Qual é o Cheiro do Direito? Primeiras Conjecturas para uma Semiótica da 'Matéria' Jurídica

AutorMaria Francisca Carneiro - Eliseu Raphael Venturi - Laércio A. Becker
CargoPós-doutora em Filosofia (Universidade de Lisboa) - Advogado - Mestre em Direito Processual Civil (UFPR)
Páginas6-13

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"Em virtude de seu status marginal e reprimido na cultura ocidental contemporânea, o cheiro dificilmente é considerado um veículo político ou um meio para a expressão defidelidades e lutas de classes. Não obstante, a olfação participa de fato na construção de relações de poder em nossa sociedade, nos níveis popular e institucional."1

1. Introdução e contexto do problema

Em tempos de uma semiótica jurídica emergente, mas ainda não culturalmente arraigada2 na compreensão e explicação dos fenômenos, é perceptível que a iconografia jurídica, de uma maneira geral, volta-se mais às artes visuais (pintura e escultura, principalmente, na chamada visual law) do que a outros possíveis signos que integram a percepção empírica dos fenômenos envoltos pelo direito, e que podem ser fonte de informação e de interpretação para o ser cog-noscente, imerso nesta profusão concorrente de variados estímulos e conceitos que formam a imagem ideal da juridicidade.

Poder-se-ia ponderar referida ascendência com base na noção de que são estes, visão e audição, os sentidos mais explorados na produção cultural, muito embora, na realidade dos acontecimentos, nem sempre sejam os mais consciente-mente manejados, nem tampouco os mais ativados pelas trocas humanas. Ou seja, o fato de atentarmos mais à visão e à audição em nossas produções comuns não significa, necessariamente, que o mais importante da realidade sejam estas manifestações, o que por si elide a aspiração da plena míme-se linguística de qualquer coisa, produzindo-se feixes de sentidos e representações em que domina sempre uma ausência substantiva.

Uma causa provável do desequilíbrio, ou das diferentes desti-nações culturais do uso dos sentidos, pode ser buscada nos estudos de biologia, na morfologia comparada. Uma explicação corrente é a de que a evolução de partes específicas do cérebro correspondem aos estilos de vida das espécies, produzindo diferentes ascendências funcionais. O cérebro humano possui uma dominância do córtex visual, com visão binocular acurada na percepção da distância, tendo reduzidas estruturas olfativas enquanto traço evolutivo resultante da vida ao ar livre e uso maior de referências visuais e táteis para a sobrevivência3. Contudo, permanece a relevância do olfato na identificação das mais variadas condições de sobrevivência.

Nesse contexto, ainda, pode-se verificar que os meios de comunicação contemporâneos aperfeiçoam a representação tridimensional

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da imagem e do som, mas pouco avançam na apresentação ou reprodução de aromas com fins intelec-tivos. Concretamente, o apelo ordinário do olfato se aprimorou na indústria alimentícia, em aromas artificiais idênticos ao natural, da baunilha ao bacon; e na perfumaria, da mais barata à milionária, tantas vezes uma emulando a outra na incessante busca de sofisticação. A gastronomia, também, refina-se no apego às sensações específicas, transcendendo a alimentação pela sobrevivência, vendo nela uma arte e um prazer do paladar. Todos esses exemplos apontam para uma maior fluidez do aroma, destinado ao consumo e se encerrando em seu caráter de composto volátil.

As artes seguem o mesmo caminho, de modo que os cheiros (enquanto manifestação, e não representação imagética) integram e estrelam sobretudo as experiências de vanguarda na arte contemporânea, geralmente em arte ambiental4, ficando a produção aromática difundida, de ponta e exaustiva canalizada nas grifes e designers de perfumes, unindo alta sofisticação com a imediata venda casada de sensualidade, modernidade, bem-estar e toda sorte de imagens que as pessoas possam agregar a si por meio da compra e do estilo5. O perfume é também um meio de valores sociais que o indivíduo pode exalar.

Filosoficamente, a pergunta latente no assunto é: o cheiro permite produzir conhecimento? Conforme se verifica pelo cenário acima desenhado, ao aroma ficou relegado mais o papel dentro do consumo do que, necessariamente, de conhecimento; ou seja, sua função precípua é ser fruído, e não poderia ser diferente ante sua natureza. O papel das especiarias e sua fascinação no desenvolvimento comercial corrobora este entendimento.

Contudo, como todo fenômeno, do aroma pode-se depreender conhecimento, valoração, enfim, produções culturais que, ao se perpassarem na discussão, se transmutam em novas possibilidades. A dualidade está presente no sentido.

Um interessante exemplo nesse sentido de discussão é a análise crítica de perfumes. Chandler Burr se destaca nesse ramo e, para ilustrar, brevemente pode-se destacar alguns pontos de seu artigo "Gucci Envy é obra de arte olfati-va moderna e enigmática"6. Nesta crítica, o autor verifica que o perfume seria digno de exposição no Museu de Arte Moderna, tamanha sua transcendência e grandiosidade aromática: uma obra de arte olfativa. Para Burr, a fragrância única possibilita estados mentais surreais, criando-se uma beleza pura, límpida e requintada, qualificada pelas qualidades técnicas perfeitas de fixação, intensidade e estrutura. A fragrância seria "maravilhosamente estranha quanto estranhamente maravilhosa", devendo-se para apreciá-la abandonar as referências aos aromas naturais. Ainda, destaca o autor acerca da atividade de crítica aromática: "É interessante como é mais difícil descrever um bom perfume do que um perfume ruim, mas não é de surpreender: isto acontece, em boa medida, porque quase sempre os bons incorporam a originalidade, e esta é, por definição, uma qualidade que desafia a descrição."

Veja-se, pois, como os aromas e as suas clássicas notas de saída, de corpo e de fundo, que conferem estrutura, estão intimamente vetorizados ao campo da memória, das sensações, intuição, e, em certo sentido, transcendem as habilidades verbais e linguísticas. Aliás, as peculiaridades do olfato desafiam a capacidade de remissões e de articulação explicativa. Ainda no exemplo do autor em comento, perceba-se a criativa estratégia utilizada para comunicar sua compreensão do aroma, valendo-se de analogia com outros sentidos e metáforas, além das referências aos padrões das escolas de criação de perfumes: "Envy é uma inovação verde, fresca, moderna e abstrata, tão enigmático e ao mesmo tempo irresistível quanto os quadrados coloridos e flutuantes de um quadro de Mark Rothko e tão livre quanto informação consciente. Pode ou não ser atemporal. Veremos. Mas é tão singular e indescritível quanto um eclipse."

Esta crítica revela exemplarmente os desafios de tratar do assunto, o que requer trânsitos variados, que, no escopo deste artigo, são feitos em um caminho inverso ao do crítico, contudo, segundo estratégia de abordagem similar: enquanto o analista de perfume deve criar imagens para expressar o aroma que sente, neste artigo se pretende buscar alguns caracteres do objeto para se inferir seu possível aroma, a partir de algumas abstrações.

O olfato, assim, é desafiador ao conhecimento, e estimula a linguagem, obrigando-a a abandonar suas estratégias ordinárias, forçando a enunciação para produzir um sistema significativo da mensagem. Sua interação com

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a vida social se dá nas múltiplas dimensões, tais como os focos de estudo do Sense of Smell Institute, em Nova Iorque7, ao definir campos da aromacologia (estudo dos efeitos psicofisiológicos dos aromas): comportamento do consumidor; memória; humor e emoções; aprendizado e desenvolvimento; interação social; aplicações clínicas; genética e neurobiologia; percepção do odor e cérebro olfativo; saúde e percepção molecular e de misturas; feromônios. Por isso a utilidade do assunto em se tratando de estética jurídica.

2. Qual o cheiro do direito?

No amplo contexto do mundo olfativo, não se pode deixar de considerar que o direito, por óbvio, não escapa do orbe dos sentidos, e nesse campo de exploração um pouco se tem falado também do direito por meio da música; e muito se tem escrito, quase tudo, sobre direito e literatura. Porém, sentidos como o olfato e a audição, ao que soa e rescende, nada têm sido explorados, não obstante seu potencial para integrar entendimentos sobre a interação entre as pessoas no mundo jurídico e no social de interesse jurídico. Ou seja: como visto, o aroma interessa e desafia a produção de conhecimento, inclusive o jurídico.

Em suma, a tradicional "qualificação" - preconceituosa e obtusa - que se dá comumente no direito a respeito de algumas disciplinas essenciais (que integram mera "perfumaria", ou seja, o que está fora do costumeiro pragmatismo), pode ser manejada, sem medo do jogo de palavras e sentidos: no direito, os aromas estão condenados a simples perfumaria.

A busca pelo cheiro do direito, "para além e por detrás ou por baixo ou por cima"8 de sua realidade fenomênica9, e desta também, em uma expressão quase sinestésica de seu conceito, pode representar uma intuição transmutada em aroma. Qual seria?

Quod non est in actis non est in mundo - o que não está nos autos não está no mundo jurídico. Há algum cheiro in actis? O "fumus boni iuris" est in actis e, sem dúvida, est in mundo. Num processo criminal, o cheiro do cadáver non est in actis e, consequentemente, non est in mundo. Mas o cheiro do papel refoge à escrita (sem perdão do trocadilho): ele está nos autos, mas não está no mundo jurídico. Os planos de cheiros são muitos e todos inter-relacionados em momentos distintos.

Isso obriga a distinguir entre dois tipos de odores possíveis para o direito: um é abstrato e teórico, chamado de fumus boni iuris. Portanto, a doutrina jurídica e a teoria do direito teriam, supostamente e por alegoria, cheiro de fumaça: agradável ou não, expressam um indício...

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