A institucionalização da cooperação internacional: Uma breve análise da evolução histórica do sistema monetário internacional

AutorLuiz Ricardo De Miranda
Páginas265-292

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A palavra revolução evoca, na Amaior parte das vezes, a idéia de uma mudança brutal, normalmente de origem popular e produzida à ocasião de um evento de proporções espetaculares. Entretanto, a realidade de certas revoluções não corresponde exatamente a essa idéia. Contrariamente ao apelo emocional habitualmente atribuído a este termo, revoluções são, em sua maioria, silenciosas e desenvolvem-se gradualmente no tempo. A história do sistema monetário internacional dá-nos um exemplo claro disto.1

Podemos definir o sistema monetário internacional como um conjunto de regras (formais ou costumeiras) e instituições sob as quais são feitos ou recebidos pagamentos em transações efetuadas além das fronteiras nacionais.2 Apesar da natural indução ao formalismo - acordo global obtido através de uma conferência internacional - que a noção de sistema pode sugerir, tais acordos, como Bretton Woods, não são a regra nesse âmbito, mas sim a exceção. Com maior freqüência, a modelagem do sistema monetário internacional é determi-

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nada por decisões individuais de cada país e, em grande medida, influenciada pela herança histórica.3

Ainda que os Acordos de Bretton Woods tenham efetivamente criado um novo sistema monetário internacional, é inegável tratar-se, este evento, apenas de uma etapa inserida num processo de transformação muito mais amplo, iniciado no fim do século XIX, mais precisamente com a adoção do padrão ouro (gold standard) pelas principais economias da época.

Seria, portanto, vã a pretensão de compreender o estado atual dos sistemas monetário e financeiro internacionais e seus desafios, sem antes promover uma breve retrospectiva de sua história.

A gênese do sistema monetário internacional

A utilização de metais preciosos como moeda tem sido uma prática corrente há tempos. Durante a Idade Média, o principal metal a assumir esse status era a prata, muito embora outros metais, como o ouro e o cobre, fossem, em menor escala, também utilizados. Esta combinação de moedas de ouro, prata e mesmo cobre representava a base dos pagamentos nesse período.

A expansão do comércio além das fronteiras nacionais provocou a inevitável internacionalização das moedas, processo facilitado pelo seu próprio valor intrínseco. Esta internacionalização das moedas, cujo transporte e manuseio permaneciam tarefas bastante difíceis, foi paralelamente acompanhada do desenvolvimento da ati-vidade bancária e da proliferação das moedas escriturais.4

Devido à variedade de metais preciosos que preenchiam os requisitos de moeda durante esse período, seria natural (como de fato ocorreu) que, em certos países, vigorassem diferentes estatutos monetários. Alguns desses países, no século XIX, permitiam mesmo a circulação simultânea de ouro e prata; donde a denominação bime-talismo.5

No início do século XIX, os britânicos eram os únicos que adotavam o padrão ouro (gold standard). Os Estados alemães, o Império Austro-Húngaro, a Escandinávia, a Rússia e o Extremo Oriente optavam pelo padrão prata, enquanto outros países, como a França, adotavam o bimetalismo, realizando a comunicação entre os dois primeiros sistemas.6

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Porém, a circulação simultânea de dois ou mais tipos de moeda implicava um risco potencial de crise no mercado monetário. As flutuações no mercado desses metais constituíam-se, também, num elemento de instabilidade adicional, pois criavam um clima propício à ação de agentes especulativos; estes últimos, tidos como responsáveis por uma parte considerável das turbulências vividas nesse período. Apesar dessa dificuldade na gestão do bi-metalismo, este sistema surpreendentemente sobreviveu até a segunda metade do século XIX.

A adoção do padrão ouro, como base do sistema monetário internacional então em gestação, pode ser atribuída a uma conjugação de fatores.

As tensões nos sistemas bimetálicos, aumentadas em parte pelo crescimento do comércio internacional, tornaram-se muito mais freqüentes ao final do século XIX. Além disso, a Guerra Franco-Prussiana acelerou a degradação econômica dos países envolvidos nesse conflito, ao mesmo tempo em que grandes descobertas no se-tor de mineração - notadamente na Califórnia (1848), Austrália (1851), Nevada (1859) -, intensificadas pelo avanço tecnológico do processo de extração desses minerais, também provocaram severas oscilações nos países bimetálicos.7

No entanto, o evento mais importante desse período, e talvez aquele que tenha contribuído de forma mais significativa para a adoção generalizada do ouro como padrão único do nascente sistema monetário internacional, foi, sem sombra de dúvida, a revolução industrial. Seu símbolo, a máquina a vapor, eliminou o obstáculo técnico até então existente na forja de moedas de ouro em peças de pequeno valor. Uma outra faceta da revolução industrial foi o formidável poderio econômico adquirido pelos britânicos, cujo Estado emergiu como principal potência da época.

O crescimento da produção em escala global abriu-lhe novos mercados, ao mesmo tempo em que suas numerosas colônias forneciam-lhe as matérias-primas necessárias ao seu desenvolvimento. No plano logístico, a sua frota naval garantia-lhe uma considerável e crescente parte do frete internacional que, por sua vez, propiciou o desenvolvimento dos setores financeiro e de seguros. Sustentada por esse crescimento extraordinário, a atividade bancária desenvolveu-se ainda mais, diversificando-se e transformando Londres no centro econômico e financeiro do mundo.8 Diante de tais circunstâncias, compreende-se perfeitamente as razões que engendraram o processo generalizado de migração ao padrão ouro iniciado na metade do século XIX.

Portugal, tradicional parceiro comercial britânico, foi um dos primeiros países a convergirem ao padrão ouro (1854). No entanto, foi somente quando a Alemanha alinhou-se ao Império Britânico (1871), que essa dinâmica realmente se acentuou. A Alemanha, nessa época, era a principal potência industrial da Europa continental e a segunda no plano mundial.

A passagem ao ouro na Alemanha deveu-se, também, a outros motivos. A Guerra Franco-Prussiana provocara a nítida degradação das economias implicadas naquele conflito e a suspensão da conversibi-lidade das respectivas moedas. A adoção do padrão ouro revelou-se a melhor opção

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àquele país, cujo objetivo era intensificar a relação comercial com os britânicos. Além disso, vale lembrar que o Império Britânico era a principal fonte de financiamentos externos durante esse período.

A iniciativa alemã causou, por sua vez, um grande impacto no mercado monetário. A eliminação de seus enormes estoques de prata e sua respectiva substituição por ouro significaram um violento golpe no já instável mercado da prata. Assim, a convergência da Alemanha ao ouro engendrou uma reação em cadeia de outros países9 interessados em compartilhar do mesmo padrão de seus principais parceiros comerciais e financeiros.

Foi desta forma que, ao final do século XIX e início do século XX, deu-se a emergência de um novo sistema monetário internacional baseado no ouro.

O padrão ouro ("gold standard")

Contrariamente ao que poderíamos imaginar, o padrão ouro não foi uma invenção bem elaborada do gênio humano; muito pelo contrário. A sua implementação foi, na verdade, um evento acidental na história monetária da Grã-Bretanha.

O padrão ouro foi o produto de uma ação das autoridades monetárias britânicas, então sob a direção de Sir Isaac Newton, que, ao fixarem o preço da prata em ouro a um nível excessivamente baixo, provocaram o quase desaparecimento de moedas de prata em circulação. Esse processo não foi, contudo, imediato. Mesmo se esta medida tomou efeito em 1717, seus episódios finais ocorreram apenas em 1774, quando as autoridades daquele país aboliram o curso forçado das moedas de prata em transações acima de 25 libras, e, em 1821, quando o curso forçado dessas moedas foi também definitivamente abolido nas transações de pequeno valor.10

Caso precisássemos resumir, em poucas palavras, as bases do padrão ouro, diríamos que os pilares centrais desse sistema eram duas regras: a fixação do peso das peças de ouro ou do preço do ouro em moeda nacional; a livre conversibilidade.11

Para compreendermos o funcionamento desse sistema no plano internacional, convém recorrermos ao mecanismo elaborado por David Hume já no século XVIII.12

O modelo elaborado por Hume,13 conhecido como Price specie flow mecha-nism, é evidentemente bastante simplificado em relação à realidade. Seu ponto de partida é um mundo exclusivamente baseado na circulação de ouro e onde o papel dos bancos é considerado desprezível. No mecanismo descrito por Hume, o nível de reservas de ouro é diretamente afetado pelas trocas comerciais. A partir disso, quando uma mercadoria é comercializada, o respectivo pagamento opera uma transferência de ouro do país importador ao país exportador. O efeito óbvio dessa ação é a diminuição das reservas de ouro do primeiro, acompanhada do aumento das reservas de ouro do segundo. Essa perda de ouro no país deficitário desencadeia uma

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série de eventos autocorretivos: a diminuição da quantidade de moeda em circulação e a queda dos preços internos. Inversamente, naquele país superavitário, assistimos ao aumento da quantidade de moeda em circulação e a alta dos preços dos produtos no âmbito nacional. A conclusão lógica, a partir desse esquema, é a inversão das posições comerciais e o reequilíbrio do sistema.

Apesar de sua utilidade, notadamente durante o período inicial do...

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