'Índice de concessão de HCs ainda é muito alto no Supremo'

Há um “autismo completo” quando as autoridades brasileiras decidem discutir o sistema carcerário do país. Na análise do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, existe uma infinidade de ideias, que não são difíceis de implantar e podem atenuar o problema, mas que nunca saem do papel. O motivo, dispara, é o “jogo farisaico” do qual participam União e estados: este diz que não tem verba suficiente para tratar do problema como deve; aquela alega que pode ajudar, mas que não tem nada com isso.

Quando foi presidente do Conselho Nacional de Justiça, o ministro pôde ver de perto o tamanho do problema do sistema carcerário e concluiu que, na verdade, não se trata de um problema carcerário. “É um problema de segurança pública, e todos temos que envolver”, insiste. E por “todos” quer dizer todos mesmo: Executivo, Legislativo, Judiciário e sociedade.

Dados do Departamento Penitenciário Nacional, o Depen, do Ministério da Justiça, mostram que o Brasil hoje tem 550 mil presos. Desses, cerca de 220 mil, ou 40%, estão em prisão provisória. Ou seja, estão presos aguardando uma decisão condenatória. Para o ministro Gilmar Mendes, “isso fala mal da Justiça Criminal, e fala que o sistema precisa de reforma”, conforme afirmou em entrevista à revista Consultor Jurídico.

À frente do CNJ, o ministro acompanhou casos de pessoas presas há mais de dez anos ainda sem condenação, ou, pior, pessoas que já haviam cumprido suas penas mas continuavam encarceradas. Por isso criou o Mutirão Carcerário, grupos de servidores do Judiciário que iam, em regime de força-tarefa, aos estados para mergulhar nos processos criminais com réus presos e fazer o acompanhamento da situação.

Hoje, o problema continua. E as soluções apontadas pelo ministro continuam as mesmas: fazer os inquéritos policiais andarem, para que os crimes cheguem aos tribunais e, depois, fazer os processos andarem. Outra medida é ampliar as penas alternativas e investir mais em outras formas de medidas cautelares. Mas o que pode mesmo ajudar é pôr as ideias em prática.

Como avalia o ministro, os estados reclamam que não têm verba, mas o Fundo Penitenciário Nacional (Funpen), do governo federal, já dispõe de R$ 2 bilhões, que não é reclamado pelas administrações estaduais. E “as autoridades do Ministério da Justiça falam como se estivessem falando do sistema carcerário da Bolívia. O Maranhão é no Brasil”.

Em visita à redação da ConJur, em São Paulo, o ministro falou aos jornalistas Márcio Chaer, Maurício Cardoso, Marcos de Vasconcellos e Elton Bezerra.

Leia a entrevista:

ConJur — Anos atrás, quando se falava em ativismo judicial, havia certo entusiasmo, até aplausos. Hoje parece que a coisa está se revertendo, o senhor não acha?

Gilmar Mendes — É preciso ter muito cuidado com isso. A Constituição confere tarefas muito diferenciadas para o Judiciário. Por exemplo, o controle da omissão, que é uma inovação radical da Constituição de 88. Criaram-se dois instrumentos para isso: a ação direta por omissão e o mandado de injunção, que é uma ação de caráter individual. Claro que, aqui, o constituinte está querendo que o Judiciário supra as omissões existentes, ou concite o Legislativo a fazê-lo. Ou mesmo que eventualmente edite normas provisórias. Quer dizer, como não ser “ativista”, por assim dizer, nesses contextos? Diante de omissões, às vezes, históricas, de legislações que nunca se editam. Ao mesmo tempo, sabemos que legislações muito complexas não serão editadas pelo Judiciário.

ConJur — Por quê?

Gilmar Mendes — Porque elas envolvem aspectos orçamentários escolhas e ponderações. São regras de transição que dificilmente poderão ser feitas pelo Judiciário. E quando o Judiciário intervém, acaba provocando problemas. Vide o caso dos precatórios, em que o Legislativo tinha encontrado um modelo de parcelamento, o CNJ regulamentou, veio o Supremo e declarou inconstitucional. Depois se descobriu que os governos municipais passaram a não pagar nem aquele mínimo estabelecido, porque, não podendo pagar o máximo, também não pagavam o mínimo.

ConJur — Isso até que se decida pela modulação.

Gilmar Mendes — Até que se decida pela tal modulação. Coube a nós o papel – estranho, para dizer o mínimo – de dizer que, enquanto não vier a definição da modulação, que fique em vigor a regra que declaramos inconstitucional. Então foi um gol contra do ativismo. É aquela coisa de “calcemos as sandálias da humildade”, um caso atípico.

ConJur — Como o senhor avalia esse movimento da classe política procurar cada vez mais o Judiciário para resolver seus problemas, inclusive os institucionais?

Gilmar Mendes — Talvez seja porque não haja instâncias de solução. Talvez os conselhos, conselhos de líderes, comissões de líderes etc. não estejam funcionando a contento, o que leva a um esgarçamento. E aí tudo acaba num mandado de segurança no Supremo. É o que tem acontecido. Falta de um diálogo institucional no âmbito do próprio Congresso. Essa, talvez, seja a causa. Agora, por que é que isso ocorreu? Talvez porque tenhamos muitos partidos, muitas forças políticas, e talvez as próprias lideranças congressuais já não tenham condições de arbitrar muitos desses conflitos.

ConJur — Mas muito se fala sobre a judicialização da política como um aspecto negativo.

Gilmar Mendes — Um dado é inevitável: a possibilidade ampla de impugnar leis em ADI já é bastante amplo. No caso do parlamentar, basta o partido com um representante em uma das casas para entrar com a ação. No Congresso, essa voz vale pouco. Então, quem estiver na oposição a um projeto aprovado, obviamente que vai tentar derrubar no Supremo. Agora, fala-se muito em judicialização em relação às questões políticas. A desentendimentos quanto a projetos, modelos de regimentos, etc. Nesse caso, me parece que é mais um esgarçamento, uma falta de legitimidade do próprio processo político.

ConJur — O STF caminha para ser uma corte puramente Constitucional?

Gilmar Mendes — Isso não existe. O tribunal já é a corte constitucional do país, mas se olharmos qualquer corte constitucional — a Corte Constitucional alemã, que talvez seja hoje o maior paradigma, por exemplo —, veremos que há competências penais, eles processam seus próprios juízes, o presidente da República etc. Ela tem competências específicas, que não são apenas constitucionais. Alguns conflitos que são de natureza constitucional, como conflitos federativos importantes, mas não existe esse modelo puro. E as questões que realmente ocupam o Supremo hoje são questões constitucionais que vêm nas ações de controle abstrato [ADI, ADC e ADPF] e nos REs. E tem uma linha talvez menos clara, mas que discute questões importantes, que é o Habeas Corpus.

ConJur — Nos outros países as...

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