Direito e pós-modernidade

AutorMaria da Graça dos Santos Dias
CargoProfessora do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Vale do Itajaí - UNIVALI
Páginas104-114

Maria da Graça dos Santos Dias1

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1 Introdução

Vivemos tempos de complexidades e de perplexidades. Profundas crises: econômica, social, cultural, política abalam a Sociedade e o Estado contemporâneos.

Na perspectiva política, a tese da Modernidade de que o governo das leis é melhor que o governo dos homens, porque o parlamento representa o povo, assegurou o exercício da cidadania política apenas em seu sentido abstrato, teórico. Entretanto, necessário se faz dar-lhe eficácia material. Cidadania e democracia constituem categorias complexas, envolvendo dimensões não apenas teórico-filosóficas, mas práticas. Ambas categorias estão enraizadas no mundo da vida, referem-se a condições reais de existência, falam do ser do homem no mundo com o outro.

Democracia e cidadania não podem ser concebidas apenas enquanto categorias políticas, mas sim existenciais. Democracia e cidadania são da ordem do desejo, superam-se na medida de suas realizações, demandando constante renovação.

Debate-se hoje a crise do Estado de Direito que se revelou também autoritário, pois legitimou desigualdades, admitiu exclusões, impediu o exercício da cidadania ativa.

A democracia representativa falha na medida em que, na prática, não postula os interesses populares, da comunidade que representa, mas o interesse do capital - tanto nacional quanto internacional.

Conforme Luhmann, a corrupção de um sistema dá-se a partir do momento em que este opera com código de outro sistema. Assim, o sistema político na medida em que utiliza os fundamentos e os mecanismos próprios da linguagem de outros sistemas - como o econômico, o familiar - legaliza não somente a justiça, mas também a injustiça.

Assiste-se à subjugação do poder político pelo poder econômico. A economia de mercado globalizada afeta as relações políticas e sociais. Diante da internacionalização da economia, novas imposições e limites são colocados aos Estados Nacionais. Há limitação da soberania nacional e as relações político-sociais manifestam-se tensas. Nos países periféricos, a violência marca as relações sociais internas, enquanto no cenário internacional o terrorismo ganha força. Fenômenos estes que expressam o inconformismo com o autoritarismo econômico e seu predomínio sobre os demais âmbitos da vida.

Parece ter-se chegado ao fim da História. As grandes narrativas da Modernidade perderam sua força de sustentação. O colapso das ideologias políticas que funcionavam como elo de agregação internacional deixou um vazio. Hoje, é explícito também o limite do poder da Organização das Nações Unidas - desrespeitada em casos como o das invasões do Afeganistão e do Iraque. Afigura-se no cenário político, social, cultural uma crise profunda. Tudo que parecia sólido desmanchou-se no ar.

A ansiedade cultural desvela-se como marca de nossos tempos. Os fundamentos éticos de nossa cultura ocidental estão em cheque.

O Estado contemporâneo não consegue responder às complexidades do mundo atual dominado pelas forças técnico-econômicas globalizadas. Como Agnes Hoeller reflete, o Estado não tem compaixão do sofrimento humano.

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A grande utopia de um Estado Democrático de Direito deveria ser a realização da emancipação das subjetividades humanas e a construção do bem comum. Assim também as sociedades - tanto nacionais quanto planetária - necessitam buscar referentes identitários comuns que lhes garantam um mínimo de agregação social.

A racionalidade econômica fundada na lógica do mercado, que objetiva tão somente o lucro, sofisticou suas estratégias de domínio e assujeitamento dos demais âmbitos da vida humana. O império capitalista globalizou-se, enquanto as forças de oposição não conseguiram atualizar sua ação - seu projeto. A grande fratura social expressa-se na dualidade dos satisfeitos e dos excluídos, estes representando dois terços da humanidade. As normas fundamentais do mercado estão colocadas na centralidade da vida moral. A ética sucumbe ao lucro. Vivencia-se um sentimento de impotência diante do domínio do Império e a desesperança percorre a medula do corpo social, percebendo-se expressões da anomia social que nos atinge.

O enfrentamento desta crise exige a organização da Sociedade que deve controlar o poder que a controla, estabelecendo vias de diálogo permanente com o Estado. As ações do Estado precisam ter visibilidade para que a Sociedade as avalie. Impende que novos atores sociais - movimentos sociais - ocupem espaços nas cenas políticas nacionais e internacional.

A centralidade de um novo projeto ético-político deve residir na Pessoa. A dignidade humana e o direito à vida com qualidade constituem o referente de resgate do projeto utópico do Estado Democrático de Direito. O Estado deve ser funcionalizado para realizar os direitos fundamentais a que toda pessoa humana e todos os povos fazem jus e que lhes estão constitucionalmente assegurados, em grande parte dos países, bem como pelos tratados e acordos internacionais.

A exclusão social e seus perversos efeitos - desemprego, analfabetismo, fome, miséria, enfermidade, morte - desvela uma crise não apenas econômica, mas ética, que se não for superada coloca em risco a Democracia.

A crise do Estado manifesta-se em sua absoluta incapacidade de fazer frente à miséria através de Políticas Públicas - sociais e econômicas - eficazes.

Na esteira da crise do Estado e da própria Sociedade, vivencia-se também uma crise paradigmática da Ciência. Esta, ao defender a neutralidade valorativa como um de seus postulados fundamentais, cede espaço e fortalece a lógica do mercado.

A compreensão do desafio histórico que se nos apresenta exige a superação de velhos paradigmas: Positivismo, Marxismo, Psicologismo, que constituíram as grandes narrativas da Modernidade.

Edgar Morin aponta para a necessidade de se compreender a complexidade da realidade e do pensamento. A realidade é complexa, o pensamento é complexo, a ciência por extensão é também complexa.

Ao se refletir sobre o Direito, enquanto um sistema normativo que regula as relações dos homens em sociedade, necessário se torna ter presente a noção de complexidade do mundo da vida e da ciência. A Ciência do Direito é complexa, uma vez que este, ao regular as relações sociais que são profundamente complexas, gesta a utopia de realizar a Justiça, um dos valores fundamentais da vida social.

2 A ciência é complexa

A ciência na Modernidade abandona a sabedoria construída arcaicamente pela interação profunda do homem com o mundo: natural, social, mitológico... Esta sabedoria, com caráter de ancestralidade fundava-se na percepção sensível, na intuição, na observação, na analogia, para compreender os mistérios da vida.

A história, o cotidiano, as vivências existenciais, os valores morais constituíam referentes de construção deste tipo de saber. Saber este que, pelos seus fundamentos filosóficos, levava oPage 106 homem a refletir sobre si mesmo e o mundo. Apresentava a capacidade de se auto-reflexionar e de compreender as inter-conexões das múltiplas dimensões da realidade, articulando-as em unidades de sentido. A Modernidade, entretanto, faz uma ruptura, com este tipo de saber e o conhecimento científico apresenta-se como critério único de construção da verdade. A busca da verdade efetiva-se a partir de critérios de objetividade, neutralidade, universalidade e hegemonia.

A ciência opera uma ruptura com tudo o que é da ordem do sensível, valorativo, ideológico, mitológico ou simbólico. Com a intenção de purificação do conhecimento, a ciência acaba por desprezar a mundaneidade do mundo e por romper com a Filosofia - especialmente com a Ética e a Estética.

Boaventura de Souza Santos afirma que "o determinismo mecanicista é o horizonte certo de uma forma de conhecimento que se pretende utilitário e funcional, reconhecido menos pela capacidade de compreender profundamente o real do que pela capacidade de o dominar e transformar."2

Hoje o pensamento científico, fundado na racionalidade lógica, matemática, determinista, é colocado em questão. A fragilidade de seus fundamentos coloca-se à mostra na medida de seu próprio desenvolvimento, especialmente a partir das novas descobertas da Física, da Biologia, da Química.

Edgar Morin reflete que ao invés das certezas, das verdades, da ordem, compreende-se hoje que a Ciência progride através do erro, e que todo conhecimento produzido é sempre precário, provisório e incompleto.

Este novo paradigma - Pós-moderno ou transmoderno - conforme Maffesoli, "permite a sinergia dos elementos 'arcaicos', tradicionais, e da tecnologia de ponta."3

Redescobre-se a multidimensionalidade do conhecimento que deve encontrar sua unicidade na pessoa humana. O conhecimento envolve razão e sensibilidade, corpo e espírito, teoria e práxis, ordem e desordem, caos e organização. São estes pares que permitem o dinamismo da ciência. Somente um pensamento complexo - e não o pensamento simplificador da Modernidade - vai compreender a complexidade do Ser Humano, da Vida, da Sociedade,da Ciência.

A Ciência da Modernidade não possibilitou ao homem (sujeito científico) o retorno reflexivo sobre si mesmo porque estabeleceu uma diáspora entre sujeito e objeto. O conhecimento científico não se auto-reflexionou, perdendo a força libertadora da reflexão, cristalizando verdades e generalizando-as.

O desenvolvimento científico, entretanto, não pode ser avaliado como intrinsecamente bom ou mau. Trouxe grandes contribuições à humanidade, mas também instituiu a possibilidade de destruí-la. Permitiu o aprofundamento do conhecimento de distintas disciplinas, mas fragmentou o saber, porque não as reuniu em um todo organizador. Rompeu com a doxa - conhecimento comum - negando-lhe seu valor e afirmando arrogantemente a episteme como única fonte de descoberta da verdade. Construiu um poder que não pode controlar, uma vez...

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