Os 'prêmios' e os 'castigos' do cativeiro entre Portugal e Brasil: as relações entre 'escravos' e 'senhores' nas peças teatrais dos séculos XVIII e XIX

AutorDiogo da Silva Roiz
CargoDoutorando em História pela UFPR, bolsista do CNPq. Mestre em História pela UNESP. Professor da UEMS
Páginas149-175
Os “prêmios” e os “castigos” do cativeiro entre Portugal e Brasil: as relações
entre “escravos” e “senhores” nas peças teatrais dos séculos XVIII e XIX 149
OS “PRÊMIOS” E OS “CASTIGOS” DO CATIVEIRO
ENTRE PORTUGAL E BRASIL: AS RELAÇÕES ENTRE
“ESCRAVOS” E “SENHORES” NAS PEÇAS TEATRAIS
DOS SÉCULOS XVIII E XIX*
Diogo da Silva Roiz**
Resumo: Procura-se delinear neste texto como eram ‘representadas’ as relações
estabelecidas entre ‘escravos’ e ‘senhores’ em Portugal e na América Portuguesa (depois
Brasil), entre os séculos XVIII e XIX, a partir da interpretação das peças teatrais
produzidas no período. Trabalha-se com a hipótese de que a principal estratégia de
‘sobrevivência’ dos escravos no ‘mundo dos senhores’ era o estabelecimento de uma
relação ‘desigual’, fruto do ‘sistema escravista’ e do Antigo Regime, na qual o
oferecimento de ‘prêmios’ (muitas vezes entendidos como ‘dádivas’) e ‘castigos’ (físicos
ou simbólicos), dos senhores aos seus escravos, eram a base de seu funcionamento
operacional.
Palavras-chave: Escravismo Moderno; Escravidão Negra; América Portuguesa; Brasil
e Portugal.
Abstract: This text aims to outline the ways how the relationships established between
‘slaves’ and ‘masters’ were ‘represented’ in Portuguese America (which would later
become Brazil) and in Portugal, between the centuries eighteen and nineteen, by
interpreting the theatrical plays produced in that period. We recur to the hypothesis
that the main ‘survival’ strategy of the slaves in the ‘master’s world’ was the
establishment of an ‘impaired’ relationship, a fruit of ‘slavery system’ and of the Old
Regime, whose operational functioning basis was the offering of ‘prizes’ (frequently
understood as ‘gifts’) and ‘punishments’ (whether physical or symbolic), by the masters
to their slaves.
Key-words: Modern Slavery; Black Slavery; Portuguese America; Brazil and Portugal.
* A primeira versão desta pesquisa foi apresentada como trabalho de conclusão da disciplina: História,
Imaginário e Representação, ministrada pelo Prof. Dr. Magnus Pereira, no curso de doutorado em
História da UFPR, no primeiro semestre de 2009, a quem agradeço pelos comentários, críticas e
sugestões de leitura. Uma primeira versão deste trabalho foi apresentada na V Semana de História
- Seminário de Estudos Étnico-Raciais, História: espaços simbólicos, em 20 de novembro de 2009,
na Unicentro, unidade de Irati.
** Doutorando em História pela UFPR, bolsista do CNPq. Mestre em História pela UNESP. Professor
da UEMS. E-mail: diogosr@yahoo.com.br
150 Revista Esboços, Florianópolis, v. 17, n. 24, p. 149-175, dez. 2010
INTRODUÇÃO
Uma peça não ‘simbolizava’ a realidade: ela a criava
através das convenções da realidade.1
Era por meio deste tipo de afirmação, que em fins da década de 1970,
Richard Sennett2, em seu livro O declínio do homem público, procurava
demonstrar como o Teatro, ainda que fosse uma ‘representação’ da realidade,
também servia para ‘moldar’ os costumes da sociedade européia do século
XVIII. Na medida em que mostrava as novidades nas formas de se vestir, falar,
representar e se relacionar (em especial, entre ‘patrões’ e ‘empregados’), ‘o
Teatro era o mundo’. E quando as pessoas se baseavam em ‘manequins’ e
‘bonecas’ para mediarem suas escolhas de vestuário e sua moda o ‘Mundo
(europeu do século XVIII) era também um grande teatro’. Por isso, as peças
teatrais escritas naquele período podem, desde que cotejadas adequadamente,
servir como fontes de pesquisa para se estudar os modos de agir, pensar e
representar ‘típicos’ daquela sociedade, em função da maneira com a qual os
escritores do período a vislumbraram e a representaram em suas peças. Se o
‘típico’ era a representação dos ‘costumes das cortes’ (muitas vezes a
parodiando), assim como os padrões de comportamento da ‘sociedade burguesa’
em ascensão na Europa do século XVIII (em suas relações amorosas, familiares,
comerciais e trabalhistas), muito menos ‘típico’ era a encenação de peças nas
quais havia a preocupação de se apresentar a relação entre ‘senhores’ e
‘escravos’, uma vez que o sistema escravista moderno (de sociedades africanas)
fazia parte do comércio transatlântico (de ‘almas’), como um negócio lucrativo
entre Europa, África e Américas. Contudo, numa sociedade hierárquica onde
cada camada se via entre iguais (nobres, burgueses, brancos), as diferenças
deviriam ser camufladas, ou no mínimo abrandadas, seja no cotidiano, seja
mesmo nas representações teatrais3 – o que não quer dizer que não houvesse
exceções, como veremos em seguida.
Mesmo em Portugal, local em que o tráfico transatlântico de escravos
africanos para a América Portuguesa, além de ser um negócio lucrativo (embora
arriscado e perigoso), servia para abastecer suas colônias com mão-de-obra
escrava, o comportamento ‘típico’ encenado nos teatros, e representado pelos
escritores em suas peças, não diferia significativamente do resto da Europa.4
Até por que muitas daquelas peças eram adaptações de peças francesas ou
italianas, ou então eram escritas a partir delas – muitas das quais, em que seu
autor permanecia anônimo.5 Mesmo assim é possível vislumbrar algumas peças

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