Democracia, princípios democráticos e legitimidade: novos desafios na vivência democrática

AutorAntonio Celso Baeta Minhoto
CargoProfessor Titular de Direito Público da Universidade Municipal de São Caetano do Sul e Doutorando em Direito Público pela Instituição Toledo de Ensino, Bauru; Advogado
Páginas38-67

Page 38

1. Introdução e origens da democracia moderna

Há termos cujo emprego nos mais variados discursos gera uma notável e inegável legitimação de seu conteúdo. Novidade alguma há em tal constatação, sendo fato notório que a própria Revolução Francesa lançou mão de tal expediente, marcando seu surgimento, mas principalmente a manutenção de seus propósitos através da tríade liberdade, igualdade e fraternidade.

O movimento revolucionário francês - e o tempo, que cuidou de mostrar em detalhes - não estava de fato, concretamente, efetivamente, calçado em tais ideais, mas eles eram necessários ao impulso, ao apoio, ao suporte, à legitimação, notadamente aquela advinda da população, a esse mesmo movimento. O terror que se seguiu à irrupção em si do movimento popular francês, estigmatizado pela queda da Bastilha, pouca relação guardou com seus ideais iniciais, mas estes já haviam cumprido seu papel referentemente ao processo de aglutinação, sedimentação e fortalecimento desse mesmo movimento tomado em si mesmo.

O fato é que o grande protagonista desta mesma revolução, a burguesia, valeu-se de tais palavras de ordem para dar lastro a seus próprios objetivosPage 39que, conquanto por vezes, distanciados em conteúdo ou forma destes mesmos ideais revolucionários – o que ficou claro nos anos que se seguiram a 1789 – tiveram como que um processo de adesão entre estes e seus objetivos reais, algo buscado de modo deliberado.

Mencionamos o raciocínio acima não para que comentemos sobre a Revolução Francesa, a burguesia, a fraternidade, a igualdade ou a liberdade, mas para que possamos introduzir o que se nos afigura uma idéia tão ou mais forte que as pilastras ideológicas da revolução em foco: a democracia.

Dificilmente se pode, atualmente, ler um jornal, uma revista, um no-ticiário televisivo ou mesmo um estudo ou texto qualquer cujo fundo seja de algum modo ligado a uma análise da sociedade, da política e do Estado, e ali não encontremos pelo menos a menção ao termo Democracia. É verdadeiramente algo unânime, termo sempre integrante dos mais variados discursos, algo que compõe o chamado think tank (caixa de idéias) dos mais variados matizes ideológicos. Numa curta expressão: não se encontra hoje quem possa ser de algum modo contrário à Democracia. Mais do que isso, simplesmente ousar a adoção dessa postura é algo, em si mesmo, considerado descabido e sem sentido.

Ainda assim, já há vozes de peso postando-se de modo crítico, algumas em tom bastante crítico, em face da Democracia. Procuraremos analisar tais aspectos mais à frente, neste mesmo capítulo. Antes, porém, iremos traçar uma visão introdutória e mais geral sobre a Democracia, especialmente sobre a inserção dos princípios democráticos nas constituições ocidentais, com destaque para aquelas advindas do final do século XVIII, princípios do século XIX até nossos dias.

2. Democracia moderna: aspectos relevantes

Antes, porém, de ingressarmos neste campo de análise crítica, ou com uma carga crítica mais pronunciada, vejamos algumas características não só da democracia em si, mas também dos chamados princípios democráticos presentes nas constituições atuais, como é o caso, inclusive, do Brasil.

É de vulgar conhecimento que a noção ou idéia da Democracia surgiu na Grécia antiga e significa literalmente governo (ou poder) do povo. Na acepção clássica ou antiga, a Democracia era de um tipo direto, ou seja, o próprio povo exercia o poder político, deliberando sobre seus problemas e encontrando, por si mesmo, as soluções cabíveis.

Page 40

Um dos mais respeitados e notórios estudiosos antigos da Democracia foi Aristóteles que acreditava como sendo um princípio fundamental da Democracia a Liberdade. Todavia, o mestre grego em questão era também um notório opositor dos ideais democráticos, preferindo um governo monárquico ou mesmo um sistema aristocrático, com um governo de poucos e bem preparados homens.

Na verdade, Aristóteles exibe em suas posições a influência de seu mes-tre, Platão – e este, por seu turno, igualmente espelhava a visão de seu mestre, Sócrates, que chegou a ser proibido de falar em público por dez anos por se opor à Democracia – que não via a Democracia com bons olhos, alegando que esta seria a ante-sala da oclocracia, ou seja, um governo dominado “por esse monstro chamado multidão”, alertando ainda que a Democracia não consegue, só por si, impedir o surgimento da tirania. Aristóteles endossava seu mestre neste particular:

Na democracia, tendo o povo sacudido o jugo da lei, quer governar só e se torna déspota. Seu governo não difere em nada da tirania. Os bajuladores são honrados, os homens de bem sujeitados (...) nesse caos tudo é governado pelos decretos do dia, não sendo então nem universal e nem perpétua nenhuma medida1.

Já na idade moderna e com o advento do liberalismo e do Estado Liberal, porém, ficou claro que uma ideologia deveria tomar espaço e corpo para que o modo de produção econômico a ser então prestigiado, o capita- lismo, fosse patrocinado e suportado por essa mesma ideologia.

Assim, ao lado dos itens notoriamente conhecidos como respeito aos contratos, à propriedade, ao individualismo e à liberdade, havia que se adotar um novo item, justamente um que trouxesse consigo um caráter de participação popular, algo fundamental para o projeto liberal que precisava do apoio popular, como as ideologias em geral assim o necessitam.

Nesse ambiente é que se insere a idéia de democracia. Porém, e aí reside um ponto fulcral do tema, isso se dá já sem qualquer ligação com a idéia antiga da Democracia, com a idéia clássica de Demo- cracia, de um governo do povo de fato, uma Democracia Direta. Agora,Page 41esse modelo não interessa aos propósitos do modelo liberal, mas apenas a idéia inicial de participação popular que, todavia, deverá ser exercida pelos representantes do povo, por intermédio de um processo formal e lógico, a exemplo do que havia sido feito com o próprio Direito.

Na verdade, a idéia em si de Democracia foi adotada como forma de legitimação de um outro corpo ideológico, afeto ao liberalismo e ao capita- lismo e, como bem lembra Paulo Bonavides, “a idéia essencial do liberalismo não é a presença do elemento popular na formação da vontade estatal, nem tampouco a teoria igualitária de que todos têm direito iguais a essa participação ou que a liberdade é formalmente esse direito”2.

Prosseguindo, se falamos em Democracia e Constituição, como é o caso, deveremos falar, forçosamente, em Princípios Democráticos, e isso atrai, já de plano, uma certa amplidão analítica o que, assim, será aqui refletido, tanto quanto possível, numa abordagem mais geral. Com efeito, a própria noção de uma constituição numa acepção mais formal ou pelo menos mais formalizada, entendendo-se aí um texto escrito, só teve sua real razão de ser a partir da valorização dos chamados princípios democráticos.

Aqui, portanto, iremos focar nosso estudo na Democracia Moderna e, ainda mais, igualmente na inserção de tal idéia, de tal conceito, no bojo ou no seio do Estado Moderno, vindo a formar o Estado Democrático de Direito.

Destarte, a partir da Constituição dos EUA em 1787 e, mais ainda, com a Revolução Francesa de 1789 e a Declaração de Direitos de caráter constitucional que este movimento trouxe consigo3, vemos tomar assento de forma definitiva na sociedade a ligação entre os direitos ditos como fundamentais àquela época, alçados à categoria de verdadeiras pilastras do estado moderno (liberdade, igualdade e fraternidade), num texto formal- mente disposto que albergasse esses princípios: uma Constituição escrita de caráter ou abrangência nacional.

Buscando uma maior didática, podemos situar os elementos tidos como informadores ou essenciais em todo e qualquer texto normativo que pretenda ser uma Constituição, além dos já acima citados: a) básica, comoPage 42texto normativo; b) fundamental, ou seja, dela devem derivar as demais leis da nação e c) necessidade ou, mais do que isso, necessidade ativa, já que inconcebível seria a existência de uma Constituição sem uma força que lhe desse razão de existir4.

3. Princípios democráticos e constitucionalismo no Brasil

No sentido aqui buscado por nosso estudo, o caso do Brasil se apresenta de modo destacado, seja pela juventude de seu texto constitucional atualmente em vigência, seja pela junção dessa juventude normativa com o também recente retorno do ideal democrático formalmente tomado num texto constitucional – senão até mesmo de modo inédito na história do país – seja pelo histórico evolutivo da democracia e do constitucionalismo democrático em terras brasileiras.

Nossa atual constituição, a de 1988, é chamada de Constituição Cidadã e, diz-se, assim o é por seu viés democrático pronunciado. Mostra-se útil, portanto, uma análise um pouco mais detida sobre tal documento, sob o prisma específico da democracia. Historicamente, o Brasil, em matéria le-gislativa, sempre se pautou por inspiração externa, aspecto bastante visível na época do Império, e que persistiu mesmo após o advento da República em 1889, situação que foi, também notada, claro, em face dos diversos textos constitucionais brasileiros, desde o início. Aliás, mostra-se conveniente elaborar aqui breve digressão sobre esse início de vida constitucional no Brasil, ao menos situando a passagem que marca a vinda da família real às terras brasileiras até a elaboração do primeiro de nossos textos constitucionais, em 1824.

No Brasil, o...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT