\'Todo conservador quer uma Constituição enxuta\'

"Um dos maiores juristas do Brasil." Essa é a definição mais comum de se encontrar em menções a José Afonso da Silva. Seja qual for a filiação teórica, operadores do Direito reverenciam a obra do jurista mineiro de 88 anos, nascido em Pompéu. Não por acaso. Formulador de influente parte da doutrina sobre Direito Constitucional no país, ele testemunhou e atuou no processo que culminou com a promulgação da Constituição em 1988, que comemora um quarto de século.


Ao lado de representantes de diferentes áreas do conhecimento e setores da sociedade, José Afonso da Silva fez parte do time de notáveis na Comissão Afonso Arinos que, entre 1985 e 1986, elaborou o anteprojeto de Constituição. O texto acabou não sendo enviado pelo presidente Sarney à Assembleia Nacional Constituinte, instalada em 1987, mas o trabalho não foi em vão e acabou sendo aproveitado conforme relata. "Ele não tinha como ser ignorado", relembra. Seu trabalho prosseguiu na assembleia, dessa vez como assessor do então senador pelo PMDB Mário Covas. Principal teórico e formulador dos Direitos Sociais garantidos pela Constituição, José Afonso da Silva pode ser considerado um constituinte de fato.


Tal qual no texto constitucional, não se separa a dimensão política da interpretação teórica que o professor aposentado da Universidade de São Paulo faz do processo Constituinte e de como ele se desdobrou. "O atual sistema eleitoral prejudica a governabilidade", avalia, além de apontar os defeitos do sistema judiciário que perduraram com a Constituição. Apesar dos novos direitos que foram garantidos, o "Poder Judiciário ficou praticamente intacto", diz.


Crítico do conservadorismo, reconhece o caráter progressista que o texto final da Constituição assumiu e está atento às tentativas de se reduzir os direitos sociais que marcam a Constituição. Entretanto, o jurista não se aflige com a falta de regulamentação dos vários dispositivos constitucionais — "não existe democracia acabada" — nem acha que a Carta perdeu sua essência — "os direitos fundamentais constituem um núcleo importante na Constituição. É aí que está a vantagem".


José Afonso da Silva trabalhou em roça de milho, feijão e arroz, foi padeiro, garimpeiro de cristal e alfaiate. Em 1947, mudou-se aos 22 anos para São Paulo, onde concluiu o curso Madureza, uma espécie de supletivo à época. Aos 32, formou-se na Faculdade de Direito da USP, onde foi professor titular e livre-docente em Direito do Estado, Direito Financeiro e Processo Civil. Também foi livre-docente em Direito Constitucional da Universidade Federal de Minas Gerais. No poder público, foi procurador do estado de São Paulo, chefe de gabinete da Secretaria da Justiça do estado, secretário de negócios jurídicos da capital e secretário da Segurança Pública.


Hoje aposentado, já não advoga ou dá parecer. Se dedica a manter sua obra atualizada, da qual se destacam Curso de Direito Constitucional Positivo, que está em sua 36ª edição, e Aplicabilidade das Normas Constitucionais, esta na 8ª edição. Foi em seu escritório, em São Paulo, que José Afonso da Silva recebeu a reportagem da ConJur para dois encontros nos dias 2 e 3 de outubro — no dia 1º, havia sido homenageado pela Ordem dos Advogados do Brasil por sua participação na elaboração do texto constitucional. Na conversa, o jurista relembrou momentos marcantes da Comissão Afonso Arinos e da Constituinte, avaliou o Judiciário brasileiro e fez um balanço desses 25 anos.


Leia os principais trechos da entrevista:


ConJur — O senhor participou da Comissão Afonso Arinos, que elaborou um projeto de Constituição e acabou não sendo enviado pelo então presidente Sarney à Assembleia Constituinte. O que aconteceu?

José Afonso da Silva — Ele não mandou o projeto da Afonso Arinos para a Constituinte porque era parlamentarista e socialmente avançado. Deu a desculpa de que não quis interferir, mas foi por isso que ele não mandou.


ConJur — Houve frustração pelo fato de o texto não ter sido enviado ou se sabia que aquele texto não tinha como ser ignorado?

José Afonso da Silva — Não tinha como ser ignorado, ele foi muito debatido. Ali não eram só juristas. Tinha muita gente de outras áreas do conhecimento. Como o presidente José Sarney não mandou o projeto à Assembleia, mas mandou publicar no Diário Oficial, os constituintes pegaram aquilo e começaram a tirar partes e apresentar. Então houve uma influência muito grande em praticamente tudo.


ConJur — Qual foi sua importância?

José Afonso da Silva — Se não houvesse a comissão Afonso Arinos talvez não teria havido a Constituinte. Foi só naquele momento que se discutiu Constituição e Constituinte, com muita repercussão na imprensa. A comissão Afonso Arinos acabou servindo de modelo para a estrutura da Constituinte.


ConJur — Pode citar exemplos dessa influência?

José Afonso da Silva — Um tema muito debatido atualmente é o da união estável. Surgiu na Afonso Arinos por proposta de um padre que participava da comissão. Nós estávamos procurando um meio de amparar a mulher que vivia amasiada há muitos anos com alguém e quando esse alguém morresse ela acabava ficando desamparada. A união estável surgiu exatamente por isso: para amparar a mulher que vivia nessa situação não casada, mas vivendo em uma família de fato. Nós estávamos debatendo aí o padre falou ‘por que a gente não põe união estável?’. Ele se chamava Fernando Ávila, era da corrente progressista da igreja. O controle do capital estrangeiro, por exemplo, nasceu na comissão por proposta do Barbosa Lima Sobrinho. Isso foi introduzido na Constituição, mas depois veio a Emenda 6, de agosto de 1995, e tirou. O Habeas Data foi proposto por mim e também foi para a Constituição.


ConJur — E teve alguma coisa que não foi aproveitada?

José Afonso da Silva — A Constituição da Comissão Afonso Arinos era parlamentarista e isso não foi aproveitado. A proposta prosseguiu até um certo ponto na Constituinte e depois caiu com a pressão do Sarney, oferecendo vantagens, e de outros presidencialistas. Você tinha também um sistema eleitoral misto, aproximadamente um tipo alemão, e não foi aproveitado. Se adotou na Constituição um sistema puramente proporcional. Em geral, a organização dos direitos fundamentais no anteprojeto da comissão Afonso Arinos era melhor, mas a Constituição ampliou.


ConJur — Como eram os trabalhos na Constituinte? Havia diálogo entre as comissões?

José Afonso da Silva — Não tinha muito porque conversar. Cada uma tocava o seu problema e a conversa seria feita na comissão de sistematização. Aí é que surgiu um problema mais delicado. Enquanto havia as subcomissões e as comissões, todos os constituintes estavam trabalhando. Quando foi para a comissão de sistematização havia um limite de membros. Ela não comportava todo mundo e a maioria dos constituintes ficou sem ter o que fazer. Não votavam, não discutiam e aquilo ficou reduzido a pouco mais de 100 membros. Então começou a haver reuniões paralelas. Foi também a partir disso que surgiu o Centrão. Os constituintes ficaram um pouco sem ter o que fazer, então começaram a se reunir, a reclamar e formaram grupos paralelos e daí acabaram... no Centrão.


ConJur — Como se deu isso?

José Afonso da Silva — Quando estava na...

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