A presença de valores orientais na cultura brasileira: as novas religiões japonesas

AutorGilberto Baptista Castilho - Marília Gomes Ghizzi Godoy
Páginas67-81

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Introdução

As novas* religiões japonesas (NRJ) destacam-se no cenário cultural brasileiro pela formação de um espaço de diversidade e de representação que assume uma realidade própria frente a uma situação de globalização e de multiculturalismo. Uma paisagem cultural torna-se notável com a origem de um campo de significados sociais e políticos que se ordenam frente à universalidade religiosa, às interações dos sujeitos envolvidos nos contextos sagrados e em suas inquietações cotidianas.

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Situando-se em uma visão sociossignificativa da cultura na pós-modernidade, Canclini (2005) insiste em tratá-la não como uma essência, mas como diferenças mobilizadas em torno de histórias de confrontos, de situações locais e globais. Seguindo-se esse autor e os dados aqui discutidos, nota-se uma situação de interculturalidade como forma de compreensão das trocas, dos confrontos e das negociações que marcam o ambiente religioso e sua originalidade japonesa.

O cenário das religiões de origem japonesa, das NRJ, desvenda-se inicialmente por sua representação no censo demográfico de 2000. Registram-se cinco religiões de origem japonesa. No topo dos dados figura a Igreja Messiânica, seguida pela Seicho-No-Ie, Perfect Liberty, Tenrikyo e Mahicari.

Tabela 1: Demografia e filiação religiosa brasileira


Religião Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-oeste TOTAL
Igreja Messiânica
Mundial
3.434 16.278 75.902 6.594 7.102 109.310
Seicho-No-Ie 844 1.396 18.899 3.780 2.865 27.784
Perfect Liberty 36 295 4.611 169 354 5.465
Tenrikyo 161 270 2.415 778 162 3.786
Mahicari 74 231 1.512 531 706 3.054
TOTAL 4.549 18.470 103.339 11.852 11.189 149.399

Fonte : IBGE. Censo 2000 .

Um dado importante dessa presença indica sua concentração nas regiões Sudeste, Sul e Centro-oeste, vigoram as NRJ nos centros urbanos. Sabendo-se que a maioria dos 150 mil adeptos compreende membros de origem não-japonesa, define-se um público que se projeta pela criação de significados culturais comprometidos no corpus dessas religiões.

Torna-se presente um movimento de divulgação ultramarina dos japoneses, que tomou vulto como um processo de “multinacionalização”, conforme propõe Nakamaki (1986). 2 Salienta-se o sentido cultural comprometido na base das influências dessa mobilização denominado de orientalização .

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Trata-se de um fenômeno que tem maior incidência em meios urbanos e modernizados, e abrange as influências não só de religiões, mas também de filosofias orientais (ALBUQUERQUE, 2001).

Diante de processos sociais configurados por trocas e domínios que se tornam hierárquicos, o meio de interculturalidade impõe-se ao mobilizar uma religiosidade tanto de origem oriental como ocidental. Uma influência própria do cristianismo e da civilização ocidental está articulada na dinâmica dos valores em discussão.

Básico da explicação desse fenômeno é entender seu expansionismo diante da crise da racionalidade ocidental moderna e da situação de reencantamento do mundo. Criaram-se motivações capazes de atrair metáforas próprias orientais que se tornam convincentes em um momento de extrema materialização do progresso tecnológico e da ciência. Essa contextualização situa-se também diante do movimento de contracultura dos anos 60 (ibidem).

Por outro lado, considera-se o tema da mudança cultural, a qual, no meio acadêmico, foi avaliada pelo conceito de sincretismo cultural . Entendendo que os meios em confronto não podem ser visibilizados isoladamente e nem como expressões culturais materializadas, é preciso deixar claro que os universos simbólicos refletem um meio relacional de nossa sociedade, como indica Da Matta (1987). Trata-se de uma situação em que valores adquirem unidade expressiva dessa capacidade brasileira de relacionar coisas que parecem opostas. Diante da vertente oriental ocorrem projeções e vivências dos devotos. Ficam estes inseridos em universos que permitem inserções e desenvolvimentos que formam um complexo de valores e de relacionamentos. 3

Com o objetivo de discutir a expansão, presença e significados das NRJ no Brasil, este artigo discute inicialmente os movimentos religiosos surgidos no Japão a partir do início do século XIX, designados como “Novas Religiões” ( shin-shûkyô ). Torna-se importante caracterizar o meio de origem das NRJ no Japão. Em seguida os autores procuram entender como são elas introduzidas em um meio cultural brasileiro, derivando de dinâmicas sociais ligadas à imigração japonesa. Perguntou-se sobre os significados dos contextos religiosos e sua representação de origem oriental, os quais freqüentemente são mencionados pelos adeptos como “japoneses”.

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Considerando-se particularmente a Igreja Messiânica Mundial e a Seicho-No-Ie, retratam-se representações e concepções rituais, as quais são capazes de atrair e convencer devotos em seus enfrentamentos cotidianos.

Contexto e origem das novas religiões japonesas no Japão

O termo shin-shûkyô é usado para expressar as novas religiões originadas por meio de movimentos religiosos surgidos no Japão, a partir de meados do século XIX. Eles estão comprometidos com as transformações históricas que ocorreram no Japão, as quais indicam a introdução de valores ocidentais e de modernização. No ambiente social e político retratamse as condições de passagem para a formação das NRJ.

De acordo com Rochedieu (1982, p. 191-192), podem-se estabelecer três períodos históricos em relação ao surgimento e à expansão das NRJ. O primeiro vai de meados do século XIX, final da era Tokugawa , anos dos líderes militares do Japão feudal, os xóguns, além de toda a era Meiji (1868- 1912), e chega a 1920, quando o Japão já era uma nação industrial e moderna. Na era Meiji as novas religiões japonesas eram reconhecidas oficialmente como Xintô das Seitas , deixando assim uma época, a Tokugawa , quando foi proibida a formação de novas seitas. Desse período é interessante destacar o surgimento de duas religiões: a mais antiga, a Tenrikyô, e a Oomoto. O segundo período abrange o fim da Primeira Guerra Mundial em 1918, havendo, em 1931, pela expansão militarista, a invasão pelos japoneses da Manchúria. Esse período é caracterizado como de opressão às novas seitas, tendo um cenário caracterizado por grande depressão econômica e com movimentos militares totalitários. Uma das seitas, a Oomoto , foi quase suprimida pelo governo nesse período (PEREIRA, 1992, p. 161). Por fim, no terceiro período, que se iniciou após a Segunda Guerra Mundial, em 1945, um novo alento inseriu as novas religiões na via de uma expansão solidificada pela liberdade religiosa estabelecida pela Constituição Japonesa de 1946.

As sementes das NRJ inseridas na abertura do Japão ao mundo trazem em si um caráter universal que se expressa em seu expansionismo voltado para outros países. Por outro lado, no Japão, as religiões tradicionais, budismo e xintoísmo, têm continuidade e destaque hegemônico, enquanto as NRJ ocupam uma posição discreta no cenário religioso desse país. Dentro de um complexo contexto de valores originais de outras culturas juntamente com intenso proselitismo das NRJ, não é de estranhar que tal grupo religioso se dissemine mais em outros países do que em sua terra de origem, assim como mobilize muito mais descendentes não japoneses, que se sentem atraídos pela faceta oriental dessas religiões.

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Impacto e enraizamento das NRJ no Brasil

O alojamento das religiões japonesas no Brasil, de acordo com Mori (1988, p. 559-601), é compreensível em quatro períodos. O primeiro , no início da imigração, de 1908 à década de 20, é designado “ausência de religião” e exprime a precária situação dos imigrantes japoneses naquela época. O segundo período, que vai desde a década de 20 a meados da de 30, quando se intensificou a imigração, foi classificado como “atividades religiosas na colônia”. Nesse período, apareceram as primeiras NRJ, como Honmon-Butsuryushu (primeira instituição budista japonesa), introduzida em 1936, pelo imigrante Genju Ibaragui (GONÇALVES, 2003, p. 17), Oomoto, Tenrikyo e a Seicho-No-Ie. O terceiro período, designado “êxodo rural – migração urbana”, abrange a metade da década de 30 ao início da década de 50. Nele se processa a migração urbana quando, por conta de uma bem-sucedida conjuntura econômica da agricultura, muitos japoneses passaram de arrendatários a agricultores independentes. Alguns se mudaram para as cidades, de preferência para capitais, como São Paulo, sendo a principal razão desse êxodo a educação dos filhos. Nesse contexto, foram os japoneses adaptando-se às cidades em uma nova estrutura que se formava na composição social brasileira: a classe média.

A cidade de São Paulo é a que teve maior foco de migração, pelo fato de as colônias japonesas se concentrarem no interior do estado, devido principalmente à lavoura do café, onde a maioria desses imigrantes trabalhava. Trata-se de um foco de desenvolvimento que se exprime por um progresso econômico e social. Esse período coincide também com a Segunda Guerra Mundial, quando ocorreu cerceamento da colônia japonesa, que foi impedida de desenvolver plenamente sua atividade religiosa. Desse modo, esse terceiro período foi também conhecido como “hibernação das religiões”.

A partir da década de 1950 tem-se o quarto e último período, conhecido como “ressurreição das religiões japonesas”, quando ocorreu um primeiro impulso da difusão das religiões japonesas e sua expansão nos centros urbanos. Diante do contexto socioeconômico pós-guerra, teve-se em seguida uma projeção das organizações dessas religiões em seu trabalho de difusão e de disseminação mais intensa de suas doutrinas. O processo de expansão – que...

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