Códigos morais e os animais

AutorEdna Cardozo Dias
CargoDoutora em Direito pela UFMG, professora de Direito Ambiental, Presidente da Liga de Prevenção da Crueldade contra o Animal
Páginas183-202

Ver nota 1

Page 184

1. A terra, nossa mãe

As religiões ancestrais visualizavam o universo como uma grande mãe. As grandes deusas representavam a Terra Mãe ou o princípio gerador da vida. A capacidade de conceber uma nova vida humana, dar à luz, produzir leite e sangrar com as fases da lua, inspirava temor e reverência. Só ela tinha poder de produzir e nutrir a vida. Sem ela a nova vida extinguir-se-ia.

Na Babilônia a grande deusa é Ishtar, a mãe de Tamuz. Astarte é adorada pelos hebreus, fenícios e cananeus, de acordo com a liturgia. No Egito temos Isis. Na Frígia temos Cibele, posteriormente identificada com as deusas Rea, Gea, Deméter, e com suas equivalentes romanas, Tellus, Ceres e Maia. Porém, a mais famosa é Ártemis, conhecida pelos romanos como Diana, deusa da caça e da lua.

O culto à Grande Mãe era a religião mais difundida nas sociedades primitivas.

Supõe-se que a domesticação de plantas e de animais, primeiro passo para a construção de sociedades humanas complexas, tenha implicado na fragmentação da visão sacralizada da natureza.

O aumento da população levou o ser humano a " domesticar" e o nomadismo trouxe vantagem ao homem. Com a descoberta da ligação entre o ato sexual e a fecundação, inciou-se um verdadeiro culto ao falo e que resultou na origem do patriarcado e a desacralização da natureza..

Com a irrupção do monoteísmo hebraico e seu desdobramento no cristianismo e no islamismo, foi dado o passo inicial para a desacralização da natureza e sua concepção como uma grande mãe.

No mundo místico a energia feminina do universo é representada pelos Andes, , enquanto a energia masculina é representada pelos Himalaias. , pólos negativo e positivo do planeta e regiões de grandes forças magnéticas. Esta energia feminina tocou tão profundamente os habitantes dos Andes, que este povo

Page 185

( os Incas) identificou nossa Terra, como Pachamama, a mãe de toda vida, a divindade excelsa do mundo, aquela que nos ensina a amar tudo incondicionalmente, e nos mostra o trabalho como uma altíssima virtude, porque amando tudo e construindo com o trabalho nos tornamos sábios.

Mircea Eliade, um dos maiores pensadores de nossa época e um especialista em estudo comparado das religiões, mostrou em "O sagrado e o profano", que os povos chamados de primitivos pelos evolucionistas, sacralizavam todos os aspectos da realidade: tempo, o espaço, a natureza não - humana, as sociedades humanas e o próprio indivíduo. Para eles a natureza era uma entidade constituída por seres organicamente ligados entre si e impregnados por partículas de divindade única ( panteísmo), ou que tinham alma (animismo) ou ainda habitada por divindades ( politeísmo).2

2. Povos primitivos e o xamanismo

Xamanismo é um nome genérico de origem siberiana para designar as práticas dos curadores e feiticeiros das culturas arcaicas - é uma das áreas que tem merecido a atenção de pesquisadores modernos de diversas áreas. O xamanismo é um fenômeno cultural, social e espiritual extremamente arcaico. As mais antigas manifestações xamânicas datam da era paleolítica (os rituais de caça nas pinturas). Ele sobrevive quase sem alterações na Ásia, Oceania, no Ártico (esquimós) e principalmente na África e nas Américas.

O animal sempre teve um papel crucial no xamanismo. No plano inicial arcaico o animal e o ser humano não se diferenciavam, eram como uma única entidade. Isto pode ser constatado através de pinturas rupestres como as da caverna Très Frères, na França ( 25.000 ªC.) Nesse local pode-se ver um xamã vestido com a pele e a cabeça de um cervo, a cauda do animal passando-lhe entre as pernas. As inúmeras representações da grande

Page 186

Deusa, Senhora dos animais e a lenda do primeiro xamã, vem selar essa comunhão entre o homem e o animal.

O culto à Grande Deusa é muito anterior à escrita e encontramos pinturas rupestres que mostram bisões, cavalos, ursos, veados e dezenas de outros animais. São centrais nos rituais de caça expressando agradecimento aos animais sagrados que constituem poderosa fonte de vida, a própria energia vital de quem o ingere. Nesse estágio eram freqüentes também representações da Grande Deusa como Senhora dos animais ( com seus animais sagrados), como Deusa mãe coruja, ou como Madona com seu filho ao colo.

Acreditava-se que a mulher engravidava do sangue da mens-truação. Por isto sempre se ofereciam sacrifícios de sangue à mãe Terra para pedir abundância de alimentos. Até que milhões de anos depois se trocou o sacrifício de sangue pelo auto sacrifício ( a culpa).

Na Grécia arcaica, a imagem da Grande Mãe animal alimentava o pequeno Zeus como cobra, porca ou vaca. Réia - Cibele, para os romanos, é representada assentada num trono e ladeada de animais.

Os buriates e iacutes da Sibéria nos contam a lenda do surgimento do primeiro xamã, que teria sido gerado pela águia (símbolo da consciência) e por uma mulher ( identificada à liberdade). Portanto, desde o início o xamã é um misto de divino, de humano e de animal.

O poder dos xamãs relaciona-se diretamente com seus totens, ou em outras palavras, seus aliados animais. Para um xamã um homem não é melhor e nem mais consciente do que um animal. O xamã oferece ao espírito do animal respeito e devoção, enquanto o animal oferece orientação e assistência. Os animais, assim como as pedras, para os xamãs tem espíritos poderosos, cada qual com seus próprios talentos, e tem a qualificação de ajudar as pessoas nas tarefas específicas. Um dos principais dons oferecidos pelo poder dos animais ao xamã em suas tarefas é a proteção e tutela. Eles costumam descobrir seus animais de

Page 187

poder permitindo que aflorem durante uma dança espontânea ou tendo uma visão do animal.

Para os xamãs, as crises do mundo de hoje não são surpresa. São o resultado do desequilíbrio causado pela falta de respeito, e este desequilíbrio em última análise acarreta a perda de poder para um xamã.

Os xamãs ensinam que à medida que uma pessoa for aprendendo a se comunicar com as pedras e os animais, deve ter em mente que o segredo do sucesso é o respeito. Para ter sucesso é preciso cooperar com o meio ambiente.

Para os xamãs andinos deste fim de século, desde 1992 se iniciou uma nova era para o mundo, com a chegada do décimo Pachakuti. Pachakuti significa " o que transforma a Terra". Ele anuncia o início de uma nova era de transição e mudança. E se caracteriza, sobretudo, pela presença da Mãe. E, ainda segundo os Incas, isto não quer dizer que a mulher dominará o mundo, mas que o homem tomará cada vez mais consciência da necessi-dade de fazer brotar o sentimento de mãe em seu coração. Pois, na verdade, o homem não precisaria de outra lei que não seja o amor, já que ele nos dá a consciência da reciprocidade e do serviço, que devem ser o vício do ser.

3. Sacralização dos animais no egito

Embora a mais antiga tentativa de se construir um monoteísmo seja atribuída ao Faraó Aquenaton, no século XIV ªC., que como resultado da fusão dos deuses Ra e Amon, ambos representados pelo sol, tentou impor o deus Ato, o hino a Ato, composto pôr ele, não deixa dúvidas de que era ecumênico e nutria grande amor pela natureza:

Todo mundo faz sua tarefa/ Todos os animais estão satisfeitos com suas pastagens;/ Árvores e plantas florescem./ Os pássaros que voam de seus ninhos/ Têm suas asas abertas em louvor ao seu Ka. / Todos os animais saltam sobre seus pés./ Tudo que voa e brilha,/ Vive quando surgiste para eles./ Os navios viajam para o norte e para o sul, / Pois

Page 188

todo o caminho se abre à tua presença./ O peixe no rio lança-se perante tua face;/ Teus raios estão no meio do grande oceano verde. / Como são múltiplas as coisas que fizeste!/ Estão oculta da face do homem./ Ó Deus único, nenhum outro se te iguala!/ Tu próprio criaste o mundo de acordo com tua vontade,/ Enquanto ainda estavas só:/ todos os homens, gado e animais selvagens,/ tudo que na terra caminha sobre suas próprias asas.3Na civilização egípcia encontramos afrescos tratando da caça no Nilo e da alimentação de animais em granjas. Entre os integrantes da civilização egeana, a tauromaquia era divertimento comum, ainda que praticado de maneira que era mais perigosa para o homem que para o touro.

Mas, é no próprio Egito que encontramos a sacralização de animais como ocorreu com o gato. No Egito o gato era considerado um animal sagrado, que recebia após a morte curiosas homenagens. Um templo foi erigido para a deusa - gata Batest. Ela era representada com o corpo de mulher e cabeça de gata, e sustentava em uma das mãos o instrumento musical das bailarinas e no outro a cabeça da leoa, o que significava que a qualquer tempo poderia se metamorfosear numa das três deusas leoas -Sekmet, Pekhet e Tefnut. . A lei era muito severa com aqueles que atentavam contra os gatos. Os gatos mortos eram embalsamados e oferecidos a Batest. Cemitérios de gatos foram encontrados por arqueólogos em suas escavações no Egito.

O templo de Batest foi descrito pelo historiador grego Herodoto, que viajou par o Egito no ano 450 ªC. Este luxuoso templo situava-se na cidade de Bubasti, numa ilha cercada pelos canais do Nilo.

Alguns atribuem esta valorização do gato pelo fato dele ter exercido o papel...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT