João de bermudas

josegcastello@gmail.com/oglobo.com.br/blogs/literaturaTodo um passado - os anos de minha formação - retorna assim que abro os "Contos reunidos", de João Antonio. Eles me chegam em cuidadosa edição da Cosac Naify, com apresentação de Rodrigo Lacerda e ilustrações de Carlos Issa. Releio, devagar, alguns de meus contos prediletos: João, com sua fúria de desbravador, metido em suas bermudas sempre amarfanhadas, ressurge inteiro à minha frente. João e sua estratégia perigosa de fazer da escrita um soco. De agitar a realidade, sacudi-la, na esperança de trazê-la de volta a si - como se ela acordasse de um desmaio. Fez da palavra seus músculos. Escreveu como um boxeador.Conheci João Antonio na redação do "Diário de Notícias". Eu, um repórter iniciante. Ele, um grande repórter. Frequentei seu apartamento na Praça Serzedelo Correa, em Copacabana. A mesa da sala em grande desordem: muitos livros, cadernetas, copos de cerveja, recortes de jornais. Ali, em seu bunker de escritor, tramou suas incursões pelas frestas de um Brasil asfixiado. A ditadura estava em seu apogeu. A realidade era perigosa. A escrita foi a arma que João Antonio manejou para fazer sua guerrilha.Esteve sempre insatisfeito com o Brasil oficial. Metia-se em suas entranhas: frequentava o submundo, preferia a companhia dos rejeitados e miseráveis, rondava os becos mais sórdidos. Quando inventou o "conto-reportagem" - seguindo as lições de seu grande mestre, Truman Capote -, encontrou um caminho para fazer da literatura não uma atividade de salão, mas uma arma de combate. Os jornalistas o viam com desconfiança: tinha a fama de exagerado e mentiroso. Os escritores também: achavam que João confundia literatura com jornalismo. Enquanto isso, ele avançava. Sempre desprezou os gêneros literários e abominou a ideia de uma literatura pura. João preferia a sujeira das ruas. Nauseante, mas verdadeira.Em seus contos, encontramos tudo o que o mundo tem de pior - mas, também, de mais humano. João Antonio se orgulhava de suas mãos sujas. Preferia a companhia de vagabundos, prostitutas, dedos-duros, biscateiros, viciados, malandros. Sim: o Brasil Grande lhe doía, como um ferimento, e João não tinha medo de se agarrar a essa dor. Dor, raiva e uma aversão profunda pelas máscaras. Viveu, como está em um de seus relatos, abraçado a seu rancor. Escolheu-o como via régia para a verdade.Em suas narrativas, surge, inteiro, o mundo que a classe vitoriosa preferia esconder. Um universo incômodo e cruel, de malandros...

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