O debate sobre a separação de poderes no pensamento constitucional brasileiro

AutorCynara Monteiro Mariano
CargoDoutoranda em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR), Mestre em
1 Introdução

O tema acerca da separação de poderes ainda é corrente no debate político dos dias atuais. No caso brasileiro, o assunto tem vindo à tona com mais vigor em razão da crescente crise institucional entre os poderes republicanos, estabelecida notadamente pela ingerência do Judiciário e do Executivo nas esferas de competências típicas do Legislativo.

Esse fenômeno, contudo, pertence à tradição do pensamento constitucional brasileiro que, profundamente inspirado no presidencialismo norte-americano, sedimentou as bases constitucionais para o exercício de um executivo forte (e seguidas vezes, autoritário) e um judiciário ativista, no que resultou o enfraquecimento do legislativo, que sequer chegou a operar em algumas fases da República presidencial.

O presente estudo, por seu turno, sem pretender esgotar o objeto da discussão, buscará investigar as origens históricas, políticas e ideológicas que permearam os debates sobre o princípio da separação de poderes no Brasil, bem como demonstrar as diferentes interpretações que foram conferidas à clássica teoria de Montesquieu pelos sistemas jurídicos americano e europeu.

Por estar indissociada dessas reflexões, será também analisada a experiência do Poder Moderador entre nós, com a adoção da teoria tetrapartida dos poderes de Benjamin Constant, introduzida na Constituição imperial de 1824 de forma pioneira, até então, no contexto dos diplomas constitucionais do mundo moderno.

2 Separação de poderes no pensamento constitucional brasileiro e as divergentes interpretações à teoria clássica de Montesquieu

A Constituição do Império estabeleceu quatro poderes: o Legislativo, o Executivo, o Judiciário e o Moderador, competindo a este último velar sobre a harmonia e independência dos poderes (arts. 10 e 98). Dispunha a de 1891, no art. 15, que “são órgãos da soberania nacional os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, harmônicos e independentes entre si”. Declarava a de 1934: “são órgãos da soberania nacional, dentro dos limites constitucionais, os Poderes Legislativos, Executivo e Judiciário, independentes e coordenados entre si” (art. 3.°).

Desse modo, o princípio da separação de poderes foi introduzido na realidade brasileira por força da Constituição imperial e por obra da influência de Montesquieu e Benjamin Constant no pensamento constitucional brasileiro. Mas interessa, sobretudo, notar que as reflexões brasileiras, quanto à necessidade da limitação e contenção do poder, lograram êxito em traduzir com fidelidade o conteúdo da formulação de Montesquieu.

José Antonio Pimenta Bueno, o primeiro pensador liberal do Império, ao comentar a Constituição imperial e a separação dos poderes, afirmou que

[...] essa divisão é quem verdadeiramente distingue e classifica as diversas formas dos governos, quem estrema os que são absolutos dos que são livres, quem enfim opera a distinção real dos diferentes interesses e serviços da sociedade. Sem ela o despotismo necessariamente deverá prevalecer, pois que para o poder não abusar é preciso que seja dividido e limitado, é preciso que o poder contenha o poder. (BUENO, 1958, p.31-32).

Assim, pode-se constatar que a Constituição imperial trouxe à realidade brasileira uma acertada exegese da teoria de Montesquieu.

Montesquieu, como já o disseram Auguste Comte e Durkheim, pode ser considerado como o fundador da ciência política, entretanto, a sua célebre teoria da separação dos poderes não possui o alcance que tradicionalmente se lhe foi empregado, a significar uma racional delimitação das funções estatais, pois, em verdade, tratou-se de uma teoria que teve como principal formulação estabelecer ferramentas de moderação do exercício do poder do monarca, por meio do estabelecimento de técnicas de combinação e fusão de poderes entre as funções estatais (ALTHUSSER, 1959, p. 11, 102-105).

O ponto central de sua teoria, portanto, foi o estabelecimento de limites ao poder. Um sistema adicional de freios e contrapesos recíprocos, de modo que o poder possa deter o poder, no que é possível constatar a fidedignidade com que essa concepção foi traduzida na Constituição imperial brasileira2.

A moderação idealizada por Montesquieu não significou, portanto, um postulado de respeito à legalidade, mas uma limitação da investida de uma função pelo poder conferido às outras. E isto para resguardar o poder do monarca e da nobreza contra possíveis insurreições das classes populares, razão porque Louis Althusser o definia como “le champion de la noblesse et de la féodalité” (ALTHUSSER, 1959, p. 107).

O certo é que sua teoria influenciou profundamente os sistemas jurídicos, tanto o americano quanto o europeu e, como visto, igualmente o brasileiro. Mas as suas concepções foram interpretadas e incorporadas de forma diametralmente oposta pelos Estados Unidos da América e pela Europa ocidental, no que resultou, como se conhece, em dois modelos paradigmáticos de organização administrativa e de jurisdição constitucional.

Com efeito, a distinção entre a sistemática dos dois modelos de jurisdição constitucional, deve-se às diferentes interpretações conferidas pelos revolucionários americanos e franceses à teoria da separação de poderes de Montesquieu, em função das condições históricas e políticas, produzindo efeitos radicalmente opostos na Constituição dos Estados Unidos e na Europa continental, pois enquanto que nesta, a formulação de Montesquieu elevou o Legislativo à condição de poder soberano, na América do Norte a mesma concepção resultou no fortalecimento do Executivo e do Judiciário3.

Na Europa, a burguesia revolucionária, desconfiada dos parlements (tribunais do antigo regime), em virtude do seu papel ao mesmo tempo conservador e servil ao soberano, subtraiu do Judiciário idealizado por Montesquieu no L’Espirit des Lois, um importante aspecto, que era a competência para exercitar o controle de compatibilidade entre legislação e as “leis fundamentais”, ou seja, a competência do Judiciário para exercer o que se conhece modernamente por controle da constitucionalidade das leis (ROCHA, 1995, p. 88-89).

Nos Estados Unidos, ao revés, os revolucionários americanos, hostis à idéia de submissão às arbitrárias leis que a Assembléia inglesa impunha para as colônias americanas, trataram de controlar o nascente legislativo estadunidense, criando, desse modo, a fiscalização exercida sobre ele pelo Judiciário, para evitar na Federação americana a instalação da ditadura legislativa que imaginavam existir na Inglaterra, sendo estas, pois, as razões históricas da supremacia do Legislativo na Europa continental e da supremacia do Judiciário nos Estados Unidos da América (ROCHA, 1995, p. 91).

Outro aspecto que contribuiu para a supremacia do Judiciário no modelo americano, além da influência de Montesquieu, foi a doutrina inglesa do “judicial review”, segundo a qual há um direito fundamental de origem judicial (commom law) 4, superior ao direito parlamentar, ou seja, ao “statute law”.

Portanto, o receio da “ditadura” do legislativo, de um lado, e a posição de supremacia do juiz, advinda da doutrina jurídica do commom law, de outro lado, foram os fatores determinantes para a formação do sistema judicial americano, sistema esse que, como visto, não é fruto de uma reflexão, isto é, de uma decisão deliberada sobre a conveniência desse modelo, mas a conseqüência natural, espontânea, da prática multissecular de seus juízes que já emergem na história como órgãos de defesa da Constituição e controle do Legislativo (ROCHA, 1995, p. 92).

De fato, quando as comunidades inglesas independentes, na América do Norte, elaboraram sua Constituição, no final do século XVIII, era natural que buscassem na história da pátria de origem a principal inspiração. As instituições inglesas foram, portanto, a matéria prima dos seus constituintes.

Cumpre registrar, ainda, que os Estados Unidos eram um terreno fértil para a influência da tripartição de poderes na versão de Montesquieu, uma vez que, como nação que se antecipou ao Poder e ao Estado, era ambiente propício ao florescimento das teorias contratualistas do liberalismo, às quais se ajusta perfeitamente a teoria de Montesquieu. Ademais, o gênio criativo do direito americano muito contribuiu para a evolução e expansão da fórmula original, como o atesta a teoria dos cheks and balances da Constituição.

Já os revolucionários franceses imprimiram uma interpretação inteiramente distinta dos americanos acerca da doutrina de Montesquieu, consistindo, essencialmente, na subtração ao Poder Judiciário da competência, que antes detinha no Antigo Regime, de controlar a compatibilidade entre a legislação e as “leis fundamentais”, pelo que a incompetência do Judiciário para controlar a constitucionalidade das leis, na Europa continental, teria sua origem mais remota na maneira como a burguesia francesa de 1789 interpretou a doutrina de Montesquieu.

Para os revolucionários franceses, e de acordo com Montesquieu, o Judiciário não é considerado propriamente um poder. Os poderes são apenas dois, o Executivo e o Legislativo, mas as funções são três, tal como o foram definidas pelo Barão: “le roi, la chambre haute et la chambre...

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