Mediação e arbitragem de conflitos de consumo:Panorama português

AutorCátia Marques Cebola
CargoDoutora em Direito e Docente no Instituto Politécnico de Leiria/ESTG
Páginas11-46

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Introdução

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, recitava o poeta ao proclamar a mudança como a tónica do mundo em que coexistimos e o motor da sua evolução. Todavia, a existência de conflitos, decorrentes das relações entretecidas no seio de qualquer sociedade, mantém-se uma realidade incontornável em qualquer tempo histórico. Certo é que os conflitos vão assumindo diferentes tipologias e especificidades tendo em conta a época ou o contexto em que emergem.

Nas atuais sociedades de consumo, a inerente litigiosidade assume características específicas, reivindicando uma resposta apropriada às particulares exigências deste tipo de demanda jurídica. O reduzido valor dos litígios de consumo, face às custas processuais em vigor, as especificidades das matérias inerentes ao direito do consumo ou o seu caráter transfronteiriço, no atual contexto de globalização da economia, constituem alguns dos fatores que evidenciaram as deficiências do sistema judicial. Consequentemente tornouse premente a criação de meios extrajudiciais de resolução de conflitos, de que são exemplos a mediação ou a arbitragem, referidos genericamente pela expressão anglo-saxónica de ADR - Alternative Dispute Resolution (ou RAL, na designação portuguesa).

Não é, portanto, de estranhar que a história recente da resolução extrajudicial de conflitos na Europa e, de forma particular em Portugal, se tenha desenvolvido em grande medida no âmbito do direito do consumo, alavancada no desenrolar da política de defesa dos consumidores. O Livro Verde sobre o Acesso dos Consumidores à Justiça e a resolução dos litígios de consumo no mercado único de 1993 dava conta da existência de "comissões de queixas dos consumidores", instituídas desde os anos 1970 em países como a Dinamarca, a Suécia e na Finlândia, para solucionar conflitos de consumo de forma simplificada. No Reino Unido ou na Irlanda foi estabelecida em determinados setores económicos, como na banca ou nos seguros, a figura do "private Ombudsman", que mediava e dava resposta às queixas apresentadas pelos consumidores no âmbito dos serviços abrangidos pelas suas competências. Portugal e Espanha enveredaram pela implementação de tribunais arbitrais de conflitos de consumo, especializados na resolução deste tipo de litigiosidade.

Em causa não estará, em rigor, criar alternativas ou vias secundárias para reduzir a procura judiciária e fazer face à incapacidade de resposta dos tribunais civis. Verdadeiramente procura-se implementar mecanismos que, assumindo cariz extrajudicial, são dotados de técnicos e peritos especializados em direito

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do consumo, capazes de prestar a informação necessária aos consumidores e decidir de forma tecnicamente adequada os conflitos nesta sede, atendendo às especificidades que os caracterizam. Pretende-se, em suma, concretizar de forma plena o direito à proteção jurídica e a uma justiça acessível e pronta, tal como consagra o art. 3º, al. g) da Lei de Defesa do Consumidor portuguesa (Lei 24/96, de 31 de Julho).

Desta forma, iniciamos o presente trabalho analisando as particularidades da litigiosidade decorrente das relações de consumo, norteados pelo objetivo de definir qual a importância de procedimentos especializados nesta área e as exigências a que devem dar resposta, para garantir a reivindicada justiça célere e equitativa. Traçamos depois a evolução das políticas europeias no âmbito da resolução extrajudicial de conflitos de consumo, fixando os objetivos almejados nesta matéria a serem prosseguidos pelos Estados-membros. Seguidamente focamos a nossa atenção no panorama português, tentando-se perceber de que forma os mecanismos extrajudiciais granjearam consagração no nosso ordenamento jurídico. Terminamos o nosso périplo analisando o funcionamento dos Centros de Arbitragem de Conflitos de Consumo, apresentando propostas de uniformização dos respectivos regulamentos, no sentido de potenciar a afirmação de um verdadeiro sistema arbitral de consumo em Portugal.

1. Conflitos de consumo: características específicas

Tomando como base de análise os vários regulamentos dos centros de arbitragem especializados neste setor, consideram-se conflitos de consumo os que decorrem da aquisição de bens, serviços ou direitos destinados a uso não profissional e fornecidos, prestados ou transmitidos quer por pessoa que exerça, com caráter profissional, uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios, quer ainda pelos organismos da Administração Pública, por pessoas coletivas públicas, por empresas de capitais públicos ou detidos maioritariamente pelo Estado, pelas Regiões Autónomas ou pelas autarquias locais e por empresas concessionárias de serviços públicos1.

Da aplicação prática desta noção resultam algumas particularidades, que analisaremos seguidamente, tentando perceber porque se tornam inadequados os tribunais civis e quais as valências dos meios extrajudiciais.

i Relação consumidor-agente económico

Os conflitos de consumo nascem da especial relação jurídica que se estabelece entre consumidor e agente económico, aquando da aquisição de

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bens, prestação de serviços ou transmissão de direitos, destinados a uso não profissional. A especificidade deste tipo de relação resulta da necessidade de proteção do consumidor, por constituir a parte "economicamente mais fraca e juridicamente menos experiente do que o seu co-contratante", tal como afirmou o Tribunal de Justiça das Comunidades no Processo Shearson Lehman Hutton2.

Na verdade, o agente económico possui, não raras vezes, departamentos jurídicos especializados, os quais são responsáveis pelo seu aconselhamento legal e patrocínio judiciário. O consumidor, pelo contrário, interage na atual sociedade de consumo desprovido da mesma igualdade de "armas", encontrando-se desprotegido, quer no momento de celebrar determinados contratos, dando anuência a cláusulas cujo alcance jurídico frequentemente não percebe, quer no momento em que o conflito surge, por desconhecimento dos direitos que lhe são devidos.

Esta realidade justificará que os meios de resolução de conflitos de consumo promovam a assistência e informação jurídica do consumidor, bem como uma forma simplificada e acessível para solucionar o seu litígio, exigência que contrasta com a complexidade processual de uma demanda judicial.

ii Valor dos litígios

O objeto das relações jurídicas de consumo respeita muitas vezes a aquisições de bens ou prestações de serviços de baixo preço, o que se projeta no reduzido valor deste tipo de litígios, sendo vulgarmente designados, ainda que forma imprópria, de "bagatelas jurídicas". Dizemos de forma imprópria, na medida em que o seu baixo montante não significa uma menor importância do conflito, nem mesmo um menor transtorno na vida do consumidor afetado. Contudo, o valor diminuto que caracteriza de uma forma geral este tipo de litigiosidade cria no consumidor uma atitude passiva na resolução do seu problema jurídico, pelas dificuldades e obstáculos que o sistema judicial lhe apresenta.

Na verdade, o processualismo intrincado, a morosidade judicial, as custas do processo e as despesas inerentes à assistência jurídica por advogado constituem fatores desincentivadores do recurso à via judicial por parte dos consumidores, que preferem assumir o prejuízo sofrido perante a opção de seguirem um caminho penoso na defesa dos seus direitos3. Desta forma, as instâncias competentes nesta sede terão de ser gratuitas ou exibir custos moderados, tal como se verifica nos atuais Centros de Arbitragem de Conflitos de Consumo.

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iii Especificidades das matérias de direito de consumo

As matérias inerentes aos conflitos de consumo levantam questões específicas, norteadas por princípios próprios que, paulatinamente, deram origem ao direito do consumo. A legislação neste âmbito é diversa e abrange a regulamentação de questões tão díspares como a matéria das viagens organizadas, dos serviços públicos essenciais ou das garantias de bens móveis e imóveis.

Acresce que, face à constante mudança da realidade económica e social inerente às atuais sociedades de consumo, as alterações legislativas nesta sede ocorrem a uma velocidade galopante. Desta feita, o esforço de atualização normativa implica uma capacidade quase hercúlea por parte dos profissionais que lidam com estas matérias. Esta inevitabilidade convocará que o julgador de conflitos de consumo seja um estudioso deste ramo do direito, atento à sua evolução legislativa, doutrinal e jurisprudencial e, portanto, que se assuma como especialista com dedicação exclusiva a estas matérias, o que não se verifica na atual orgânica judicial. Uma vez mais esta especificidade reclama a existência de estruturas especializadas com técnicos próprios.

iv Efeito réplica

Uma quarta nota caracterizadora dos litígios de consumo reside na sua capacidade de réplica, podendo afetar simultaneamente vários consumidores. Pense-se, por exemplo, numa viagem organizada por determinado operador turístico cujo hotel não oferecia as condições publicitadas. Neste caso serão atingidos todos os consumidores que tiverem adquirido a predita viagem. Ou recorde-se a notícia trazida a público...

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