O Código Civil e a Lei de introdução ao Código Civil

AutorInacio de Carvalho Neto
CargoDoutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo - USP
Páginas5-12

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1. Intróito

A Lei de Introdução ao Código Civil é, na verdade, uma lei de sobre direito, uma lei de introdução ao direito como um todo, com normas gerais sobre aplicação do direito e sobre direito internacional privado.

A primeira Lei de Introdução ao Código Civil que tivemos foi aprovada em 1916, juntamente com o Código Civil de 1916. Daí o nome que ela tomou. Posteriormente, foi aquela substituída pelo Decreto-Lei nº 4.657/42, que está ainda em vigor. Por ocasião da aprovação do novo Código Civil, nem sequer se cogitou da substituição da Lei de Introdução, justamente por estar pacificado o entendimento de que esta lei não tem ligação estrita com o direito civil, mas com todos os ramos do direito.

Não é de hoje que se almeja uma nova Lei de Introdução ao Código Civil. Vários projetos foram elaborados e posteriormente arquivados e atualmente o Projeto nº 243/02, de autoria do senador Moreira Mendes, encontra-se em tramitação no Senado. Com 45 artigos, o projeto trata de assuntos como domicílio, sucessões, separação e divórcio, regime de bens, no que se refere aos problemas de aplicabilidade da lei e situações em que as relações se estabelecem entre brasileiros e estrangeiros1.

2. Vigência da Lei

Principia a lei por tratar da vacatio legis, ou seja, do período em que a lei, publicada, ainda não está em vigor, para que dela seja dado conhecimento público. Salvo disposição em contrário, a lei começa a vigorar em todo país quarenta e cinco dias depois de publicada.

Trata-se de importante disposição que, na prática, é muitas vezes relegada. A maioria das leis tem sido veiculada com disposições contrárias a esta regra, determinando que entre em vigor tão logo publicada, o que acaba por prejudicar aqueles a quem a lei se destina.

O período de vacatio legis previsto no art. 1º (45 dias) pode ser aumentado ou diminuído pela lei, conforme a sua importância, a sua extensão, a necessidade de ampla divulgação etc. Para exemplificar, o novo Código Civil (Lei nº 10.406/02), teve sua vacatio legis fixada em um ano (art. 2.044).

Nos Estados estrangeiros, a obrigatoriedade da lei brasileira, quando admitida, se inicia três meses depois de oficialmente publicada. Aqui a lei não ressalva a possibilidade de exceção pela própria lei, mas esta possibilidade existe; nada impede que a própria lei disponha prazo maior ou menor para entrar em vigor fora do País. Mas a simples disposição "esta lei entra em vigor na data da sua publicação", comum na maioria das leis, não é suficiente para excepcionar esta regra. Vale dizer: a exceção a esta regra deve ser expressa, referindo-se especialmente à vigência no exterior.

Diz o § 2º do art. 1º que a vigência das leis que os governos estaduais elaborem por autorização do Governo Federal depende da aprovação deste e começa no prazo que a legislação estadual fixar. Atualmente, não há mais propriamente leis estaduais elaboradas por autorização do Governo Federal, mas leis de competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios (art. 23 da Constituição Federal), e leis de competência concorrente entre União, Estados e Distrito Federal (art. 24 da Constituição Federal).

Se, antes de entrar a lei em vigor, ocorrer nova publicação de seu texto, destinada a correção, o prazo de vacatio legis começará a correr da nova publicação. As correções a texto de lei já em vigor são consideradas nova lei.

Como regra, a lei vigorará até que outra a modifique ou revogue. Excepcionalmente, pode-se ter lei de vigência temporária, ou seja, pode ser que a própria lei estipule o termo de sua vigência. Neste caso, expirado o prazo, não será necessária nova lei para revogá-la, cessando sua vigência ipso jure.

A revogação da lei pode ser expressa ou tácita. Será expressa se a lei posterior declarar claramente a revogação; será tácita, quando a nova lei for incompatível com a anterior, ou quando a nova lei regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior. Exemplo deste último caso temos na revogação das Leis nºs8.971/94 e 9.278/96 pelo novo Código Civil. A Page 6 matéria da união estável foi inteiramente regulada pelo novo Código. Embora as citadas leis não tenham sido por este revogadas expressamente, foram-no tacitamente, por ter a matéria de que tratavam aquela lei sido inteiramente regulada pelo novo Código.

Como regra, dissemos, a lei posterior revoga a anterior. Entretanto, se a lei anterior for lei especial, a lei geral posterior não revoga tacitamente a lei anterior especial. Exemplo disso temos no Decreto-Lei nº 3.200/ 41 (chamado de Lei de Proteção à Família), que regula exceção ao impedimento para casamento entre colaterais em 3º grau (tio e sobrinho), sendo considerado lei especial em relação ao novo Código, que, como regra geral, proíbe o casamento nesse nível de parentesco.

Em princípio, não há repristinação de leis. Ou seja, a lei revogada não se restaura por ter a lei revogadora perdido a sua vigência. Se, v.g., a lei A foi revogada pela lei B, sendo esta posteriormente revogada pela lei C, a lei A não volta a vigorar. É possível, contudo, a repristinação expressa, ou seja, a lei C, ao revogar a lei B, pode declarar expressamente que a lei A volta a viger.

Como regra, a lei em vigor tem efeito imediato e geral. Mas deve ela respeitar o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada. Trata-se de comando constitucional que a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada (art. 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal). Ato jurídico perfeito é o ato já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou. Assim, v.g., um contrato celebrado e cumprido na vigência da lei anterior não pode ser afetado por nova lei. Por direito adquirido, entende-se o que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, ou aquele cujo exercício tenha termo pré-fixo ou condição preestabelecida inalterável a arbítrio de outrem. Assim, se, v.g., a pessoa já completou o tempo necessário para se aposentar de acordo com a lei então em vigor, a alteração desta lei, aumentando o tempo necessário, não pode atingi-la. Coisa julgada (ou caso julgado) é a qualidade da sentença que a torna imutável, por já não caber recurso.

3. Aplicação e desconhecimento da lei

Ao aplicar a lei, o juiz deve atender aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum (art. 5º da Lei de Introdução).

Estabelece o art. 3º da Lei de Introdução o princípio de que ninguém pode alegar o desconhecimento da lei. A vida em sociedade não seria possível se as pessoas pudessem alegar o desconhecimento da lei para se escusar de cumpri-la. Daí o surgimento da ficção jurídica de que todos devem conhecer a lei.

Na prática, contudo, tal princípio está completamente divorciado da realidade. Tendo em vista a proliferação legislativa, com edição diária de diversos textos legais (sem contar medidas provisórias, decretos etc.), fica cada vez mais difícil que o cidadão comum (e muitas vezes até mesmo o profissional do direito) conheça todas as leis.

Tal princípio é mitigado em seu rigor por normas abrandadoras, como a que estabelece, no âmbito penal, o erro de proibição, ou, no âmbito civil, o erro de direito.

Embora tais normas não autorizem propriamente a alegação de desconhecimento da lei, dela muito se aproximam.

A lei brasileira não admite o non liquet. O juiz não pode se eximir de decidir alegando omissão da lei. Se a lei for omissa a respeito da questão em causa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.

Maria Helena DINIZ entende que, como a lei estabeleceu os meios nessa ordem, é nessa ordem que se deve buscar a solução para a lacuna2. Esse argumento é frágil. O Código Tributário Nacional (art. 108), ao contrário da Lei de Introdução ao Código Civil, é expresso em determinar o suprimento na ordem que menciona. Não tendo esta procedido da mesma forma, é questionável a afirmação da autora. Este entendimento é reforçado, entretanto, pela alteração feita no art. 126 do Código de Processo Civil, que dispunha originalmente: "Art. 126. O juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei. No julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas legais ou costumeiras; nos casos omissos, recorrerá à analogia e aos princípios gerais de direito". Com a alteração da Lei nº 5.925/73, passou a dispor: "Art. 126. O juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei. No julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito". Daí se infere que os costumes perderam a primazia anterior, donde ser razoável concluir pela existência da hierarquia pretendida pela autora.

Autores há que ressaltam a primazia que a analogia tem sobre os demais meios de integração das lacunas. Tal primazia, como bem nota Vicente RÁO3 , decorre da primazia da lei em nosso sistema jurídico. Entretanto, essa primazia também é de ser questionada. Se se considera o costume como norma, deve ele preferir à analogia. Com efeito, se se tem uma norma para o caso (ainda que não escrita), deve esta ser preferida à analogia, em que se vai extrair a regra de uma norma que não foi feita para a disciplina do caso.

Maria Helena DINIZ elenca ainda outro meio de integração, não referido no art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil: o argumento a contrario4. Karl LARENZ coloca ao lado dos argumentos da analogia a pari e da a contrario um procedimento especial, designado por ele "redução teleológica", que serve também, no seu ponto de vista, para integrar lacunas. Entende que tal mecanismo é uma limitação feita a uma norma e exigida pelo seu sentido, apresentando-se como um paralelo, não só da...

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