Não cumulatividade do pis/pasep e da cofins: implicações da natureza jurídica do crédito fiscal no regime de apuração do IRPJ e da CSLL

AutorSolon Sehn
CargoMestre em Direito Tributário pela PUC/SP. Professor do IBET. Advogado
Páginas101-116

Page 101

1. Considerações iniciais

O presente estudo tem por objeto a análise das implicações da natureza jurídica do crédito da não cumulatividade da contribuição ao PIS/PASEP e da COFINS, disciplinadas pelas Leis n. 10.637/2002 e n. 10.833/2003, no regime de apuração do Imposto sobre a Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL).

Emboraoart. 3o, § 10,daLein. 10.833/ 2003 estabeleça que o crédito "não constitui receita bruta da pessoa jurídica", a administração fazendária restringe a aplicabilidade do dispositivo às próprias contribuições (cf. Ato Declaratório Interpretati-vo SRF n. 3/2007).1 Assim, dependendo do regime de contabilização adotado pelo contribuinte, o valor do crédito fica sujeito à incidência do IRPJ e da CSLL, gerando perdas da ordem de até 43,25%,2 que anulam parte significativa dos efeitos da não cumulatividade.

Page 102

O tema, para ser adequadamente enfrentado, demanda o estudo prévio do conteúdo jurídico do § 12 do art. 195 da Constituição Federal, dos regimes de operacio-nalização da não cumulatividade no direito comparado, do método de apuração adota-do pela legislação ordinária, bem como dos conceitos de transferência de capital e de subvenção para investimentos na legislação do imposto de renda.

2. Exegese do art 195, § 12, da Constituição Federal

A Emenda Constitucional n. 42/2003 foi demasiadamente tímida ao tratar da não cumulatividade das contribuições para a seguridade social. Perdendo excelente oportunidade para discipliná-la de forma plena, como ocorre em relação ao ICMS e ao IPI,3 o constituinte derivado limitou-se a prever que a lei definirá os setores de atividade econômica para os quais as contribuições previstas nos incisos I, b, e IV, do art. 195, serão não cumulativas (§ 12):

"Art. 195. (...).

§ 12. A lei definirá os setores de atividade econômica para os quais as contribuições incidentes na forma dos incisos I, b, e IV do caput, serão não cumulativas.

É certo que preceitos dessa natureza são dotados de eficácia mínima derrogatória, de modo que, segundo ensina a doutrina constitucionalista, revogam os atos normativos incompatíveis e vinculam o legislador infraconstitucional futuro:

"(...) as normas constitucionais sempre produzem uma 'eficácia jurídica de vinculação' (decorrente da vinculação dos poderes públicos à Constituição), e, por isso, contam com aptidão para deflagrar, pelo menos, os seguintes resultados: (i) revogam (invalidação decorrente de inconsti-tucionalidade superveniente) os atos normativos em sentido contrário; (ii) vinculam o legislador, que não pode dispor de modo oposto ao seu conteúdo (servem como parâmetro para a declaração de inconstitucio-nalidade do ato contrastante)."4

A redação do § 12 do art. 195, entretanto, limita esse efeito concretamente. Isso porque, ao autorizar a adoção da não cumulatividade de forma setorizada, a emenda facultou ao legislador infraconstitucional a escolha dos segmentos em que será aplicável. É possível, assim, sem qualquer violação da norma constitucional, afastar a não cumulatividade para um ou mais setores da economia. Ora, se o legislador pode o mais, que é excluir por completo a aplicabilidade do regime para um determinado segmento, certamente também pode o menos, apenas restringindo o alcance da não cumulatividade.5 Afinal, em matéria de competência, cui licet quod est plus, licet utique quod est mi-nus ("quem pode o mais, pode o menos").

Portanto, o primeiro aspecto a ser considerado no estudo da natureza jurídica do crédito, é que a não cumulatividade das contribuições disciplinadas pelas Leis ns. 10.637/2002 e 10.833/2003, apesar de obrigatória em relação à COFINS, está inserida na esfera de liberdade de conformação legislativa do Congresso Nacional. Este deverá definir os setores em que será aplicada e a amplitude do direito ao crédito.

3. Regimes de operacionalização da não cumulatividade

A não cumulatividade - adotada pela primeira vez na França, em 10 de abril de

Page 103

1954, com a criação da Taxe sur la Valeur Ajoutée (TVA)6 - é encontrada em mais de cento e vinte nações,7 que, por sua vez, empregam os mais diversos regimes de ope-racionalização.

Em alguns países, vigora o método de adição ou aditivo, no qual o valor agregado é apurado a partir dos gastos relativos à mão-de-obra, matérias-primas, insumos, despesas e da margem de lucro de cada operação. Estes são somados para fins de composição da base de cálculo do tributo (no método direto aditivo) ou considerados individualmente, aplicando-se a alíquota sobre cada um dos gastos em questão (método indireto aditivo).8 Em outros, emprega-se o método de subtração ou subtrativo, que pode ser do tipo "base sobre base" e "imposto sobre imposto".9 No primeiro o tributo é calculado apenas sobre o preço líquido da venda, ao passo que, no segundo, a incidência ocorre em relação à venda bruta, abatendo-se, por ocasião do pagamento, o valor do imposto devido na operação anterior.10

Também há variações no tocante à amplitude do direito ao crédito ou do regime de apropriação. Alguns ordenamentos - conhecidos como sistemas de crédito físico - permitem apenas a dedução do imposto incidente sobre as operações de aquisição de bens que integram fisicamente o produto objeto da operação seguinte. Outros - sistemas de crédito financeiro - autorizam a dedução do imposto incidente sobre a aquisição de bens de produção que não se incorporam fisicamente ao produto final, desde que necessários à sua produção, tais como os bens destinados ao ativo permanente da empresa contribuinte.11

Há ainda o imposto sobre o valor agregado do tipo produto ou produto bruto, semelhante ao regime do crédito financeiro, que se contrapõe ao do tipo renda e o do tipo consumo.12 Nestes, ao contrário do primeiro, é permitida a dedução do im-

Page 104

posto incidente sobre os bens instrumentais (necessários e imprescindíveis a produção do bem objeto da operação seguinte), com a diferença de que, enquanto no tipo consumo a dedução do imposto é imediata e integral por ocasião da aquisição, no tipo renda a dedução é limitada tempo-ralmente, na proporção do desgaste ou utilização dobem.13

A natureza jurídica do direito ao crédito não é a mesma em todos os regimes de operacionalização. Dependendo da disciplina adotada pelo legislador, pode configurar uma transferência de capital, notada-mente nos casos de concessão de crédito presumido ou setorizados. Em alguns casos, caracteriza direito de crédito do contribuinte ou, eventualmente, simples moeda escritural que, sem poder liberatório para obrigações em geral, serve apenas para fins de abatimento do valor do tributo. Também pode constituir um redutor da base de cálculo do crédito tributário, o que afeta a apuração do custo de aquisição ou o próprio valor da despesa dedutível na apuração do resultado do exercício.

Nesse contexto, portanto, o segundo fator determinante para a análise da natureza jurídica do crédito do PIS/PASEP e da COFINS é a técnica de não cumulativida-de adotada pelo legislador infraconstitu-cional. Sem a análise desta e da disciplina legal vigente, mostra-se inviável qualquer afirmação conclusiva acerca do tema, uma vez que não há um modelo predefinido pelo texto constitucional.

4. Técnica de não cumulatividade adotada pela Lei n 10.833/2003

A técnica de não cumulatividade adotada pela Lei n. 10.833/2003, de acordo com a Exposição de Motivos da Medida

Provisória n. 135/2003, corresponde ao "método indireto subtrativo",14 o que também se aplica ao PIS/PASEP. Este, segundo a doutrina majoritária, equivale ao modelo da "base sobre a base", em função da ausência de vínculo entre as entradas e saídas, ou seja, da independência entre o valor do crédito, o regime de incidência e a alíquota aplicável na operação anterior.15

Parece mais adequada, entretanto, a interpretação que identifica no regime jurídico adotado uma modelo atípico, próximo ao do tipo "imposto sobre imposto" ou "tributo sobre tributo",16 uma vez que o crédito não representa um redutor da base de cálculo, como ocorre no sistema de "base sobre a base", mas da própria obrigação tributária.

Nesse sentido, coloca-se o entendimento de Fabiana Del Padre Tomé, manifestado em estudo específico sobre o tema: "Prescreve o art. 3o, caput, das Leis n.

Page 105

10.637/2002 e n. 10.833/2003, que tais créditos serão deduzidos 'do valor apurado na forma do art. 2°' dos respectivos veículos normativos, determinando, com tal prescrição, que somente depois de apurados os valores das contribuições devidas serão descontados os créditos, correspondentes a percentuais das despesas incorridas pelo contribuinte. Eis porque entendemos não terem as comentadas legislações instituído 'redução de base de cálculo', como afirmado por Pedro Guilherme Acoorsi Lunar-delli, e sim regra que atinge o objeto do vínculo obrigacional tributário, mediante a geração de créditos a ser compensados com o débito do tributo".17

O direito ao crédito, a rigor, decorre de uma norma jurídica autônoma construída a partir dos arts. 3o e ss. das Leis ns. 10.833/2003 e 10.637/2002.18 Esta que, em seu antecedente, descreve abstratamente os eventos que geram direito ao crédito (hipóteses de creditamento) e, no consequente, uma relação jurídica na qual o contribuinte (sujeito passivo da obrigação tributária) assume a condição de sujeito ativo do direito subjetivo de abater um determinado valor (o crédito apurado no mês ou acumulado de meses anteriores) da importância devida a título de tributo.19

O montante do crédito não corresponde necessariamente ao valor do tributo devido na operação...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT