Dos danos morais, sofridos pelos cônjuges, na separação e no divórcio

AutorFernanda Misevicius Soares
CargoBacharel em Direito pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo; Sócia do Misevicius Prado Advogados Associados; Advogada
Páginas188-228

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Introdução

A cada dia que passa, as conquistas humanas vêem sendo mais comuns. O processo de modernização vem se intensificando e ultrapassando limites que acreditávamos intransponíveis. Não há dúvidas de que o homem se supera a cada novo instante.

Contudo, tal progresso não nos trouxe apenas benefícios. Trouxe-nos também influências negativas, sendo talvez a atual falência do organismo familiar o maior exemplo. Não há dúvidas de que a família moderna está em crise.

As novas necessidades, os novos interesses, o moderno modo de vida, bem como os meios de integração mundial auxiliaram e muito a desagregação dos membros formadores do ente familiar. Apesar de possuírem o mesmo domicílio, pais e filhos, marido e mulher estão cada vez mais distantes da finalidade da vida em comum: ajuda recíproca, compreensão, apoio e harmonia. É a contraprestação imposta pelo ritmo da vida moderna.

Tal constatação é, ou deveria ser, motivo de preocupação social, haja vista ser a família o primeiro e mais importante educador. É no seio familiar que o indivíduo percebe a essencialidade do próximo em sua vida e se dá conta do valor que este possui. Neste momento, ele aprende a essência da vida em conjunto: respeito e dedicação para com os demais. Daí infere-se a necessidade de proteger o organismo familiar1.

Por outro lado, quando um de seus componentes culposamente menospreza o fundamento da constituição familiar e desdenha a afeição dos demais está presente o dano moral. Isso porque, a vontade de se renegar o valor pessoal da cada indivíduo atinge, de plano, os direitos da personalidade, principalmente o direito à integridade psíquica. Em outras palavras, o sofrimento exacerbado, ou seja, que ultrapassa os limites do tolerável, origina, sem sombra de dúvida, o dano moral.

Sendo assim, é dever do Estado salvaguardar os direitos da personalidade, bem como o organismo familiar, a fim de cumprir um de seus objetivos fundamentais, qual seja a formação de uma sociedade justa, promovendo o bem de todos2.

Educação e conscientização são, inquestionavelmente, o melhor caminho para a efetiva realização de tais metas. Contudo, a nós, estudiosos e aplicadores do Direito, fica a incumbência de aplicar os preceitos legais à vida cotidiana. Esta é a nossa parte.

Dessa forma, o presente trabalho objetiva demonstrar a possibilidade de reparação dos danos morais, sofridos pelos cônjuges, na separação e no divórcio, tendo como fundamento de validade a proteção da família e dos direitos individuais.

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1. Casamento
1.1. Conceito

Conceituar casamento não é tarefa fácil. Isso porque, em sendo o casamento, primeiramente, fato social, é ele elemento instável, dependente do espaço geográfico ou do lapso temporal em que estiver inserido. “As definições de casamento têm natureza incerta e temporária de todas as coisas sociais. O seu fim deve ser o de caracterizar o de seu tempo, e nada mais”.3 Assim, no presente estudo, voltaremos nossas atenções ao casamento hodierno e característico da cultura brasileira.

Parte expressiva da nossa doutrina jusfamiliar define o casamento como sendo a união entre duas pessoas de sexos distintos, em conformidade com a lei, que visa o auxílio mútuo, a procriação e o cuidado e educação da prole. Tal conceito, apesar da autoridade dos que o defendem4, é por demais simplista, haja vista não abarcar o aspecto psico-social do instituto em questão.

Por esta razão, preferimos a conceituação do ilustre professor Caio Mário da Silva Pereira, que diz ser o casamento “a união entre duas pessoas de sexos diferentes, realizando uma integração físico-psíquica permanente”.(Grifou-se)5 Não há dúvida de que o casamento acarreta aos que nele se vinculam relações de ordem psíquica, física, moral e social. Corroborando tal idéia, Wetter disse ser o casamento “a união do homem e da mulher com o fim de criar uma comunidade de existência”.6

Este é, a nosso ver, o conceito que melhor se ajusta à realidade social e jurídica7 brasileira, uma vez que não limita o casamento à legitimação das relações sexuais ou aos interesses patrimoniais. Tal definição amplia a noção de casamento, demonstrando o relevo das relações sentimentais, origem deste.

1.2. Natureza jurídica

Muito se discute a respeito da natureza jurídica do casamento. Uns afirmam ser ela contratual (teoria contratualista), outros institucional (teoria institucionalista), havendo ainda aqueles que dizem ser o casamento contrato e instituição (teoria mista).

O posicionamento conforme uma dessas teorias exerce influência sobre os princípios que devem informar a reparação de danos, inclusive morais, na separação judicial e no divórcio, como veremos mais adiante.

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A noção contratualista do casamento teve origem no Direito Canônico, no qual o matrimônio era um sacramento, bem como um contrato decorrente da natureza humana.

Esta concepção prioriza a manifestação de vontade dos nubentes, elevando-a a pressuposto essencial para a existência do casamento e deixa a intervenção do sacerdote, no casamento religioso, ou a intervenção estatal, no casamento laico, em posição secundária. Assim, afirma-se que o casamento é um contrato civil, à medida que ele ultima-se e aperfeiçoa-se unicamente por meio do consentimento recíproco dos nubentes. Entretanto, diz-se ser o matrimônio um contrato civil sui generis, especial de Direito de Família, haja vista que, diante de suas particularidades, nele não se aplicam os dispositivos legais próprios das relações de direito patrimonial.

Na teoria institucionalista o casamento é tido como uma instituição social. Nela, a intervenção estatal é fator relevante na constituição e regramento do matrimônio. Os nubentes, ao se casarem, devem expressar livremente sua vontade. Entretanto, essa manifestação diz respeito tão somente ao ato de casar-se, já que tal liberdade não abrange as normas, os efeitos e a forma do casamento. O matrimônio, aqui compreendido, acarreta aos contraentes a adesão ao estatuto legal, impondo-lhes regras cogentes e inalteráveis. “O estado matrimonial é, portanto, um estatuto imperativo preestabelecido, ao qual os nubentes aderem”.8

A teoria mista divide o casamento em dois momentos, atribuindo a cada um deles natureza jurídica diversa. Destarte, a formação do casamento, denominada como casamento-ato, possui natureza contratual, por originar-se de acordo de vontades. Já o momento que compreende a duração e a dissolução do casamento, denominada casamento-estado, têm natureza institucional, por predominar a interferência do poder público e a inalterabilidade de seus efeitos.

Tendo em vista o grande valor do casamento na constituição da sociedade civilizada, filiamo-nos à teoria institucionalista. A fim de justificar nossa opinião é preciso demonstrar, como fez Maria Helena Diniz, as diferenças existentes entre contrato e instituição: a) no contrato os interesses dos contraentes são divergentes (um quer o menor preço e o outro o mais alto); no casamento, os interesses são coincidentes; b) o contrato produz efeitos somente entre as partes; a instituição, inclusive o casamento, impõe seus efeitos também aos terceiros; c) no contrato, os contraentes têm liberdade para contratar e definir regras; no casamento, os cônjuges possuem liberdade restrita, já que podem disciplinar somente questões atinentes às relações patrimoniais e desde que não contravenha disposição absoluta de lei; d) o contrato desata-se pelo distrato; o casamento desata-se pelos modos definidos em lei, quais sejam nulidade, anulabilidade, falecimento, separação judicial e divórcio.9

Ante essas considerações, conclui-se que a idéia de casamento é contrária à de contrato. Considerá-lo como instituidor de...

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