Delírio no Cabaret do tempo

AutorGeorge Luiz França
Páginas272-298
Em percurso – Delírios no Cabaret do tempo – George França Boletim de Pesquisa NELIC v. 9, nº 14. 2009.2
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Às portas do cabaré, programa em mãos, sinto-me
premido ou como que compelido por questões que elejo como
minhas contemporâneas, mas que me precedem e me sucedem.
Quem sabe as deseje; quem sabe elas me desejem, me suguem
em torvelinho, torturem-me ao ponto de preferir não, à moda do
Bartleby de Melville. Num conjunto disperso do que não sei
como chamar, já que abdico de antemão a toda questão de
gênero, de categoria, de classe, de taxonomia, de hierarquia,
defronto-me com possibilidades de mitologias. Desfilam aos
meus olhos mitos disseminados, desconfigurados, agônicos, que
se recusam a explicar. Os enunciadores, um conjunto de
desconjuntados, equivocamente se esbarram: são todos sem-
família. Talvez, com Bataille, paradoxalmente se possa dizer que
formam a família dos sem-família. Ou então, são apenas um
conjunto aleatório e dessemelhante arrolado, convocado e
instaurado por um sujeito que devém e que se defronta com um
Le réel ne peut s’exprimer que par l’absurde.
(Paul Valéry)
Quando estou falando sobre o tempo
eu sei sobre o que estou falando.
(Kurt Schwitters)
Yo me sucedo a mi mismo.
(Belardo, Las máscaras de Belardo, Lope de Vega)
Em percurso – Delírios no Cabaret do tempo – George França Boletim de Pesquisa NELIC v. 9, nº 14. 2009.2
enigma que de antemão abdicou de resolver, mas, por puro
gozo ou afrontamento do absurdo da irrealidade cotidiana,
confronta. Como pensar os singulares? Como pensar os
potencializadores, na linguagem, de uma liberdade ficcional,
apenas possível porque ficção radicada e radicalizada dentro de
outras tantas? Para o palco, numa fila que não bem se organiza:
Alfred Jarry, Oswald de Andrade, Verônica Stigger. Outros
tantos possíveis, mas, eleitos, os três. Em cena, em conjunto, a
peça: Stigger devolvendo a Oswald seu mais histriônico lado
Jarry, seqüestrado pela leitura modernista de tradição
autonômica, pintando as cores do palhaço que mima uma cena
na qual não acredita.
Em termos da leitura autonomista, pensemos, por
exemplo, no que faz Mário da Silva Brito com Memórias
sentimentais de João Miramar e Serafim Ponte Grande: arma-
lhes uma linha de débito e de evolução estilística (focando-se,
pois, na forma em seu problema evolutivo) que desembocaria
em Macunaíma, em O anjo, de Jorge de Lima, seguindo para
Perto do coração selvagem de Clarice Lispector e Grande
sertão: veredas, de Guimarães Rosa1, acabando por conformar
1 BRITO, Mário da Silva, apud CAMPOS, Haroldo de. Miramar na mira. In.:
ANDRADE, Oswald de. Obras completas II: Memórias sentimentais de João
novamente uma visão linear e homogeneizadora do que seria
um processo na literatura iniciado pela vanguarda. Talvez não
pudesse ser diferente para uma História do modernismo
brasileiro, pensada em termos de uma escatologia não-
corpórea, como movimento e como vanguarda (a qual não se
exime, nesse aspecto, de uma ligação com a religião, como diria
Compagnon2) que, em uma de suas vertentes, tornou-se
institucional. Antonio Candido, por sua vez, prima não só pela
questão estilística, mas também pelo viés da sátira social que
encontra no Miramar, focando o vazio estéril da burguesia que
ali estaria “kodakado” em linguagem “sintética e fulgurante,
cheia de soldas arrojadas, de uma concisão lapidar”3,
Miramar/Serafim Ponte Grande. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978,
p. xv,
2 Penso, aqui, nas considerações sobre as vanguardas e as narrativas
ortodoxas por estas gestadas como uma religião do futuro, enunciadas em
COMPAGNON, Antoine. Os cinco paradoxos da modernidade. Trad. Cleonice
Mourão et al. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1996. “A visão progressista
leva, pois, a escrever a história dos vencedores: a da tradição moderna como
traição moderna. [...] a narrativa que concebe a modernidade como um
processo histórico contínuo desconhece o essencial de uma modernidade, ou
seja, aquilo que não leva a nada.” (p.58)
3 CANDIDO, Antonio, apud CAMPOS, Haroldo de, op. cit., p. xxix. É no
mínimo interessante que, em sua apreciação do Miramar, Haroldo faça várias
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