Os Bancos de Dados de Crédito e os Direitos dos Consumidores: A Realidade na Alemanha e no Brasil

AutorAlexandre Torres Petry - Dominik Manuel Bouza Da Costa
CargoEspecialista em Direito do Consumidor e Direitos Fundamentais pela UFRGS - Assessor Jurídico (Germany)
Páginas33-86

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1. Introdução

O consumo e o crédito têm sido temas que envolvem a pauta de todos os países, seja na área econômica ou jurídica. Em tempos de crise, o assunto ganha ainda mais notoriedade, icando evidente sua importância. Porém, entre o crédito e o consumo, geralmente existe a igura do banco de dados, que, numa forma inicial, pode-se dizer que é o órgão que coleta e armazena dados para futura avaliação de crédito.

Indubitavelmente, este banco de dados adquire relevância, sendo para o setor inanceiro o órgão que permite fazer a avaliação de risco dos negócios de crédito. Para o consumidor, ao contrário, ter uma avaliação negativa perante os bancos de dados é um problema, pois o impede de fazer vários atos de comércio. Além disso, muitos são os transtornos que surgem dessa tumultuada relação entre bancos de dados e consumidores, sendo que estes últimos podem sofrer danos em razão do uso indevido de seus dados.

Atentos a essa problemática, pretende-se com o presente estudo analisar a questão do crédito e como ele é "aprovado" aos consumidores pelos bancos de dados de proteção de crédito, e também entender como funcionam estes bancos de dados, apontando suas falhas e fazendo as correspondentes críticas, para, ao final, apontar soluções e conclusões que possam ajudar com a evolução neste campo, paciicando-se as relações de consumo.

Num primeiro momento, abordar-se-á a situação na Alemanha, percorrendo a legislação vigente, avaliando a estrutura do principal órgão alemão de banco de dados, veriicando seu funcionamento e como se dá a relação com o consumidor alemão e os benefícios e prejuízos que pode trazer ao sistema de uma forma geral.

Após, será feita a análise da questão a partir da realidade brasileira. Enfrentar-se-á a problemática do crédito no Brasil, que costuma ser irresponsável, fazendo surgir o recente fenômeno do superendividamento, grave problema no Brasil e que ameaça, inclusive, o seu desenvolvimento. Concomitante a isso, serão estudados os bancos de dados de créditos "negativos", mais comuns e difundidos na sociedade, e os "positivos", novidade que surge como alternativa a ser testada.

Na conclusão, será apresentado o comparativo entre as duas realidades, suas divergências e pontos de simetria. Deste luxo de informações e avaliações recíprocas, pretende-se obter avanços que contribuam com o desenvolvimento da matéria.

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2. Os bancos de dados na Alemanha
2.1. Noções introdutórias sobre a realidade alemã

Em primeiro lugar há que esclarecer o que se entende por "bancos de dados sobre a credibilidade de consumidores". Só depois poderá ocorrer uma análise jurídica fundamentada.

Refere-se nesse contexto às chamadas agências de obtenção de dados sobre consumidores, as quais podem ser deinidas da seguinte maneira: trata-se, fundamentalmente, de uma empresa que, independentemente da existência de uma procura concreta, dedica-se a coletar dados relevantes sobre a credibilidade negocial de empresas ou pessoas privadas, para que, em caso de necessidade, os possa disponibilizar, a troco de dinheiro, aos seus parceiros de negócios, com vista a uma avaliação, por parte destes, da credibilidade da empresa ou pessoa em questão1.

Como exemplo de uma agência ativa que coleta dados na Alemanha, podemos citar a Schufa Holding AG, de longe a mais dominante empresa do seu gênero a funcionar no país. Procuraremos assim apresentar a seguir, de uma forma sucinta, a organização e o modelo negocial da Schufa.

A Schufa é, desde o ano 2000, uma sociedade anônima que opera sob o nome Schufa Holding AG. Dos seus acionistas, 36,4% são bancos de crédito, 24,7% caixas de depósitos, 17,9% bancos privados, 13,1% prestadores de serviço comerciais e de outros ramos e 7,9% bancos cooperativos2.

No que diz respeito ao atual comportamento de pagamento dos consumidores e irmas, a Schufa dispõe do maior banco de dados existente na Alemanha. Assim, 614 milhões de informações cadastrais foram armazenadas sobre 66,2 milhões de pessoas3. Podemos, portanto, partir do princípio de que a Schufa recolheu informações sobre praticamente toda a população adulta alemã.

A missão e o objetivo da Schufa consistem em disponibilizar aos seus parceiros negociais informações com vista a protegê-los de eventuais perdas em negócios que possam vir a realizar com clientes privados. Simultaneamente, pretende-se também, através deste sistema, impedir um endividamento excessivo de clientes privados já anteriormente endividados.

O modelo negocial da Schufa baseia-se numa troca de informações de dados relevantes sobre a credibilidade de pessoas com os seus quase

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7.000 parceiros contratuais. Os parceiros contratuais transmitem à Schufa determinados dados referentes às ligações negociais com os seus clientes. Esses dados, por sua vez, contêm determinados dados particularmente interessantes para a avaliação da credibilidade dos consumidores.

Todos esses dados são armazenados pela Schufa para que, num passo seguinte, os possa transmitir a terceiros, possibilitando-lhes uma melhor avaliação dos riscos de um negócio de crédito que se pretenda efetuar. Para além dessa troca de dados, a Schufa completa o seu cadastro com a avaliação de registos públicos, nomeadamente dos registos de devedores.

Se o nosso objetivo consiste em analisar, sob um ponto de vista jurídico e crítico, o fenômeno dos bancos de dados privados, uma das nossas prioridades será sempre saber resistir à voragem negativa de imagens formadas e alimentadas pela opinião pública com que se confronta esse tipo de instituto. Na realidade, o autor crê que não deve haver em toda a Alemanha uma empresa cuja imagem pública seja mais negativa do que a da Schufa Holding AG.

É indiscutível que estes institutos desempenham um notável papel para o funcionamento de uma economia saudável, uma vez que reduzem substancialmente os riscos de créditos evitáveis dos institutos, empresas e da própria economia comercial relacionada com o crédito4. Em última análise, servem também ao consumidor, uma vez que lhe permitem recorrer aos créditos de uma forma rápida e pouco burocrática. Por outro lado, este sistema também acaba por inluenciar os custos do crédito, pois devido à diminuição dos riscos, a economia de crédito se torna capaz de conceder créditos com menos custos, frequentemente mesmo sem exigir garantias5.

Não obstante, esses bancos de dados comportam para os consumidores elevados riscos. Numa época em que a credibilidade assume importância fulcral para a participação na vida econômica, corre-se o risco de que informações transmitidas à agência possam ser incorretas, de que o consumidor possa ter sido confundido com outra pessoa quando da transferência dos dados ou de que os fatores que determinam a credibilidade tenham sido armazenados há demasiado tempo6, lesando assim a mobilidade e criatividade econômica do consumidor.

No entanto, e devido ao enorme poder que esses institutos detêm na atual economia, o maior perigo, tanto para o consumidor como para o Estado de Direito, reside na possibilidade real das empresas tirarem proveito das consequências extremamente prejudiciais de uma avaliação

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negativa - que indiscutivelmente recaem sobre a pessoa em questão, no caso de uma inscrição negativa no cadastro da Schufa - para imporem as suas exigências eventualmente infundadas7.

2.2. Direitos fundamentais protegidos e a proteção garantida pelo direito constitucional

Em primeiro lugar, há que esclarecer que direitos poderão ser afetados pela coleta, armazenamento e divulgação de dados relacionados com a credibilidade.

É de supor que esse processo possa vir a afetar o direito à autodeterminação informacional, pela primeira vez mencionado pelo Tribunal Constitucional Federal alemão na sentença sobre o recenseamento da população de 19838.

O BVerfG (Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, Bundesverfassungsgericht) construiu este direito como um elemento do direito da personalidade geral, submetendo-o à proteção do art. 2, enunciado 1, com o art. 1, enunciado 1, da GG910, o que signiica que representa uma especiicidade de uma proteção da personalidade adaptada ao desenvolvimento moderno11.

Cabe-lhe proteger a liberdade individual, concedendo a cada um o direito de decidir sobre a apresentação da própria pessoa. Isso mesmo exprime o BVerfG para o direito de autodeterminação informacional através da especiicação de que o direito garante ao indivíduo a competência para "decidir ele próprio sobre a divulgação e entrega dos seus dados pessoais" 12.

Sabe-se, no entanto, que o BVerfG criou este direito como proteção contra a tendência generalizada de armazenamento de dados por parte do Estado, nomeadamente através das suas repartições públicas. A presente análise deste sistema de transferência, armazenamento e disponibilização de dados pessoais permite, no entanto, concluir que esse direito fundamental não se encontra ameaçado apenas pelo Estado armazenador de dados, mas também pelas atividades de entes privados que perseguem esses mesmos ins.

Ao contrário do Estado, que necessita sempre de um fundamento de autorização para cada intervenção num direito não garantido de forma ilimitada13...

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