Da pessoa natural

AutorBassil Dower, Nelson Godoy
Ocupação do AutorProfessor Universitário e Advogado em São Paulo
Páginas93-107

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7. 1 Dos sujeitos de direito

Quando uma pessoa humana nasce passa a gozar de direitos e se submete a todas as obrigações previstas em lei, adquirindo, assim, a capacidade jurídica. Esta é sinônimo de personalidade e surge no momento do nascimento com vida. Um ser em formação no ventre da mulher, não tem personalidade, ou seja, não é pessoa, não é sujeito de direitos e obrigações na ordem civil.

Não somente a pessoa humana tem direitos e obrigações. Há outras pessoas denominadas por lei de pessoas jurídicas (CC-16, art. 20) que embora não sejam pessoas humanas são formadas, geralmente, por seres humanos e sujeitos de direitos e obrigações.

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A pessoa natural ou física é o indivíduo em si, o ser humano nascido com vida. A pessoa jurídica, geralmente, é constituída de seres humanos, mas é distinta de seus membros, fazendo surgir as sociedades privadas.

Dois são, portanto, os sujeitos de direitos e obrigações: 1) a pessoa natural ou física e 2) a pessoa jurídica. São duas pessoas distintas. O artigo 20 do Código Civil de 1916, mostra esta distinção com tal clareza, que não admite dúvida, controvérsia ou vacilação. Ei-lo: "As pessoas jurídicas têm existência distinta da dos seus membros".

Vejamos a situação entre um pai e um filho, duas pessoas distintas, cada uma com seu nome e patrimônio próprios. Se o filho, por exemplo, é o devedor, não pode o credor desejar receber do pai, porque o que responde pela dívida do devedor são seus bens. Os bens do pai pertencem a ele; não ao filho. Se cada pessoa tem patrimônio próprio, ipso facto, o patrimônio da pessoa jurídica não pertence aos sócios que a compõem.

A pessoa natural é criada por Deus, enquanto que a pessoa jurídica é criação do legislador.

Portanto, pessoa é o ente (físico ou jurídico) capaz de ser sujeito de direitos e obrigações.

Neste capítulo, trataremos apenas da pessoa física ou natural; posteriormente, em capítulo isolado, analisaremos a pessoa jurídica.

7. 2 Conceito de pessoa natural

Pessoa é uma derivação do prefixo per e do verbo sonare, de onde personare significa "dizer fortemente". Os atores do teatro romano, na antigüidade, usavam máscaras a fim de que a suas vozes pudessem soar mais fortemente. A máscara passou então a ser chamada de persona, denominação, mais tarde, atribuída ao indivíduo.

Pessoa natural é o ente físico, o ser humano, o ente dotado de personalidade, ou seja, aquele que tem aptidão reconhecida pela ordem jurídica, para exercer direitos e contrair obrigações. É o que se extrai da dicção textual do artigo 1.º do Código Civil, in verbis: "Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil". Este é o ponto que merece ser destacado: ser sujeito de direito, ter personalidade, é atributo absolutamente necessário para que cada qual possa movimentar a máquina judiciária em defesa de seu

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direito subjetivo, valendo-se da norma jurídica, quando for preciso. Os escravos, por exemplo, apesar de serem pessoas naturais, não possuíam esse direito (direito subjetivo), porque não eram considerados pessoas; eram tratados como coisa (res). Atualmente, como não existem escravos, qualquer indivíduo, pouco importando o sexo, a idade, a raça, a religião ou a nacionalidade, tem a faculdade de exigir determinado comportamento das outras pessoas.

Nos dias de hoje, pode-se afirmar que todo homem é sujeito de direito, ou seja, basta ter nascido com vida para ser titular de direitos: direito à vida, à herança, à propriedade... A Constituição Federal complementa: "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, ..." (art. 5º, caput).

7. 3 Início da personalidade civil

Certa vez, após curto concubinato, a mulher engravidou e, tendo necessidade de alimentos para o nascituro, propôs ação de alimentos, cumulada com investigação de paternidade e alimentos provisionais. O magistrado indeferiu a inicial de plano dada a manifesta ilegitimidade ad causam ativa, decretando a extinção do processo.

Essa tomada de posição do juiz foi porque a criança ainda não havia nascido ao tempo da propositura da ação. Veja como decidiu o Tribunal: "A ação de investigação de paternidade é privativa do filho, podendo ser promovida desde que o filho exista. Se a criança não havia nascido ao tempo da propositura da ação, a ilegitimidade ativa é manifesta" (in RT 566/54).

O direito protege o futuro ser humano (nascituro), se vivo nascer, desde o momento em que é concebido. Se nascer vivo, acompanha-o em todos os seus passos, seguindo-o em todos os momentos, mantendo-o sob sua proteção, amparando sua liberdade e sua integridade física, até a sua morte, perpetuando-o através de seus sucessores. Chama-se tutela jurídica a proteção que o Estado, através das leis jurídicas, concede às pessoas. Havendo ameaça ou violação de direito, podem nascer as ações, meios pelos quais uma pessoa exige o cumprimento do dever jurídico. Se alguém invade minha propriedade, posso exercitar o direito objetivo, ativando a lei contra o invasor através da máquina judiciária, por meio da ação adequada, expulsando o invasor.

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De acordo com o disposto no artigo 1.º do Código Civil, "toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil". Mas ela só adquire personalidade jurídica ou capacidade de direito, aquela condição legal que o capacita à faculdade dos direitos e obrigações, se nascer vivo. É o fundamento do artigo 2.º do Código Civil: "A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro". Se nasce morto, é como se nunca tivesse sido concebido, pois não há direito sem sujeito.

Se o ente nascer com vida, ainda que por alguns segundos, os interesses que a lei pôs a salvo, se transformam em direitos adquiridos, ou seja, receberá e transmitirá direitos.

Para melhor entendimento, suponhamos o falecimento de um milionário, casado recentemente pelo regime da separação total de bens, deixando pai vivo e viúva grávida.

Se o nascituro nascer morto, não adquire personalidade jurídica ou capacidade de direito e, portanto, não recebe nem transmite a herança do seu falecido pai, que ficará com o avô paterno e esposa, segundo a ordem da vocação sucessória, de acordo com o art. 1.829, que é a seguinte:

  1. em primeiro lugar, herdam os descendentes do falecido em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares58;

  2. não existindo descendentes, os sucessores serão os ascendentes, em concorrência com o cônjuge;

  3. não possuindo descendentes nem ascendentes, quem herda é o cônjuge sobrevivente;

  4. na falta dos supracitados, herdam em seguida os colaterais até o quarto grau (irmãos, tios ou primos);

  5. inexistindo os descendentes, os ascendentes, o cônjuge e os colaterais, o Poder Público é quem recolhe a herança (CC, art. 1.844).

Se o nascituro nascer vivo, receberá a herança e, se por acaso vier a falecer no segundo subseqüente, a herança passará à sua mãe.

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Esse é o principal motivo pelo qual o Direito dá proteção ao nascituro na esperança do nascimento com vida59. Não basta o nascimento. É preciso que a criança nasça com vida, nos termos da Teoria Natalista que, diga-se de passagem, foi a adotada pelo Código Civil.

Legislação há, como a espanhola, que exige, além do nascimento com vida, que também sobreviva 24 horas para ser sujeito de direitos e obrigações. A mexicana, considera o surgimento da capacidade jurídica por ocasião da concepção. A francesa exige que o recém-nascido tenha viabilidade de manterse com vida. Se a criança vier a falecer logo em seguida, ou se for constatada a inviabilidade de sobrevivência, considera-se inexistente a sua capacidade.

O nosso Direito desprezou, portanto, a doutrina da concepção como forma de aquisição da capacidade jurídica, bem como as questões relativas à figura humana e à viabilidade. Apenas determinou para o nascituro uma condição suspensiva de adquirir direitos, caso venha a nascer com vida.

Poderá haver dúvida quanto ao recém-nascido ter ou não vivido por um instante. Para tirar essa dúvida, o juiz nomeia um perito e as partes interessadas, seus respectivos assistentes técnicos. Aí, usa-se o processo da "docimásia respiratória ou hidrostática", que consiste em colocar os pulmões do falecido num recipiente com água à temperatura de 15º a 20ºC. Se os pulmões flutuarem, é porque respirou e nasceu com vida. O contrário, é prova de que nasceu sem vida. Própria a consulta a Flamínio Fávero: "É, pois, razoável no dizer de Galeno, que "viver é respirar" e, por extensão com Gaspar, "viver é respirar, não ter respirado é não ter vivido".60

Se a dúvida continuar, os peritos recorrem à docimásia gastrointestinal, que consiste em colocar o estômago e o intestino, previamente ligados, num recipiente com água. Se flutuarem concluem que respirou e, portanto, nasceu vivo.

O Direito objetivo adotou a doutrina do nascimento com vida como marco inicial da personalidade civil do homem, posição da maioria dos Códigos modernos, e a hermenêutica da segunda parte do artigo 2.º do CC permite entender que o nascituro tem direitos - não simples expectativa. "A personalidade civil da pessoa...

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