A determinação do Direito em Aristóteles

AutorAlejandro Montiel Alvarez
Páginas281-297

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Introdução

O estudo de Aristóteles1 é um bom começo para a investigação de uma determinação do Direito, uma vez que este foi o primeiro a dar autonomia às abordagens de Ética e de Política e sua análise do justo como direito influenciou todos os séculos que o seguiram.2 Porém as estruturas, tanto da ética quanto da política, não são evidentes em Aristóteles, mas implícitas, a estrutura do direito, por sua vez, está ainda mais longe de ser evidenciada, uma vez que sequer como disciplina autônoma esse poderia ser concebido. Assim, impõe-se que o objetivo do presente trabalho não seja determinar exatamente a concepção de Aristóteles sobre o direito - pois este não seria para ele mais do que uma parte da ética (a qual se resumiria ao livro V da EN – IV da EE) -, senão apresentar os elementos da teoria aristotélica que possam sustentar uma autonomia ao direito (porém dependente da ética e da política). Afinal, em que pese Aristóteles não evidenciar a estrutura do direito tão claramente quanto à da ética e política, é possível determinar todos os seus elementos em sua teoria para propor uma organização causal3.

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Para tanto, parte-se de uma interpretação de Julien Freund sobre o direito. Segundo esse autor, em uma interpretação aristotélica, o direito, considerado sob o ponto de vista metafísico, em razão de ser de uma ordem relacional e não ser uma práxis originária do homem (como a arte, a religião, a política, a ética e a ciência), não possui, por si só, uma essência do ponto de vista ontológico. Ele é apenas uma mediação, tem sua expressão como uma dialética entre a ética e a política. Tem nelas suas condições de possibilidade, participando de ambas sem se confundir com nenhuma. Mesmo que o direito possa se tornar o objeto de um estudo autônomo, como Aristóteles bem demonstrou, ele não pode se separar da moral que intervém na constituição e, consequentemente, da política de um Estado. Não significa, no entanto, que ele lhes seja subordinado, o que ocorre é que ele depende de uma situação ética e de elementos constitutivos políticos – regras comuns e uma retidão ética. No entanto, o direito também se torna indispensável a elas, pois ele é a disciplina das instituições e sanções. Sem o direito, a política não é mais do que uma sucessão descontínua de decisões arbitrárias, e a ética é uma tábua ideal de obrigações e virtudes sem censura ou responsabilidade. Por fim, nessa dialética o direito assume um caráter necessariamente plurívoco.4

Após adotar essa posição relacional do direito, tomam-se suas causas, tanto da ética quanto da política. Primeiramente, o direito como tudo aquilo que está no domínio da filosofia moral e que tem como fim a felicidade, porém atinge esse fim indiretamente ordenando o indivíduo e a comunidade, ou seja, as ações éticas e políticas e coordenando a relação entre a ética e a política. O que o faz operando, principalmente, na amizade (causa final) e no devido (causa material) dando-lhe a forma de justiça (causa formal). Por fim, tem como motor a natureza e a convenção expressas pela lei (causa eficiente).

1 Causa Material: O Devido

A matéria própria do direito, nos estudos aristotélicos, reside no ato de atribuir o próprio de cada um, ou seja, no ato de dar a cada um o “devido”, para que seja (re)estabelecida a igualdade. O “devido” dá-se de diferentes formas: o devido na justiça geral é a conformidade das ações dos indivíduos às disposições da comunidade na forma da lei; na justiça particular, o devido é a igualdade. A igualdade, por sua vez, se estabelece exatamente no termo médio entre alguma das partes “ter em excesso” ou “ter em falta”, pois o devido é a igualdade, e a igualdade, para Aristóteles, é o meio termo. A igualdade, porém, pode se formar entre diferentes termos comparativos (pessoas, coisas, ações e as diversas formas de combinações destes termos).5 Em razão disto, a justiça particular subdivide-se em justiça distributiva e justiça corretiva: a justiça distributiva é aquela que se aplica à distribuição dos bens ou dos males entre os membros da comunidade, por exemplo, honras e trabalhos pesados, igualando pessoas a coisas; enquanto aPage 283 justiça corretiva diz respeito aos tratos nas relações entre os indivíduos (voluntários ou involuntários), igualando coisa com coisa.6

A justiça distributiva opera na distribuição tanto dos bens quanto dos males7 da comunidade aos seus membros – relação da comunidade com seus membros, ou seja, na atribuição de coisas que, em um primeiro momento, são comuns a determinados indivíduos; baseia-se em um critério8 ao qual subjaz a igualdade dos membros que concorrem aos bens9 escassos da comunidade. Assim, se estabelece ao menos quatro termos duas pessoas (A e B) e dois bens10(C e D) nos quais se percebem duas relações distintas: A está para C; e B está para D. A justiça distributiva é a proporção destas duas relações, a qual Aristóteles define como proporção geométrica: A está para C assim como B está para D.11 Por exemplo, o soldado X destacou-se em uma batalha e ganhou uma medalha, o soldado Y destacou-se em duas batalhas e ganhou duas medalhas. Ou seja, os soldados X e Y são as pessoas, as medalhas são os bens e a bravura em batalha é o critério de distribuição pertencente às pessoas X e Y. Logo, duas medalhas de Y estão para seu destaque em duas batalhas assim como uma medalha de X está para seu destaque em uma batalha, isto é, dois está para dois, assim como, um está para um (2/2 = 1/1) – uma igualdade de proporções.

A injustiça (e as disputas políticas nas sociedades) dá-se quando partes iguais não recebem o mesmo, ou quando partes diferentes recebem o mesmo, de tal forma que o mais importante na justiça distributiva não é o objeto da distribuição ou a distribuição em si, porém o critério de distribuição; o que é estabelecido dentro da esfera política, mas com matéria dada pela ética. Por exemplo, uma disputa típica do século XX: mulheres terem direito ao voto. Isto nada mais era do que uma disputa por um critério de distribuição, isto é, homens e mulheres sendo iguais como membros da comunidade, logo, deveriam receber o mesmo: o direito ao voto – na proporção homens e voto e mulheres e voto deve haver a mesma relação. Segundo Tomás de Aquino:

No entanto, a dignidade concernente à distribuição não é obtida de acordo com um mesmo padrão a todos os homens: senão que em um sistema democrático, aonde todos governam, se alcança a dignidade segundo a liberdade. Como os homens comuns são iguais aos demais em liberdade, por isso, se considera que são dignos de serem governados da mesma maneira. Por outro lado, em uma oligarquia, aonde uns poucos governam, se mede a dignidade segundo as riquezas ou a linhagem, de tal forma que os que têmPage 284 berço mais nobre ou mais riquezas possuam mais do bem comum. Em uma aristocracia, aonde alguns governam por sua virtude, se mede a dignidade segundo a virtude; de tal forma que terá mais o que mais abunda em virtude.12

A justiça corretiva, por sua vez, opera nas relações (voluntárias e involuntárias13) de indivíduos com indivíduos, tanto nas trocas de bens como nas ações de um em relação ao outro. Nesta, a justiça também é uma igualdade, porém, uma igualdade definida como aritmética – que se alcança com uma igualdade de quantidade14. As pessoas, em tais relações, sempre são tomadas como iguais, operando a igualdade apenas entre as coisas (ou ações).15 Por exemplo, X vende um cavalo a Y, se o cavalo entregue de X a Y vale dez minas, Y deve entregar o equivalente a dez minas a X. Operando uma igualdade entre o que saiu do patrimônio de X e entrou no de Y com aquilo que saiu do patrimônio de X e entrou no de Y, ou seja, 10 = 10. Assim, haverá injustiça sempre que o ganho e perda das pessoas envolvidas nas relações não forem iguais. Por exemplo, X deu um soco em Y.16 Aquilo que Y sofreu não é igual aquilo que X sofreu. Assim, o juiz estabelecerá uma pena a X que equivalerá ao sofrimento de Y. Que as trocas de coisas e as ações entre os indivíduos das comunidades devem ser equivalentes é bastante pacífico no entanto, gera disputas na comunidade a forma de atribui-lhes valor (a reciprocidade das coisas), pois ninguém troca coisas e ações idênticas em natureza, mas algo distinto que deve ser igualado pelo dinheiro17 nas coisas e pelo juiz nas ações18.

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2 Causa Formal: A Justiça

O termo homérico para designar, em geral, o direito era themis, o qual indicava o compêndio das grandezas cavaleirescas e que etimologicamente significava ‘lei’. O conceito de dike, por outro lado, não é claro, vem da linguagem processual, de dar e receber dike – o culpado ‘dava dike’ ao lesado que a recebia. É daí que vem o sentido dado ao termo na polis, posterior aos tempos homéricos: “[...] equivale aproximadamente a dar a cada um o que lhe é devido”19. Então dike passou a significar o cumprimento da justiça, ao contrário de themis que se referia à autoridade, legalidade e validade do direito, dando, assim, vazão para que, a partir das lutas sociais na Grécia, a bandeira das massas passasse a ser a busca pelo direito (dike) e o fim da lei autoritária (themis). Foi o sentido de igualdade presente na acepção de dike (‘devolver exatamente o que se recebeu’) que norteou a busca por uma medida justa para a atribuição do direito. O processo de expansão e mecanização da igualdade se dá em duas etapas: (a) as massas lutaram contra a themis que expressava a lei autoritária da nobreza, conquistando o governo; (b) posteriormente, em razão dos excessos causado pelo governo das massas, buscou-se (movimento realizado também pelos nobres) que a dike fosse expressa em lei escrita, para dar efetividade à igualdade. Essa evolução também se deu no campo da linguagem. Faltava um conceito próprio daquela proteção contra as...

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