A Mediação na Prevenção e Solução de Conflitos Locatícios

AutorCristina Grobério Pazó
CargoDoutora em Direito pela UGF; Mestre em Direito pela UFSC; Graduada em Direito pela UFES; Advogada; Professora Universitária; Mediadora atuante no NPJ-FDV
Páginas298-350

Page 298

1. Introdução

No Brasil contemporâneo, a maioria das locações de imóveis urbanos é realizada através da intermediação de uma administradora de imóveis. Normalmente é o locador quem realiza a contratação da administradora do imóvel, a qual aproxima as partes, prestando as informações básicas para a celebração do contrato.

A elaboração do contrato de locação cabe às partes. Entretanto, é muito comum as imobiliárias fornecerem às partes contratos pré-elaborados cujos conteúdos, normalmente privilegiam os interesses do locador. Muitos desses contratos não são sequer ajustados às necessidades básicas dos contraentes. A adoção desse contrato é uma das possíveis fontes geradoras de conflituosidade.

A situação é ainda mais grave quando são adotados os formulários de contrato de locação vendidos em qualquer papelaria e os contraentes, nessa hipótese, apenas preenchem os espaços, especificando seus nomes e qualificação, o valor do aluguel, o prazo da locação, a garantia, o local e a forma de pagamento.

Page 299

O contrato de locação é de execução continuada e as obrigações dos contraentes apenas cessam com o término da locação. Portanto, as possibilidades de desavenças durante esse relacionamento são maiores que as de um contrato de execução imediata.

Os conflitos locatícios normalmente possuem natureza patrimonial, com a presença de partes no processo por necessidade financeira. Elas, portanto, não possuem condições de adimplir com suas obrigações vencidas. Essa situação é bastante comum no Brasil atual e dois fatores decisivos contribuem grandemente para sua ocorrência: o crescimento do desemprego e a “massificação” da idéia de que a felicidade se resume ao consumo.

Os conflitos advindos das relações locatícias são numerosos e de delicada solução. As partes envolvidas normalmente anseiam por soluções rápidas, além de justas. O instrumental jurisdicional moroso, caro e excessivamente formalista, em muitos momentos, não tem alcançado o resultado com a agilidade necessária. A via judicial não tem se mostrado suficientemente capaz de resolver todos os conflitos existentes na sociedade atual. Portanto, outros meios para gerir contendas estão sendo utilizados.

O presente artigo tem por objetivo verificar o alcance de um desses meios alternativos: a mediação. Esse estudo se concentra no Brasil atual, nos conflitos advindos de relações de locação de imóveis urbanos, regulamentadas pela lei 8.245 de 18 de outubro de 1991.

A abordagem deste trabalho é uma tentativa de contemplação de um instituto diante de um objeto específico e seus atores sociais, com o objetivo de submeter a uma apreciação responsável o fenômeno da mediação.

Page 300

2. Conflito e conflito advindo das relações locatícias

Um dos fatos mais comuns da vida em sociedade é a presença do conflito: conflitos familiares, com a vizinhança, nas relações de trabalho, nas relações comerciais e entre os interesses gerais e os interesses particulares.

Dentro da ciência processual, a vertente mais adotada é o estudo dos conflitos através da visão de Carnelutti. Essa abordagem é iniciada através da conceituação do termo interesse, pois através da busca pelos interesses é que se instaura o conflito.

Na obra Sistema de Direito Processual Civil, Carnelutti1 trata o interesse como sendo uma posição do homem, a posição favorável à satisfação de uma necessidade, Alfredo Buzaid2 explana o mesmo entendimento.

Carnelutti estabelece a existência, entre os entes, de “relações de complementaridade”, que seriam o estímulo dos seres vivos à combinação.3

O estímulo age por via de uma sensação penosa por todo o tempo em que se não efetua a combinação, e de uma sensação agradável logo que a combinação se produza. Essa tendência para a combinação de um ente vivo com um ente complementar é uma necessidade. A necessidade satisfaz-se pela combinação. O ente capaz de satisfazer a necessidade é um bem.(...) A relação entre o ente que experimente a necessidade e o ente que é capaz de a satisfazer é o interesse. (...) Um ente é objetoPage 301 de interesse na medida em que uma pessoa pense que lhe possa servir, do contrário, é indiferente.4

É fundamental, para estabelecer um entendimento sobre “interesse”, a noção do que sejam “bem” e “necessidade”, pois um bem pode servir para satisfazer a necessidade dos homens ou apenas como mera utilidade individual. Necessidade é um termo que expressa a essencialidade de alguma coisa e a utilidade caracteriza-se pela “idoneidade de uma coisa (bem) para satisfazer a uma necessidade.”5

Para a configuração do interesse é fundamental “que à utilidade se alie a necessidade presente ou de previsão futura.”6

Os bens encontram, primeiramente na inteligência e finalisticamente na vontade, os meios através dos quais, respectivamente valorando-os e querendo-os, transformaos o homem em verdadeiros bens. Dessa forma, pode-se afirmar que os bens constituem-se para o homem num atrativo, seja de ordem econômica ou ‘moral’.7

Na obra Teoria Geral do Direito, Carnelutti aborda o interesse como sendo uma relação: o homem busca através das relações uma satisfação. Essa satisfação se dá através dos bens, meios para a satisfação das necessidades humanas, os quais podem ser materiais ou imateriais.8

Page 302

Carnelutti demonstra que o interesse é uma relação entre duas ou mais pessoas, tentando satisfazer suas necessidades através da conquista dos bens.

Ao se tratar o interesse através do prisma da relação jurídica, verifica-se um predomínio da visão privativista nas construções teóricas.9

Carnelutti10 esclarece que os interesses dos homens são ilimitados e, em contrapartida, os bens são limitados, surgindo desse impasse o conflito de interesses. “Surge conflito entre dois interesses quando a situação favorável à satisfação de uma necessidade exclui a situação favorável à satisfação de uma necessidade distinta,”11

“O conflito ocorre sempre que atividades incompatíveis, oriundas ou não da vontade, existem. As ações incompatíveis podem surgir em uma pessoa, um grupo ou nação. Nesses casos são chamados de intrapessoal, intragrupal ou intranacional. Ou eles podem refletir ações incompatíveis de duas ou mais pessoas, grupos ou nações e são chamados de interpessoais, intergrupais ou internacionais.”12

Os pilares da ciência processual são fundados sobre os conflitos de interesses individuais, mas é importante ressaltar o crescimento das demandas de interesses coletivos, difusos e outros.

“A concepção tradicional do processo civil não deixava espaço para a proteção dos direitos difusos. O processoPage 303 era visto apenas como um assunto entre duas partes, que se destinava à solução de uma controvérsia entre essas mesmas partes a respeito de seus próprios interesses individuais. Direitos que pertencessem a um grupo, ao público em geral ou a um segmento do público não se enquadravam bem nesse esquema. As regras determinantes da legitimidade, as normas de procedimento e a atuação dos juízes não eram destinadas a facilitar as demandas por interesses difusos intentadas por particulares.”13

Para Carnelutti o conflito é um dado sociológico que antecede à lide, sendo a lide o conflito de interesses deduzidos em juízo. Já Greco Filho14 vislumbra que o termo mais adequado seria “convergência de interesses” sobre bens, e não conflito. O autor ressalta os casos de jurisdição voluntária e até o processo penal em que efetivamente não ocorre um embate entre as partes.

Tradicionalmente, seguindo a visão carneluttiana, estuda-se a ciência processual como aquela que tem o fim precípuo de solucionar os conflitos existentes na sociedade através dos instrumentos processuais previstos no ordenamento jurídico de cada Estado.

A conceituação do conflito de interesses é central para o estudo da ciência processual no Brasil, mas sofre inúmeras críticas. Originalmente, a conceituação dos conflitos de interesses de natureza privada era apropriada. Atualmente, entretanto, existem diversas demandas que devem, forçosamente, ser solucionadas pela via judicial e nas quais não há necessariamente interesses contrapostos.15

Page 304

Dinamarco16 define conflito como a situação objetiva caracterizada por uma aspiração e seu estado de não satisfação, independentemente de haver ou não interesses contrapostos. Essa definição consegue abarcar os diversos tipos de conflitos existentes na atualidade, sendo metodologicamente mais satisfatória.

Conflito, em uma acepção estrita, é conceituado como a disputa bilateral na qual duas partes tentam possuir o que ambas não podem. Na acepção ampla, denota o confronto de poder na luta de todas as coisas por se manifestar.17

Nessa acepção, a conceituação de conflito é similar à construção científica formulada por Carnelutti e tal formulação abarca apenas uma parte dos conflitos existentes, sendo necessário, na atualidade, recorrer ao conceito amplo do que seja conflito para a realização de uma análise mais correta desse objeto de estudo.

Nas doutrinas clássicas da ciência processual brasileira, vê-se reiteradamente a adoção da ideologia incentivadora do combate, dos vencedores, estabelecendo que quem recorre ao judiciário receberá uma decisão favorável ou contrária à sua tese de argumentação. Exemplifica-se esse entendimento através da citação a seguir:

“A lei regula conflitos de interesses. Regula-os de modo a distinguir o interesse que deva prevalecer, donde distinguirem-se duas faces no conflito de interesses: a do interesse subordinante, ou protegido, e a do interesse subordinado. Em face do respectivo interesse, os sujeitos do conflito se encontram, pois, na situação de titulares dePage 305 um interesse subordinante ou de um interesse subordinado.”18

O Direito...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT