Resolução de conflitos ambientais internacionais: soberania, jurisdição internacional e ingerência ecológica

AutorRafael Lazzarotto Simioni; Eliane Moreira Lorenzet
Páginas155-175

    Pesquisa desenvolvida no âmbito do Projeto “Imputação difusa de responsabilidade ambiental e prevenção cooperativa de riscos ecológicos“, do Grupo de Pesquisa Metamorfose Jurídica – Mestrado em Direito e Departamento de Direito Privado, Centro de Ciências Jurídicas, Universidade de Caxias do Sul.

Rafael Lazzarotto Simioni. Doutorando em direito pela Unisinos, Mestre em Direito pela UCS, Professor e Coordenador do Curso de Direito do Ceulji/Ulbra Ji-Paraná – Rondônia e pesquisador do Grupo de Pesquisa Metamorfose Jurídica (UCS).

Eliane Moreira Lorenzet. Advogada em Guaporé (RS).

Page 156

1 Introdução

Existem atualmente diferentes formas de resolução dos conflitos internacionais ambientais. Dentre essas, as mais discutidas são a ingerência ecológica e a jurisdição internacional. Ambas as propostas, contudo, apresentam problemas no que tange à soberania e a intervenção internacional com relação ao meio ambiente.

No atual momento histórico, se faz imprescindível que a ciência jurídica encontre um meio termo entre defesa da soberania do Estado e a proteção da natureza. As ações do homem podem gerar problemas ecológicos que afetam o ambiente em dimensões espaciais e temporais, muito além das dimensões territoriais de Estado ou do tempo em que vivemos.

Esses conflitos internacionais que surgem em decorrência da irresponsabilidade do homem com seu planeta, poderão ser minimizados significativamente a partir do momento em que o desenvolvimento econômico deixar de ser objetivo primordial de alguns países para dar lugar a uma política voltada ao bem-estar social e a defesa da vida.

Quando as medidas internas de determinado país se tornam ineficazes na resolução de um conflito, este poderá recorrer a uma jurisdição dita jurisdição superior. Mas, até que ponto pode-se interferir na soberania de um Estado com vistas à defesa dos interesses de outros? A existência de uma jurisdição superior é realmente a solução mais adequada para a resolução desses conflitos? É válido optar pela Ingerência Ecológica em detrimento da soberania e em defesa do meio ambiente?

Nessas condições, objetiva-se analisar a relação entre a soberania do Estado e a Ingerência Ecológica, destacando os limites da possibilidade de intervenção ecológica nos conflitos internacionais ambientais.

2 A soberania do Estado

Dentre as inúmeras teorias jurídicas, nenhuma é de tão grande controvérsia quanto à conceituação de soberania. A palavra soberania vem do latim superanus e era utilizada para designar todos os que estivessem no topo dePage 157 uma ordem. Era definida como poder supremo e de ordens incontestáveis (SANTOS, 2007).

Na Antiguidade, as idéias de superioridade do Estado nada tinham a ver com a noção de supremacia de poder representada pela soberania. De acordo com Dallari, a Antiguidade não chegou a conhecer o conceito de soberania pelo fato de que não havia no mundo antigo “a oposição entre o poder do Estado e os outros poderes”. Foi na Idade Média, com os conflitos decorrentes do surgimento de ordens independentes e das atividades de segurança e de tributação, que o problema passou a ganhar importância (DALLARI, 1987. p. 64).

A teoria jurídica da soberania foi formulada por Jean Bodin. Segundo Dallari (1987, p. 66), vejamos o conceito de soberania estabelecido por Bodin:

Soberania é o poder absoluto e perpétuo de uma República, palavra que se usa tanto em relação aos particulares quanto em relação aos que manipulam todos os negócios de estado de uma República. [...] Sendo um poder absoluto, a soberania não é limitada nem em poder, nem pelo cargo, nem por tempo certo. Nenhuma lei humana, nem as do próprio príncipe, nem as de seus predecessores, podem limitar o poder soberano.

Muito embora Bodin interessava-se pela centralização do poder interno, jamais defendeu a idéia de um poder completamente sem fronteiras. Acreditava que a soberania deveria sujeitar-se ao direito natural e ao direito das gentes. A idéia de poder absoluto de Bodin está ligada à sua crença na necessidade de concentrar o poder totalmente nas mãos do governante; o poder soberano só existe quando o povo se despoja do seu poder soberano e o transfere inteiramente ao governante. Para esse autor, o poder conferido ao soberano é o reflexo do poder divino, e, assim, os súditos devem obediência ao seu soberano (PERINI, 2003).

O conceito de soberania, da forma como surgiu, foi fundamental para que os reis exercessem seu poder, impondo e consolidando sua autoridade sobre determinado povo e território, unificando os Estados (ARIOSI, 2004). Desde então, a soberania passou a ser analisada à luz de seus aspectos internos e externos. Internamente, os soberanos passaram a exercer uma relação de poder com o povo sem intermediários, assumindo um papel de total supremacia não se sujeitando a nenhum outro poder, ou seja, os senhores feudais não tinham mais autonomias locais e todos se sujeitavam ao poder real. Quanto aos aspectos externos da soberania, os soberanos passaram a considerar uns aos outros como iguais, sem a intervenção de nenhum juiz com poder sobre os Estados, cabendo a eles decidir sobre a guerra e a paz.

Page 158

Saldanha (2005) afirma que, a soberania, como princípio fundamental do Estado, onde a comunidade aceita e se submete a uma autoridade que a represente, surgiu com a reforma religiosa e tinha por finalidade explicar a existência de um Estado nacional superior, indivisível e independente diante da vontade divina traduzida e exercida então pela Igreja. De acordo com o autor, no início da Idade Moderna, com o aparecimento do mercantilismo e com as disputas pelo poder econômico entre os Estados, a soberania consolidou-se.

Nesse período ocorreu a formação de Estados territoriais soberanos. A formação dos Estados deu origem às relações internacionais a partir da decadência política da igreja e da instrumentalização do direito internacional. O conceito de soberania influenciou diretamente a formação do direito internacional moderno, constituindo-se “no poder incontestado do Estado, sobre o território ocupado pela nação, devendo ambos viver fraternalmente” (MERCADANTE; MAGALHÃES, 1999. p. 439).

O Estado Moderno é titular do poder. Titular de um poder instituição, onde a autoridade não está diretamente associada ao indivíduo que a exerce1. A soberania é o elemento essencial para o reconhecimento do Estado como tal, independente de qualquer ato formal que possa existir para que isso ocorra. De acordo com Dallari, só o Estado é que tem soberania e por isso se diferencia das demais pessoas jurídicas de direito internacional público.

Tendo surgido como característica principal do Estado, a soberania, no decorrer da história passou por significativas transformações. Passou de poder absoluto e perpétuo do soberano às mãos do povo por meio de Rousseau, atribuindo-se à burguesia, à nação, para, no século XIX, aparecer como emanação do poder político. Posteriormente, a titularidade do poder soberano passa a ser do Estado. Atualmente, a interdependência dos mesmos direciona cada vez mais a uma interligação entre a idéia de soberania e de cooperação, econômica, jurídica e social.

Page 159

Um dos fatores de limitação da soberania é a soberania dos outros Estados. O direito Internacional, de certa forma, contribui para relativizar a soberania do Estado, uma vez que a comunidade internacional confere ao Estado Moderno o dever de observância, acima de seus próprios interesses, aos interesses comuns da humanidade2.

Dallari afirma que a ação soberana dos Estados é delimitada pelo território. Considera a ordem jurídica do Estado, por ser a única que tem soberania, a mais eficaz, pois depende dela aceitar ou não a aplicação, dentro dos limites territoriais deste Estado, de normas jurídicas externas. No entanto, o autor pondera que “há casos em que certas normas jurídicas dos Estados [...] atuam além dos limites territoriais, embora sem a possibilidade de concretizar qualquer providência externa sem a permissão de outra soberania” (MERCADANTE; MAGALHÃES, 1999, p. 76). Estes casos, onde as normas de um Estado atuam além dos limites territoriais, tendem a ocorrer nas situações que se referem aos direitos dos indivíduos, como é o caso dos direitos fundamentais do homem, por exemplo.

Embora investido de poder soberano, o Estado deve ser governado com retidão, respeitando as leis naturais, o interesse público e a propriedade. A soberania é limitada pelo direito internacional ou direito das gentes, isto é, pelas leis dos homens que são comuns a todos os povos.

Nas últimas décadas pôde-se perceber uma evolução da concepção de soberania no sentido de que se passou de uma noção de soberania unicamente política para uma noção jurídica do termo. O poder soberano passou a preocupar-se em ser legítimo, em ser jurídico. Segundo essa concepção não há Estados mais fortes ou mais fracos, uma vez que para todos a noção de direito é a mesma. A grande vantagem dessa conceituação jurídica é que mesmo os atos praticados pelos Estados mais fortes podem ser qualificados como antijurídicos, permitindo e favorecendo a reação de todos os demais Estados ((MERCADANTE; MAGALHÃES, 1999).

A soberania, como poder jurídico, passa a figurar nos ordenamentos dos Estados. Em nossa Constituição Federal, o princípio da soberania se encontra resguardado no artigo 1°, I, demonstrando uma idéia de total independência de decisões. Mas com o desenvolvimento tecnológico das últimas décadasPage 160 houve uma aceleração no processo de internacionalização. Com as transformações que vem sofrendo o Estado Moderno, a soberania, considerada não só como elemento do Estado, mas como sua razão de ser e de existir na ordem internacional, já não possui mais as características de antigamente.

Após o fim da Segunda Guerra Mundial, as...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT