, vamos centrar nossas atenções no modo como o constitucionalismo francês compreende o poder constituinte.

Da forma como o direito constitucional brasileiro assimila a teoria do poder constituinte, em especial o denominado poder constituinte originário, que cria a primeira constituição ou que marca a substituição da vigente por uma nova ordem positiva, por qualquer motivo que seja (revolução, golpe de Estado, transição democrática de regime etc.), percebe-se a clara influência da doutrina constitucional francesa, ainda muito forte, nos estudos que definem o poder constituinte originário como manifestação "inicial, ilimitada e incondicionada"6.

Em suma, o constitucionalismo revolucionário - encabeçado pelos escritos do abade francês Sieyès - vê a possibilidade de um radical rompimento com todo o sistema institucional anterior à revolução e, com essa ruptura, a possibilidade de criação constitucional a partir do nada.

Percebe-se, em tal forma de raciocínio, uma forte influência da teologia cristã, o que dá margem à formação de uma teologia política, conferindo características quase divinas ao poder constituinte (originalidade, autonomia e onipotência), de forma muito parecida com o conceito de soberania formulado pelos filósofos medievais e também da era moderna (quando do florescimento dos Estados nacionais) a partir da fórmula da suprema potestas superiorem non recognoscens7.

Deve-se repelir a ideia que se tenta propagar por meio do constitucionalismo francófono de uma possibilidade de criação jurídicopolítico a partir da ausência de qualquer referência normativa (axiológica, jurídica, religiosa etc.), como que na tentativa de criar um deus secular, um resquício de metafísica (e da teologia política de característica medieval) na ordem estatal que deve ser repelida pela tese republicana do caráter estritamente laico do Estado. A propósito, este é um dos principais pontos do projeto liberal (ou liberdade dos modernos8) que embasa a revolução francesa, ou seja, o Estado e (principalmente) o direito como frutos da criação racional humana.

Desta forma, na atualidade não é possível concordar com a concepção que os revolucionários franceses (1789) deram ao poder constituinte originário, mais ainda nos tempos de Estado secular da atualidade, onde se rejeita (ou se deveria rejeitar) a influência de uma teologia secularizada (por mais contraditória que tal expressão possa parecer) na formação da dinâmica política.

Cabe ressaltar, portanto, que a constituição não se forma a partir de um vazio normativo e o poder constituinte originário - mesmo que em sua primeira aparição na sociedade - não cria o Estado a partir do nada.

A partir da tese de que o poder constituinte originário não atua construindo tudo a partir do nada, infere-se sua necessária vinculação jurídica a determinados princípios.

Isto significa que a liberdade de criação do poder constituinte é relativa, por mais que a sua atividade venha a plasmar a forma que o Estado e o próprio processo político deverão assumir. Portanto, além da vinculação política (vontade popular9), o poder constituinte submete-se a limitações das mais variadas formas (jurídica, econômica, sociológica, ética, princípios internacionais etc.). E são exatamente tais limites que conferirão legitimidade à carta política ante a sociedade que ela busca conformar.

3. O antagonismo e sua presença na política pós-moderna

Na atualidade, cresce uma voz de natureza otimista que tenta tornar sólida a ideia de que a política é um espaço plural que busca a realização da felicidade de todos, sem distinção alguma, ou seja, a política seria o espaço para propagação da felicidade. De acordo com esse objetivo, a fraternidade teria papel essen-cial como princípio informativo da ação política, regulador do exercício razoável da liberdade e igualdade10.

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Por mais animadora ou até mesmo sedutora que seja tal ideia, não é possível seguir por tal senda. Afinal de contas, a natureza da política, desde seus primórdios, está ligada ao antagonismo.

A fraternidade pode ser mais aplicada como princípio jurídico do que como elemento essencialmente político. A política é ação humana que sempre tenta fugir das esferas de controle, mostrando-se incompatível, comumente, com a...

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