Assédio Sexual: Questões Conceituais

AutorRodolfo Pamplona Filho
Páginas301-310

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Introdução - objetivo do trabalho

Falar sobre assédio sexual é, em verdade, dissertar sobre uma doença social muito antiga, que é vista, porém, na sociedade contemporânea, sob uma nova roupagem. É, na expressão de Michael Rubinstein, lembrado por Pinho Pedreira, "um termo novo para descrever um velho problema"1.

Na abordagem que faremos, neste trabalho, procuraremos fazer uma síntese das principais teses que professamos sobre este tão controverso tema, permitindo uma visão panorâmica e - por que não dizer? - introdutória a aqueles que resolverem enfrentá-lo.

1. Conceito

Em termos de direito positivado, a única forma de assédio sexual criminalizada no Brasil é a ocorrente nas relações de trabalho subordinado, pois inseriu no Código Penal o seguinte tipo: "Assédio sexual. Art. 216-A. Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função".

O problema do assédio, todavia, é muito mais amplo do que a forma conceituada e criminalizada no Brasil, o que poderá ser constatado durante nossa exposição.

Conceituamos, por isto, o assédio sexual como toda conduta de natureza sexual não desejada que, embora repelida pelo destinatário, é continuadamente reiterada, cerceando-lhe a liberdade sexual.

Por se constituir em uma violação do princípio de livre disposição do próprio corpo, esta conduta estabelece uma situação de profundo constrangimento e, quando praticada no âmbito das relações de trabalho, pode gerar consequências ainda mais danosas.

E a expressão "quando praticada no âmbito das relações de trabalho" é aqui utilizada não como mero recurso de estilística, mas sim para destacar que este fenômeno social não se restringe aos vínculos empregatícios como tipificado no Brasil. De fato, pode o assédio sexual se dar em várias outras formas de relação social, sendo exemplos didáticos o meio acadêmico (entre professores, alunos e servidores), o hospitalar (entre médicos, auxiliares e pacientes) e religioso (entre sacerdotes e fiéis)2.

2. Denominação

Em relação à denominação hoje consagrada, ela corresponde ao termo inglês "sexual harassment", que também traz, em si, a ideia de insistência - reiteração - nas propostas - "convites" - para a prática de ato com conotação sexual (ainda que haja resistência expressa a eles), o que - veremos - é um elemento necessário para sua caracterização.

O fenômeno, porém, é tão universal, que quase todos os idiomas mais falados no mundo trazem uma expressão própria para sua identificação3.

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Lembra Alice Monteiro de Barros, inclusive, que alguns "autores equiparam o assédio sexual ao uso medieval do jus primae noctis (direito à primeira noite), que obrigava as recém-casadas a passarem a noite de núpcias com o senhor do lugar, havendo decisão, de 1409, na França, declarando ilícita essa prática"4.

3. O assédio sexual como um ato ilícito

Numa reflexão dialética, poder-se-ia suscitar: "em que pese ser reprovável social e moralmente, onde está a ilicitude do assédio sexual, quando praticado fora dos limites do tipo penal?"

Tal questionamento é muito mais profundo do que se pode conceber, a priori.

De fato, existem diversas condutas que, sob determinados prismas focais, podem chocar seus receptores - como, por exemplo, uma "grosseria" no trato social ou uma quebra de regra de etiqueta -, mas que, vistas como atos isolados (e não como parte de um conjunto de ações sistematicamente coordenadas para intimidar), não podem ser consideradas como atos ilícitos.

O assédio sexual, todavia, não se encaixa neste perfil mencionado, uma vez que constitui uma violação ao princípio maior da liberdade sexual, haja vista que importa no cerceamento do direito individual de livre disposição do seu próprio corpo, caracterizando-se como uma conduta discriminatória vedada juridicamente.

É por isto que se justifica, ainda que a lei brasileira própria somente criminalize a conduta quando ocorrida nas relações de trabalho e mediante "constrangimento", o sancionamento civil lato sensu da conduta dos assediadores, em quaisquer das formas possíveis de assédio, tendo em vista que estes ultrapassaram os limites da sua própria liberdade sexual.

Esta ideia nos parece muito importante para o desenvolvimento deste trabalho, uma vez que, se o assédio sexual for considerado um ato que não transborde os limites da licitude, não há como, em regra, imputar qualquer responsabilidade a quem quer que seja, ou mesmo, em última análise, propugnar seriamente por qualquer medida preventiva de sua ocorrência nas meios sociais.

Desta forma, o assédio sexual, enquanto ilícito, deve ser considerado como uma violação ao postulado dogmático da liberdade sexual, não devendo ser encarado como uma reles "infração moral", até mesmo porque, no âmbito das relações sociais, os limites da juridicidade e da moralidade são muito tênues.

Na lição de Miguel Reale - aqui transcrita integralmente para preservar o conteúdo e precisão do raciocínio - "é na natureza mesma do homem - o único ente que originariamente é enquanto deve ser - que se deve buscar a fonte da vida ética, condicionando transcendentalmente, as diversas experiências arqueológicas que compõem a tessitura da sociedade e da história. Se o homem não é concebível sem os valores que o inspiram, e se a todos os homens tem de ser assegurada a possibilidade de serem o que "moralmente devem ser", a subjetividade da pessoa e a objetividade de uma ordem social de pessoas surgem como valores distintos, mas complementares: é no conceito de "bilateralidade atributiva" que vejo concretizar-se esse nexo de distinção e complementariedade, através do processo dialético de implicação-polaridade que governa as experiências moral e jurídica.

Essa complementariedade essencial é posta pela ideia mesma de pessoa humana como valor-fonte, da qual todos os valores sociais promanam, tornando-se compreensível o que no início deste trabalho assinalei: não somente a possibilidade, mas a necessidade de atentar tanto para a universalidade como para a condicionalidade histórica das relações entre a moral e o direito. Se estes, através dos diferentes ciclos culturais, apresentam uma gama variada de soluções, tal acontece exatamente por não ser possível coexistência social, moralmente fundada em liberdade, sem a pluralidade que dela decorre.

Tais relações, por outro lado, serão moral e juridicamente legítimas na medida e enquanto se diversificarem dentro dos limites resultantes do que se poderia denominar "a abertura angular axiológica da pessoa": o valor da pessoa humana atua como fulcro irradiante de múltiplas experiências éticas, condicionando, in concreto, variáveis formas de moralidade e juridicidade, sem que uma possa ser reduzida à outra, muito embora, como muitas vezes acontece, a mesma ação humana possa atender, concomitantemente, a ambas as ordens de valores.

Ora, quando dois valores ou expressões da vida humana se põem um perante o outro de tal modo que um não possa, ou ser concebido ou ser atualizado sem se referir necessariamente ao outro, e, ao mesmo tempo, se verifica a impossibilidade de serem reduzidos um ao outro, dizemos que há entre eles uma relação dialética de implicação-polaridade ou de complementariedade.

Esse concomitante nexo de distinção e complementariedade revela, por outro lado, que muito embora tais valores incidam sobre distintos níveis de ação, eles reciprocamente se completam. É assim que o direito, por mais que se expanda como ordenamento objetivo, jamais logrará cobrir todo o campo do social, pois se tudo se subordinasse integralmente às regras jurídicas (a inspiração do artista e as formas de sua imaginação criadora; a vocação do sacerdote e a religiosidade dos crentes; a vocação dos cientistas e o sentido de suas pesquisas etc.) estancar-se-iam, também integralmente, as fontes vivas da subjetividade, e a paz jurídica seria a do espírito esvaziado de liberdade, a de um mundo habitado pela figura

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fantasmal do homo juridicus. A moralidade ou o valor moral do direito consiste, como se vê, na fidelidade aos fins da heteronomia e da coercibilidade, cujos limites resultam das necessidades inerentes a coexistência garantida dos demais valores, no exercício de uma função histórica que já me levou a apontar a justiça como sendo "o valor franciscano", cuja valia consiste em valer para que os demais valores valham"5.

4. Elementos caracterizadores

Visando a estabelecer os elementos caracterizadores do assédio sexual, encontramos sérias dificuldades na doutrina especializada e mesmo nas legislações do direito comparado6, tendo em vista a inexistência de unanimidade quanto a seus elementos definidores.

Isto ocorre, no nosso sentir, por uma evidente confusão entre as espécies de assédio sexual e seus elementos definidores ou suas agravantes, dificuldade esta que, modestamente, procuraremos superar com o conceito supraestabelecido.

De fato, conceituamos assédio sexual como "toda conduta de natureza sexual não desejada que, embora repelida pelo destinatário, é continuadamente reiterada, cerceando-lhe a liberdade sexual".

Assim sendo, podemos vislumbrar como...

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