Pulsão e cognição: categorias da motivação na aprendizagem

AutorChristiane Kleinübing Godoi
Páginas330-347

Page 330

Introdução

Partimos* neste trabalho da hipótese teórica de que, assim como grande parte dos construtos em psicologia, os motivos humanos são constituídos fundamentalmente por duas categorias: afeto e cognição. Aspectos afetivos e cognitivos entrelaçam-se e participam conjuntamente da formação dos motivos, de tal forma que objeto de desejo e de conhecimento encontram-se intimamente relacionados. A aproximação do sujeito em relação ao objeto é permitida simultaneamente pelo investimento de libido no objeto e em virtude da capacidade cognitiva de apreensão do objeto.

De um lado, a motivação foi pensada como mediação sempre emocional do conhecimento, colocando a dimensão afetivo-pulsional como intrínseca ao ato cognitivo. De outro, manteve-se a hipótese do emparelhamento entre as dimensões afetiva e cognitiva na formação dos motivos para a aprendizagem.

Piaget (1983, p. 45) declara que a psicologia humana tem dois aspectos: cognição (conhecimento) e motivação (pulsão). A partir dessa constatação, não faria sentido lógico subdividir o fenômeno motivacional em duas categorias - pulsão e cognição - uma vez que o que há é uma força pulsional propulsora (motivadora) do conhecimento. O conhecimento passaria a ser o objeto central e a motivação reduzida à energia propulsora. Ou seja, a categoria afetiva é constitutiva do fenômeno motivacional, do impulso (pulsão) em direção a um objeto de conhecimento.

Page 331

Portanto, tratar-se-ia de, mais do que procurar compartimentalizar o fenômeno motivacional em categorias ou dimensões, de compreender a relação de imbricamento entre afeto e cognição, ou seja, entre motivação e conhecimento.

O fato de Piaget reduzir o conteúdo motivacional aos aspectos afetivos e pulsionais é decorrente da sua focalização sobre o conhecimento como objeto de investigação. Ao situar o conhecimento e a aprendizagem como processos prioritários e centrais, Piaget exclui o conteúdo cognitivo da constituição da motivação.

A existência de processos cognitivos no interior da dinâmica motivacional é vislumbrada por Vollmeyer e Rheinberg (1999, p. 542). Os processos motivacionais são afetados por processos cognitivos, e os próprios processos cognitivos influenciam o estado de motivação durante a aprendizagem. Abre-se a possibilidade de que atuem na motivação para aprender, além dos fatores pulsionais, também fatores cognitivos.

Ainda que pulsão e cognição não possam ser compreendidos se considerados em isolamento (Branscombe, 1988, p. 5; Drillings and O´Neil, 1994, passim), a questão do estatuto da categoria cognitiva fica subdividida em duas possibilidades co-existentes: ao tomarmos a aprendizagem como objeto, a cognição passa a se comportar como uma das categorias motivacionais; ao tomarmos o próprio conhecimento como objeto, a cognição dilui-se como categoria e passa a ocupar o lugar do objeto da motivação, constituída pela categoria pulsional. Motivação para a aprendizagem e motivação para o conhecimento são, portanto, construtos elaborados de maneira distinta. O que vai nos interessar especificamente é o entrelaçamento dos aspectos cognitivos e afetivos no interior do construto motivacional.

Mais do que a motivação como um processo, trata-se de compreender a motivação como um produto (Pintrich and Schunk, 1996, p. 4). Furth (1995, p. 18) lembra que Piaget estudou o “como” das ações e do conhecimento, sua organização interna e coesões lógicas, enquanto Freud estava mais próximo do “porquê” de uma ação.

Estamos diferenciando as categorias afetivas e pulsionais em função de constituírem estados psíquicos distintos do ponto de vista do funcionamento do aparelho psíquico em seus sistemas consciente e inconsciente. Afetos, sentimentos e emoções são conscientes, diz Freud (1982a, p. 182), e somente a idéia (representante ideativo da pulsão) é inconsciente.

Page 332

Assim como há idéias conscientes e inconscientes, Freud (1982a, p. 182) se interroga se haverá também pulsões, emoções e sentimentos inconscientes. Em seguida, declara que a antítese entre consciente e inconsciente não se aplica às pulsões. Uma pulsão nunca pode tornar-se objeto da consciência, somente a idéia que a representa pode. Se uma pulsão não se prendeu a uma idéia ou não se manifestou como um estado afetivo, nada poderemos conhecer sobre ela. Freud (1982a) elabora o conceito de pulsão a partir dos representantes psíquicos (representante ideacional e afetivo) da pulsão. As idéias são investimentos (basicamente de traços de memória), enquanto que os afetos e as emoções correspondem a processos de descarga , cujas manifestações finais são percebidas como sentimentos. Dessa diferença decorre a impossibilidade de atribuição da inconsciência às emoções, sentimentos e afetos. Freud (1982a, p. 183) lembra que faz parte da natureza de uma emoção que estejamos cônscios dela. Uma parcela considerável de teorias e investigações mot iva ci ona i s ignor a o fa t o de que nã o ex ist em a fet os inconscientes e generaliza todos os aspectos não-cognitivos do comportamento motivacional à categoria afetiva.

Por serem os afetos e emoções sempre conscientes (Freud, 1982a, p. 182), a categoria pulsional da motivação – constituída por representantes conscientes e inconscientes - passa a envolver a categoria afetiva, uma vez que, na concepção freudiana, o afeto é que é parte da pulsão. Além do mais, pulsão e motivação encontramse como conceitos análogos em seu funcionamento e constituição. Através da teoria psicanalítica e do cognitivismo piagetiano, desenvolvemos a compreensão do fenômeno motivacional – fundamentalmente da motivação na aprendizagem – a partir das categorias pulsional e cognitiva.

A pulsão na gênese dos motivos

Embora Freud não tenha mencionado em sua obra o termo motivação, há, dentre as características da pulsão - um dos principais construtos freudianos - uma analogia quase direta com as característica da motivação. Apesar de que, como lembra Furth (1995, p. 18),Page 333a tradução inglesa de Trieb (pulsão), por instinto1, diluiu a capacidade explicativa das ações inerente ao conceito de pulsão. Enquanto instinto está ligado a um padrão inato de ação, mais próximo do “como”, não do porquê da ação, pulsão é porquê, é motivo.

O objetivo de procurar aproximar os conceitos de motivação e pulsão reside em, além de compreender a essência constitutiva da motivação, abrir a possibilidade de delimitação do pulsional como uma da s ca t egor ia s bá sica s da mot iva çã o. É pela indeterminação comportamental e correlativa elasticidade de concretização que os motivos se aproximam mais das pulsões tal como Freud as tematizou - do que dos instintos (Abreu, 1998, p. 52). Assim como os mot ivos, ta mbém a s pulsões sã o indeterminadas em relação ao objeto, podendo dinamicamente investir-se numa multiplicidade de objetos que não são fixos e se deslocam. O comportamento humano é, portanto, dinamizado por pulsões que, de uma forma mais abrangente, se caracterizam como motivos.

Acerca do conceito de pulsão, Freud (1982b, p. 124) se interroga sobre qual seria a relação da pulsão com o estímulo. Diz ele que nada existe que nos impeça de subordinar o conceito de pulsão ao de estímulo e de afirmar que uma pulsão é um estímulo aplicado ao psiquismo (em diferenciação aos estímulos puramente orgânicos). Ao declarar que o estímulo pulsional não surge do exterior, mas do próprio organismo, Freud (1982b, p. 124) nos permite aproximar pulsão e motivação através de outro de seus aspectos fundamentais em comum: o caráter intrínseco.

Uma pulsão jamais atua como uma força que imprime um impacto momentâneo, mas sempre como um impacto constante, declara Freud (1982b, p. 127). Podemos observar que continuidade do impacto é também uma característica motivacional, mais especificamente, a persistência em relação ao objeto (por oposição à estimulação externa, onde o impacto desaparece juntamente com o desaparecimento do estímulo).

Page 334

Passemos à análise detalhada e comparativa entre as quatro características da pulsão definidas por Freud (1982b, passim) e alguns dos aspectos inerentes ao construto motivacional. De acordo com a construção freudiana, a pulsão é constituída por uma fonte (interna ao organismo), uma pressão, uma meta e um objeto.

A fonte (Quelle) de uma pulsão constitui o processo somático que ocorre num órgão ou parte do corpo, e cujo estímulo é representado na vida psíquica por uma pulsão (Freud, 1982b, p. 128). O fato de Freud situar a origem das pulsões no corpo não representa um retorno ao biologicismo, mas significa que é este o elemento da pulsão que prioritariamente estabelece o vínculo entre o psíquico e o somático inerente ao conceito de pulsão2. Ainda que para algumas teorias motivacionais, como a teoria das necessidades de Maslow (1943), por exemplo, haja uma vinculação entre motivos e necessidades fisiológicas, não há interesse na comparação deste aspecto pulsional com a motivação. Inclusive porque, como assume Freud (1982b, p. 128), o conhecimento exato das fontes de uma pulsão não é invariavelmente necessário para fins de investigação psicológica.

Por pressão (Drang) de uma pulsão, Freud (1982b, p. 128) compreende o seu fator motor, a quantidade de força ou a medida da exigência de trabalho que ela representa. A característica de exercer pressão, além de ser comum a todas as pulsões, constitui sua própria essência. Essa parcela de atividade constitutiva da pulsão e representada pela pressão talvez seja o aspecto pulsional que mais se identifique com a essência também impulsiva e, igualmente correlacionada à atividade, da motivação. É a...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT