A (in)constitucionalidade da interrupção terapêutica de gestação de fetos anencéfalos

AutorMarina Alice Souza Santos
Páginas120-153

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1 Introdução

Com os avanços da Medicina, conceitos antes considerados óbvios como a vida e a morte, tomaram novos contornos e se transformaram muitas vezes em incógnitas, principalmente no campo jurídico. 12 Por consequência, surgiu uma multiplicidade de definições do que seja e de quando inicia e cessa a vida, e, ainda, quando esta passa a ter relevância para o direito. Assim, esbarra-se em um problema que diz respeito à gestação de fetos anencefálicos.

A anencefalia é uma má-formação fetal, onde não é formada a calota craniana por estar também ausente o cérebro. Desta forma, não tendo cérebro, que é o órgão que comanda nossos sentidos e nos possibilita relacionar e desenvolver nossa capacidade cognitiva, este feto, quando nasce, respira apenas por algumas horas, isto quando não se apresenta natimorto. A Medicina ainda afirma que praticamente na totalidade dos casos a anencefalia é fatal, restando no feto apenas as atividades vegetativas quando este nasce, as quais, porém, cessam em alguns instantes após o parto.

Diante disso, algumas perguntas advêm: Em que consiste o direito à vida? Tem vida o feto anencéfalo e, pois, o respectivo direito? Page 121

O direito à vida é consagrado como um direito essencialíssimo por ser dele que advêm todos os demais. Mas deve-se garantir tal direito ao anencéfalo, sendo que o mesmo não poderá dele desfrutar após o nascimento?

Podem ser apontadas cerca de quatro teorias que tentam explicar quando a vida inicia e merece ser tutelada.

A primeira é a teoria conceptualista, que acredita que a vida deve ser tutelada desde a concepção. Se for esta a teoria adotada, o feto anencéfalo terá direito à vida e não se poderá falar em interrupção gestacional em nenhuma hipótese.

A segunda teoria apontada é a da nidação, que é marcada como o início da gestação, quando o óvulo fecundado aloja-se no útero e começa a se desenvolver. Sendo esta a teoria adotada, também deverá ser garantido ao feto o direito à vida.

A terceira teoria aponta como marco inicial da vida o começo da atividade cerebral. Adotada tal teoria, o anencéfalo, por falta do órgão responsável por referida atividade não será titular de qualquer direito, pois não poderá ser considerado um ser dotado de vida. Desta forma, sem bem jurídico à tutelar, a interrupção da gestação poderá ocorrer, não sendo considerada um ilícito penal.

A quarta e última teoria é a do nascimento com vida. Para esta, se nasceu e respirou a criança é considerada viva e, então, tem todos os direitos resguardados, mesmo que estes instantes de vida sejam mínimos e se saiba de plano que não durará muito tempo.

Por outro lado, não se pode desmerecer a situação da mulher-gestante que provavelmente criou diversas expectativas para a chegada deste novo ser, mas que devido ao diagnóstico da má-formação, torna esta espera em um momento de aguardar a chegada da morte?

A gestante tem o direito de optar pela interrupção desta gestação ou, mesmo sabendo que seu filho está fadado a não ter vida, deve levar até o fim esta gestação? É justo obrigar a mulher levar a termo a gestação de um feto potencialmente sem vida, pondo em risco sua saúde e agredindo sua dignidade?

Assim, mesmo considerando o caráter essencial do direito à vida, a saúde e a dignidade também são direitos fundamentais e devem ser resguardados. Poder-se-ia então utilizar a ponderação dos direitos fundamentais conflitantes, ou seja, colocar na balança os direitos em conflito e assim constatar qual prepondera, já que não é possível garantir uma proteção irrestrita para todos estes direitos ao mesmo tempo.

Assim, buscaremos demonstrar se há algum respaldo constitucional que possibilite ou vede a interrupção da gestação de fetos anencéfalos, em função dos direitos fundamentais que se encontram em conflito, buscando-se uma conclusão que pareça justa e condizente com a realidade do fato.

Vale apontar que a inspiração para o desenvolvimento deste trabalho advém do fato de que no ano de 2004, este assunto tornou-se discussão nacional devido à Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 54, impetrada no Supremo Tribunal Federal (STF), pela Confederação Nacional de Trabalhadores na Page 122 Saúde (CNTS), patrocinada pelo advogado Luiz Roberto Barroso, buscando daquele órgão um parecer quanto ao assunto debatido, devido à insegurança jurídica na qual se encontram os médicos e demais serventuários da saúde, diante dos diversos entendimentos manifestados pelos magistrados em âmbito nacional. Afinal, a questão não conta com respaldo legal expresso como ocorre com os abortos necessário e humanitário ou sentimental.

Até então, todas as gestantes de fetos anencéfalos, que queiram interromper a gravidez, necessitam recorrer ao Poder Judiciário para obter respectiva autorização. Diante, porém, dessas opiniões divergentes, não têm qualquer garantia de êxito da sua escolha, o que as coloca à mercê das opiniões e paixões de juízes e promotores de justiça.

Até o presente momento, não há uma decisão definitiva quanto ao mérito da questão. Na época da impetração da ação, apenas a decisão monocrática do Ministro Marco Aurélio, em sede liminar, tornou permissiva a interrupção da gestação nesses casos. Todavia, quatro meses após foi cassada pelo próprio STF, voltando a discussão à estaca zero.

Deste modo, temos como objetivo procurar auxiliar na interpretação das normas existentes, buscando uma solução laica e eficaz ao problema analisado, tendo em vista a falta de unanimidade nos entendimentos, o que leva a uma grande insegurança jurídica.

Antes de iniciarmos nosso trabalho, porém, precisamos esclarecer duas opções terminológicas feitas.

A primeira delas diz respeito ao uso da expressão interrupção terapêutica de gestação, ao invés do termo aborto. Assim se justifica porque o termo aborto define um crime e essa nem sempre nos parece ser a real natureza da opção e conduta materna na situação de anencefalia fetal (apesar de alguma doutrina defini-la como um tipo de aborto3). Interrupção terapêutica de gestação abrange os casos de intervenções ocorridas em homenagem à saúde materna, isto é, quando o que se visa resguardar é o bem estar da gestante, sua saúde física e psíquica, sua vida. Page 123

A segunda opção terminológica atine ao termo feto para se referir às diferentes fases da formação humana intra-uterina. Isto é, feto será palavra usada para aludirmos ao ser concebido, em gestação, independente do período em que esta se encontre.

2 Do direito à vida
2. 1 Conceito de vida humana

Várias são as definições apresentadas para a palavra vida. No dicionário Aurélio (FERREIRA, 2000, p. 710) podemos vislumbrar diversas definições diferentes:

vida sf. 1. Conjunto de propriedades e qualidades graças às quais animais e plantas se mantêm em contínua atividade; existência. 2. A vida humana. 3. O espaço de tempo que vai do nascimento à morte; existência. 4. Um dado período da vida. 5. Biografia. 6. Modo de viver. 7. Força, vitalidade. (grifo no original)

Paralelo às diversificações de conceituação do que seja vida, está o impasse sobre quando ela começa, e assim, a partir de quando ela é tutelada e protegida pelo Direito.

Inicialmente, antes de adentrarmos nas diversas definições de qual é o marco inicial da vida, partiremos do pressuposto geral do que ela é trazido por Luigino Coletti (2003, disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3781). Segundo o autor a vida é um processo biológico, isto é, uma sucessão de fases entre a fecundação dos gametas masculino e feminino e a morte do indivíduo.

Jose Afonso da Silva (2003, p. 196), reforça a ideia:

Vida, no texto constitucional (art. 5º, caput), não será considerado apenas no seu sentido biológico de incessante auto-atividade funcional, peculiar a matéria orgânica, mas na sua acepção biográfica mais compreensiva. (...) É mais um processo (processo vital), que se instaura com a concepção (ou germinação vegetal), transforma-se, progride, mantendo sua identidade, até que muda de qualidade, deixando, então, de ser vida para ser morte. (grifo no original)

Especificamente, podemos citar cerca de quatro correntes (que se confundem com o que denominamos fases da vida) que tentam definir o início da vida humana, as quais serão analisadas no próximo tópico. Page 124

2. 2 Teorias explicativas do início da vida humana
2.2. 1 Teoria conceptualista

Para a teoria conceptualista a vida inicia-se com a fecundação. Esta é a visão que no meio científico é denominada genética (MUTO, 2005, p. 59), que assegura haver vida...

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