Direitos humanos, cidadania e educação: do pós-segunda guerra à nova concepção introduzida pela constituição de 1988

AutorProf. Valério de Oliveira Mazzuoli
CargoAdvogado em São Paulo. Professor Universitário. Autor de diversos livros e trabalhos sobre direito internacional e direitos humanos.
Páginas1-30

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1. Introdução

O presente ensaio tem por objetivo tecer algumas reflexões acerca do relacionamento do Direito Internacional dos Direitos Humanos com a concepção contemporânea de cidadania. 1Isto é, objetiva-se fazer um conjugado entre o processo de internacionalização dos direitos humanos e a nova concepção de cidadania introduzida pela Constituição Federal de 1988.

Para tanto, num primeiro momento, buscou-se delinear, ainda que brevemente, o processo de internacionalização dos direitos humanos, cujo marco inicial foi a Declaração Universal de 1948, bem como a forma através da qual a Constituição brasileira de 1988 se relaciona com os instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos ratificados pelo Estado brasileiro.

Num momento posterior, procurou-se redefinir o conceito de cidadania, a fim de dar-lhe operatividade e eficácia, verificando-se de que maneira a nova Carta brasileira, rompendo com a ordem jurídica anterior, passou a comungar os direitos humanos internacionalmente consagrados com esta nova concepção - ou concepção contemporânea - de cidadania.

Por fim, buscou-se esclarecer qual o papel da educação em direitos humanos, e quais as maneiras de se implementar, de forma sólida, uma cultura de direitos humanos, em nosso meio e em nossa sociedade. Page 2

2. A consagração dos direitos do homem e do cidadão

A cidadania é um processo em constante construção, que teve origem, historicamente, com o surgimento dos direitos civis, no decorrer do século XVIII - chamado Século das Luzes -, sob a forma de direitos de liberdade, mais precisamente, a liberdade de ir e vir, de pensamento, de religião, de reunião, pessoal e econômica, rompendo-se com o feudalismo medieval na busca da participação na sociedade.2 A concepção moderna de cidadania surge, então, quando ocorre a ruptura com o Ancien Régime absolutista, em virtude de ser ela incompatível com os privilégios mantidos pelas classes dominantes, passando o ser humano a deter o status de "cidadão", tendo assegurados, por um rol mínimo de normas jurídicas, a liberdade e a igualdade, contra qualquer atuação arbitrária do então Estado-coator.

Com o aparecimento do Estado Social, nas primeiras décadas do século XX, as fronteiras da cidadania ampliaram-se ainda mais, aumentando as dificuldades de formulação de um conceito mínimo capaz de entender coerentemente esse novo fenômeno em construção.

O conceito de cidadania, entretanto, tem sido freqüentemente apresentado de uma forma vaga e imprecisa. Uns identificam-na com a perda ou aquisição da nacionalidade; outros, com os direitos políticos de votar e ser votado. No Direito Constitucional, aparece o conceito, comumente, relacionado à nacionalidade e aos direitos políticos.3 Já na Teoria Geral do Estado, aparece ligado ao elemento povo como integrante constitutivo do conceito de Estado, contrapondo o conceito de nacional em face ao de estrangeiro. Dessa forma, fácil perceber que no discurso jurídico dominante, a cidadania não apresenta um estatuto próprio pois na medida em que se relaciona a estes três elementos (nacionalidade, direitos políticos e povo), apresenta-se como algo ainda indefinido.4 E a situação ainda mais se agrava quando se sabe que o termo "cidadão" é também freqüentemente invocado, de forma descompromissada, no discurso e nos meios políticos de nosso tempo.

Isto nos coloca, em tempos de globalização, diante da necessidade de redefinir o conceito de cidadania, a fim de dar-lhe precisão e operatividade em Page 3 favor da camada mais carente da sociedade, retirando-o da abstração e dandolhe um conteúdo valorativo ético, o que se mostra possível amoldando-o às novas exigências da democracia e dos direitos da pessoa humana.

É a partir do século XVIII, com o movimento iluminista, que começa a ser definido os primeiros contornos do conceito de cidadania. Como resultado da Revolução Francesa, surge, então, a famosa Déclaration des Droits de l’Homme et du Citoyen, de 1789, que, sob a influência do discurso jurídico burguês, lançou as primeiras bases da idéia de "cidadão". A revolução burguesa pretendeu deixar claro - e o fez no Art. 16 da Declaração - que não há Constituição onde não se têm assegurada a garantia dos direitos individuais nem é determinada a separação dos poderes. Buscou-se, então, colocar em primeiro plano os direitos dos indivíduos, transformando os súditos em cidadãos, em repúdio à monarquia absolutista, sob o manto de uma "republica constitucional".5

O que se denota da Declaração, entretanto, é a cisão que fez dos direitos do "Homem" e do "Cidadão", na qual a expressão Direitos do Homem significa o conjunto dos direitos individuais, levando-se em conta a sua visão extremamente individualista, ao passo que o termo Direitos do Cidadão expressa o conjunto dos direitos políticos de votar e ser votado, como institutos essenciais à democracia representativa.6

A idéia de cidadão como participante da vida política do Estado, fica facilmente perceptível pela leitura do Article VI da Déclaration, que dispõe:

La loi est l’expression de la volonté générale; tous les citoyens ont droit de concourir personnelement, ou par leurs représentants à sa formation; elle doit être la même pour tous, soit qu’elle protège soit qu’elle punisse. Tous les citoyens étant égaux à ses yeux, sont également admissibles à toutes dignités, places et emplois publics, selon leur capacité, et sans autres distinctions que celles de leurs vertus et de leurs talents.

Mais à frente, a Declaração, no seu Article XIV, também privilegia os citoyens, nestes termos:

"Les citoyens ont le droit de constater par eux-mêmes ou par leurs représentants la nécessité de la contribution publique, de la consentir librement, d’en suivre l’emploi et d’en déterminer la quantité, l’assiette, le recouvrement et da durée."

Na lição lapidar do Prof. JOSÉ AFONSO DA SILVA: "A idéia de representação, que está na base no conceito de democracia representativa, é que produz a primeira manifestação da cidadania que qualifica os participantes da vida do Estado - o cidadão, indivíduo dotado do direito de votar e ser votado Page 4 -, oposta à idéia de vassalagem tanto quanto a de soberania aparece em oposição à de suserania. Mas, ainda assim, nos primeiros tempos do Estado Liberal, o discurso jurídico reduzia a cidadania ao conjunto daqueles que adquiriam os direitos políticos. Então, o cidadão era somente aquela pessoa que integrasse o corpo eleitoral. Era uma cidadania ‘censitária’, porque era atributo apenas de quem possuísse certos bens ou rendas".7

A idéia de cidadão, que, na Antigüidade Clássica, conotava o habitante da cidade - o citadino - firma-se, então, como querendo significar aquele indivíduo a quem se atribuem os direitos políticos, é dizer, o direito de participar ativamente na vida política do Estado onde vive. Na Carta de 1824, por exemplo, falava-se, nos arts. 6.º e 7.º, em cidadãos brasileiros, como querendo significar o nacional, ao passo que nos arts. 90 e 91 o termo cidadão designava aquele que podia votar e ser votado. Estes últimos eram chamados de cidadãos ativos, posto que gozavam de direitos políticos. Aqueles, por sua vez, pertenciam à classe dos cidadãos inativos, destituídos do direito de eleger e ser eleitos. Faziam parte, nas palavras de JOSÉ AFONSO DA SILVA, de uma "cidadania amorfa", posto que abstratos e alheios a toda uma realidade sociológica, sem referência política.8

Assim, os termos "homem" e "cidadão" recebiam significados diversos. É dizer, o cidadão teria um plus em relação ao homem, consistente na titularidade de direitos na ordem política, na participação da vida da sociedade e na detenção de riqueza, formando, assim, uma casta especial e mais favorecida, distinta do resto da grande e carente massa popular, por sua vez considerados como simples indivíduos.9 Page 5

Esta idéia, entretanto, vai sendo gradativamente modificada, quando do início do processo de internacionalização dos direitos humanos, nascido com a proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948. Passase a considerar como cidadãos, a partir daí, não só aqueles detentores dos direitos civis e políticos, mas sim todos os que habitam o âmbito da soberania de um Estado e deste Estado recebem uma carga de direitos (civis e políticos; sociais, econômicos e culturais) e deveres, dos mais variados.10

Hoje, a preocupação maior é entender a cidadania não como mera abstração ou hipótese jurídica, mas como meio concreto de realização da soberania popular, entendida esta como o poder determinante do funcionamento estatal. O seu exercício, por sua vez, passa a não mais se limitar à mera atividade eleitoral, ou ao voto, para compreender uma gama muito mais abrangente de direitos - por sua vez oponíveis à ação dos poderes públicos -, e também deveres para com toda a sociedade.

A Constituição brasileira de 1988, consagra, desde o seu Título I (intitulado Dos Princípios Fundamentais), esta nova concepção de cidadania, iniciada com o processo de internacionalização dos direitos humanos. Deste modo, ao contrario do que ocorria no constitucionalismo do Império, hoje, em face da Constituição vigente, aquela doutrina da cidadania ativa e passiva, não tem mais nenhuma procedência.

Para bem se compreender o significado dessa nova concepção de cidadania introduzida pela Carta brasileira de 1988, entretanto, é importante tecermos alguns comentários sobre a...

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