Capitalismo, Crise e Direito do Trabalho

AutorJorge Luiz Souto Maior
Páginas105-111

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Para falar desse tema aparentemente árduo, vou me guiar pela belíssima letra da música, Primeiro de Maio, de Chico Buarque de Holanda e Milton Nascimento:

Hoje a cidade está parada

E ele apressa a caminhada

Pra acordar a namorada logo ali

E vai sorrindo, vai aflito

Pra mostrar, cheio de si

Que hoje ele é senhor das suas mãos E das ferramentas

Quando a sirene não apita

Ela acorda mais bonita

Sua pele é sua chita, seu fustão

E, bem ou mal, é seu veludo

É o tafetá que Deus lhe deu

E é bendito o fruto do suor

Do trabalho que é só seu

Hoje eles hão de consagrar

O dia inteiro pra se amar tanto

Ele, o artesão

Faz dentro dela a sua oficina

E ela, a tecelã

Vai fiar nas malhas do seu ventre

O homem de amanhã

Vejamos com mais vagar o conteúdo da letra...

Quando se diz, "hoje a cidade está parada", faz-se menção ao feriado do primeiro de maio, dia do trabalhador (e não do trabalho, como se acostumou, mascaradamente, a dizer), quando, por efeito paradoxal, não se trabalha, dando-se destaque à oportunidade que a ocasião constitui para que se perceba o homem que está por detrás do trabalhador, pois no contexto do modelo de produção capitalista, o trabalhador foi transformado em mera força de trabalho, uma força mercantilizada e cujo valor está ditado pelas regras do mercado, em respeito à lei da oferta e da procura.

E, na ausência do trabalho, "ele apressa a caminhada", sendo que aí a pressa - que não é a da esteira da fábrica - tem o sentido de permitir que o valor humano se exerça o mais rapidamente e por mais tempo, afinal ele se apressa "prá acordar a namorada logo ali".

Para viver esse momento, ao contrário de quando está a caminho do trabalho, ele "vai sorrindo, vai aflito", carregando consigo o poder de "mostrar, cheio de si", "que hoje ele é senhor das suas mãos e das ferramentas", pois em todo o resto do tempo as suas mãos não lhe pertencem, os meios de produção não são seus, sendo que estes, não raramente, hostis à condição humana, mutilam corpos e mentes.

Mas, naquele instante simbólico, da ausência do trabalho, o trabalhador retoma a posse das suas mãos e se vê, ainda que potencialmente, titular das ferramentas que lhe permitiriam trabalhar para si, experimentando o gozo de colher o fruto do seu próprio trabalho.

Essa ideia de gozo, trazida na letra da música, também na forma da relação sexual, representa um ato de emancipação, do resgate da subjetividade perdida em meio ao processo constante da produção de coisas.

A figuração atrai a análise feita por Marx a respeito da alienação, ou estranhamento, quando o homem é deslocado do produto do seu trabalho, perdendo a referência de si mesmo, o que se aprofunda quando nas relações sociais a padronização de valores se dá a partir das coisas produzidas e, assim, quanto

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mais coisas o homem produz, mais o mundo das coisas tem valor, desvalorizando-se, inversamente, o mundo humano.

Mas, naquele dia não. Naquele dia, "a sirene não apita" e, sem a pressão do horário, resgatada da engrenagem fabril, "ela acorda mais bonita".

Desse modo, no reencontro com sua subjetividade, ela pode perceber a beleza que possui, sem os apelos do consumo. É assim que "Sua pele é sua chita, seu fustão". "E, bem ou mal, é seu veludo". "É o tafetá que Deus lhe deu".

Eis que, subitamente, surge a figura de Deus e esta aparição tem uma significação bastante relevante, já que os trabalhadores, sem uma racionalidade mundana, que os tome como sujeitos políticos capazes de construir o próprio destino, só encontram nos dogmas da religião as explicações para os seus dilemas. Daí que, deixando a racionalidade capitalista, sobra a noção de que "é bendito o fruto do suor, do trabalho que é só seu", ou, dito em outra ordem, daí porque alcançar a situação de que o fruto do suor valha à pena por ser extraído de um trabalho que lhe pertença, ao trabalhador, acaba sendo visto como efeito de uma obra divina e não como resultado de uma prática verdadeiramente emancipatória.

Por isso, na racionalidade restrita dos trabalhadores vislumbrados na letra da música, a suprema vingança que podem concretizar no dia do não trabalho é a de experimentarem o gozo de serem humanos. Então, "Hoje eles hão de consagrar o dia inteiro pra se amar, tanto".

Trata-se, portanto, de uma fuga momentânea, que não se reverte em autêntica desalienação, mas que vai, certamente, muito além do que "curtir" um feriado.

De todo modo, mesmo naquele ato de liberdade, que reflete, igualmente, um momento de prazer, eles não conseguem deixar de reproduzir a racionalidade capitalista em que estão inseridos. Então, "Ele, o artesão, faz dentro dela a sua oficina". "E ela, a tecelã, vai fiar nas malhas do seu ventre."

Lembre-se, a propósito, que o capitalismo é um modo de organização da sociedade que repercute, obviamente, nas relações sociais e invade o próprio sentimento humano.

Como diziam Marx e Engels1,

A maneira como os homens produzem seus meios de existência depende, antes de mais nada, da natureza dos meios de existência já encontrados e que eles precisam reproduzir. Não se deve considerar esse modo de produção sob esse único ponto de vista, ou seja, enquanto reprodução da existência física dos indivíduos. Ao contrário, ele representa, já, um modo determinado da atividade desses indivíduos, uma maneira determinada de manifestar sua vida, um modo de vida determinado. A maneira como os indivíduos manifestam sua vida reflete exatamente o que eles são. O que eles são coincide, pois, com sua produção, isto é, tanto com o que eles produzem quanto com a maneira como produzem. O que os indivíduos são depende, portanto, das condições materiais da sua produção.

Assim, mesmo nos momentos livres, de pretenso lazer, o homem, sobretudo, o trabalhador, é invadido pela lógica do processo produtivo, conforme adverte Giovanni Alves2,

Critérios de produtividade e desempenho saem do universo da empresa e se disseminam pela sociedade, tomando de assalto inclusive as relações afetivo-existenciais, medidas sobre os parâmetros linguístico-comunicativos dos valores de desempenho e produtividade.

Aquele raro momento de retorno à subjetividade humana, já que no dia seguinte terão que retornar ao trabalho assalariado, não é, no entanto, de maneira alguma, em vão.

Primeiro, porque no contexto expresso na letra da música tratou-se de um momento da consagração do amor entre um homem e uma mulher, como, por certo, os trabalhadores devem ser vistos e precisam se ver.

Segundo, porque daquele instante restará a fagulha de uma esperança de que tenha sido, em si, um ato quase revolucionário do qual haverá de resultar, como fruto daquele trabalho puramente humano, um novo homem, um homem que não mais se submeta àquele estado de alienação, "o homem de amanhã".

Eles não conseguem se desvencilhar da lógica que os oprime, mas alimentam a esperança de que o mundo no futuro será melhor porque direcionado por outros homens, com outra racionalidade.

É neste sentido, aliás, que se devem compreender os preceitos jurídicos teóricos que pautam a existência humana dentro de uma perspectiva evolutiva, tais como os princípios do não retrocesso, nos Direitos Humanos, e da melhoria progressiva da condição social e econômica dos trabalhadores, no Direito do Trabalho.

O que somos hoje é fruto do acúmulo de experiências históricas, mas não somos, por certo, o "produto" pronto e acabado da condição humana.

O estudo histórico e a análise crítica da realidade devem nos incentivar à defesa dos instrumentos jurídicos, criados até o presente, para o resgate da dignidade humana, mas, ao mesmo tempo, devem nos impor a visualização de sua superação para o futuro, buscando um sentido mais amplo ainda da própria existência.

O desfecho trazido na letra da música traduz, portanto, uma belíssima mensagem, pois que traduz, em si, o percurso

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histórico da humanidade...

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