Conflitos sócio-ambientais e o papel do Ministério Público: o caso de Blumenau, SC, Brasil

AutorAgripa Faria Alexandre - Marjor Andreata - Márcio Minatti
Páginas380-397

Page 380

Introdução

A problemática* sócio-ambiental enquanto uma entre as diversas temáticas analisadas na esfera pública política destaca-se por depender muitas vezes da intervenção interpretativa de um aparelho judicial. Este, com suas regras de cunho abstrato, racional e geral, possibilita que os operadores do Direito alimentem demandas corretivas ou preventivas para as situações de conflito social. Nos anos 90, em particular, as demandas jurídicas de movimentos sociais brasileiros de grande prestígio junto à mídia têm postulado discutir assuntos que vão desde a introdução de produtos transgênicos no mercado nacional até a invasão de terras pelo MST.

Page 381

Assim, o espaço jurídico estatal vem-se destacando algumas vezes como um espaço aberto para que os mais diferentes valores e bens culturais sejam debatidos. Isso se trata de um momento de impasse dilemático para as bases políticas da modernidade, na medida que na s socieda des ca pit a list a s, ba sea da s na inquestionabilidade e irreversibilidade da produção alienada de bens materiais e na distribuição desigual da riqueza, as cortes judiciais só ocupa m-se de est abiliza r micr oconflit os individuais e patrimoniais. Nestas sociedades, questões de política referem-se a mecanismos instrumentais de justiça distributiva, e questões de direito referem-se a meca nismos instrumentais de justiça retributiva. Em outras palavras, o momento é também de tensão, pois ocorre um colapso da normalidade da estrutura racional e econômica da sociedade, o que faz com que juízes e promotores de justiça passem a interpretar assuntos de governo, abandonando um papel de neutralidade política.

No caso específico do Ministério Público Estadual em Blumenau, nosso trabalho teve como desafio compreender o seu envolvimento político na discussão dos conflitos sócio-ambientais da cidade durante os anos de 1998 e 1999. A técnica de coleta de dados quantitativa, de número de casos e assuntos abordados, permitiu-nos a análise dos dados segundo o enfoque epistemológico sistêmico a fim de compreender possíveis metodologias alternativas de conscientização e transformação social pela via da discussão dos conflitos sociais tematizados pelo órgão.

A seguir, na parte teórica deste artigo, destacamos primeiramente a definição da problemática sócio-ambiental, o conceito de conflito sócio-ambiental local, a gênese e a dinâmica do movimento ambientalista brasileiro, especificando a sua repercussão na cidade de Blumenau junto aos movimentos sociais locais, e terminamos essa parte com uma breve história da política institucional do meio ambiente no Brasil. Na parte empírica, além de apresentarmos um breve resumo sobre a metodologia usada na coleta e análise dos dados, descrevemos os conflitos encontrados. O artigo termina oferecendo uma crítica ao papel político do órgão estadual em Blumenau, segundo a abordagem epistemológica sistêmica.

Page 382

Considerações teóricas
Definição da problemática sócio-ambiental

A problemática sócio-ambiental ou também chamada crise sócioambiental vem sendo definida por uma série quase infindável de estudos como sendo característica de uma situação de ingovernabilidade global provocada pela desorientação generalizada dos rumos do desenvolvimento econômico1. Os poucos países ricos do mundo hoje enfrentam crises internas como terrorismo, taxas baixíssimas de natalidade e controlam arduamente um incessante movimento de imigração de populações de países pobres e miseráveis e estruturalmente abalados por guerras e indefinições permanentes de governabilidade interna. As expectativas gerais de sustentabilidade tanto nos países ricos quanto nos países pobres à longo prazo são alarmantes, seja pelo uso excessivo e perdulário dos recursos naturais nos primeiros seja pelo simples esgotamento dos mesmos recursos nos segundos.

A sustentabilidade global está diretamente relacionada com o ajustamento aos padrões mínimos de medição dos níveis de desenvolvimento humano de cada país. Isso requer, além do combate à pobreza estrutural, planos institucionais de intervenção governamental que possam garantir o crescimento populacional em níveis de recomposição, o uso durável dos recursos naturais renováveis, a construção de sistemas produtivos que utilizam tecnologias com alta eficiência energética e mínima emissão de poluentes e programas de educação para disseminar sistemas de valores que não propiciem a expansão ilimitada do consumo material. Nesse sentido, segundo o Relatório 2000 sobre a Pobreza no Mundo, editado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – o PNUD -, e lançado em 4 de abril de 2000, existe a necessidade urgente de se elaborar novos métodos para combater a pobreza no mundo. O relatório aponta que menos de um terço dos países mais pobres do planeta possuem objetivos fixados para eliminação da extrema miséria em que vivem suas populações, embora eles estejam conscientes sobre a amplitude do problema e das medidas necessárias que deveriam ser tomadas.

Page 383

O relatório destaca ainda que a população mundial já ultrapassou a marca dos 6 bilhões de pessoas, sendo que 3 bilhões vivem com menos de 2 dólares por dia, 1,3 bilhões com menos de 1 dólar por dia e outros 40 milhões morrem a cada ano de fome ou desnutrição. Se essa tendência não se reverter, o número de pessoas em estado de pobreza absoluta passará de 1,3 bilhões para 1,9 bilhões no ano de 2015. No Brasil, a distância entre ricos e pobres, segundo o mesmo relatório, aumentou 30 vezes entre os anos de 1960 e 1974 e 74 vezes entre os anos de 1974 e 1997. O PNUD aponta ainda que 5% da população mundial detêm 86% de toda a riqueza do planeta.2

Definição de conflito sócio-ambiental local

A expressão conflito sócio-ambiental local designa aqui um amplo espectro de representações sociais divergentes e lutas originárias de interesses opostos pela apropriação e o uso do meio ambiente no nível local. Entende-se particularmente que as formas de tensão existentes entre o público e o privado derivam então primordialmente dos choques de conhecimentos acumulados pelas sociedades (por setores ou segmentos sociais, da mesma forma ) sobre os fenômenos naturais e os fenômenos sociais nelas elaborados e construídos. O condicionamento cultural é interpretado aqui como determinante nas opções de exploração dos recursos naturais, nas motivações para se considerar este ou aquele recurso como mais ou menos passível de ser explorado ( até determinar a sua ‘real ’ escassez ), mais útil ou menos útil, benéfico ou prejudicial, bom ou ruim.

Entre as diversas formas de apropriação, uso e gestão do meio ambiente encontram-se, por exemplo:

1 ) Uma grande variedade de objetos indutores de conflito , pelo fato de serem bens comuns : águas; florestas, fauna selvagem, biodiversidade, solos, ar, etc. 2) Agressões/conflitos mais comuns: ausência de infra-estrutura sanitária; despejo irregular de efluentes industriais; manejo irregular de produtos tóxicos; poluição do ar; mineração descontrolada;Page 384vazamento de cargas tóxicas; caça irregular; desmatamento e corte de madeira; aterros; lixo doméstico e hospitalar; obras públicas como barragens, hidrelétricas; construções civis; agricultura; etc. 3 ) Responsáveis diretos pelas agressões/conflitos: grandes empresas do ramo da construção civil, de aterros, de extração de areia, de mineração, dos laboratórios, etc.; Estado - em obras como barragens, estradas, etc.; garimpeiros; trabalhadores rurais com práticas de desmatamento/agricultura; pescadores industriais e artesanais; caçadores; etc. 4 ) Atores que se mobilizam com frequência contra as agressões ambientais: entidades ambientalistas; moradores; Ministério Público dos Estado e Ministério Público Federal; Parlamentares; populações tradicionais; Sindicatos; Indivíduos; Ong’s; Conselhos do Meio Ambiente; Fiscais do governo; etc.

A gênese e a dinâmica do movimento ambientalista brasileiro A repercussão na cidade de Blumenau (1963 –2000)

O movimento ambientalista brasileiro, de acordo com pesquisas já realizadas, surgiu na década de 70 através das campanhas de denúncia de associações que atuavam no âmbito local de algumas cidades urbanas do país que então já sofriam com os efeitos deletérios da poluição industrial. Neste período, fazem parte do movimento também as primeiras agências estatais ambientais, criadas no país em decorrência da pressão internacional contra a atuação da diplomacia brasileira na Conferência de Estocolmo de 1972 (VIOLA & VIEIRA, 1992, p. 90).

Pode parecer estranho apontar o governo como um movimento ambientalista, no entanto, segundo a abordagem histórica, complexa e multissetorial dos novos movimentos sociais, utilizada largamente para estudar o movimento ambientalista brasileiro, seu surgimento e sua dinâmica são interpretados de modo mais genérico e prático dentro da sociedade como um todo. A partir desta perspectiva, desenvolvida principalmente por Alain Tourraine e aplicada no Brasil principalmente por Eduardo Viola, considera-se então que existiria uma abertura de trânsito da mensagem ecológica entre os variados segmentos ideológicos e organizados que estariam receptivos ou não a essa mensagem,Page 385dependendo da estrutura política de uma determinada sociedade. A abordagem do movimento histórico, complexo e multissetorial tenta enfatizar a formação de redes complexas e interconectadas, mostrando que não seriam apenas as classes sociais que definem o sistema econômico e político, mas os novos movimentos sociais com suas formas peculiares de produção de relações sociais de...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT