Direitos Humanos Fundamentais e Suas Dimensões de Aplicação e Efetividade

AutorNarciso Leandro Xavier Baez
CargoJuiz federal da 4a. Região. Professor e pesquisador do programa de pós-graduação (UNOESC)
Páginas6-17

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Pensar nos direitos humanos como uma categoria universal, ou seja, como algo que deva ser respeitado e efe-tivado em todas as culturas, tem se mostrado um árduo desafio, tanto por conta da diversidade cultural e dos antagonismos existentes nas diferentes sociedades da atualida-de, quanto pela crescente disseminação de teses que buscam relati-vizar a observância e respeito desta categoria de direitos, para justificar práticas e ideologias aviltantes à dignidade humana.

O estudo acerca da universalidade dos direitos humanos no quadro multicultural contemporâneo envolve uma discussão científica que exige o reconhecimento de que se percorre um caminho de incertezas, cujo esclarecimento requer postura construtivista e exploratória no exame do objeto de qualquer investigação que se faça sobre o assunto.

Esta postura deve ser associada à busca de soluções práticas para o tema, visto que em pleno século XXI, segundo dados estatísticos do Millennium Project, da Organização das Nações Unidas1, a cada ano morrem aproximadamente onze milhões de crianças, a maioria com menos de cinco anos de idade. Os motivos são a má nutrição e outras causas totalmente evitáveis como a malária, a diarréia e a pneumonia. Mais de 50% dos africanos sofrem de doenças relacionadas à qualidade da água, como cólera e diarréia infantil. Mais de 800 milhões de pessoas vão se deitar todas as noites com fome; dentre elas, 300 milhões são crianças. Mais de 2,6 bilhões de pessoas, ou seja, cerca de 40% da população mundial, carecem de saneamento básico, enquanto mais de um bilhão continua a usar fontes de água imprópria para o consumo. Além disso, no mundo inteiro, 114 milhões de crianças não recebem instrução sequer ao nível básico e 584 milhões de mulheres são analfabetas. Esses dados estatísticos revelam as causas e expressões da pobreza que afe-ta mais de um terço da população mundial.

O triste quadro da miséria humana, acima quantificado, evidencia a sensibilidade e o senso de responsabilidade que se devem adotar para o estudo dos direitos humanos e a defesa de sua universalização, analisando-se com cautela as teses contrárias e as que buscam ratificar essa pretensão, a fim de encontrarem-se argumentos éticos, fundados na lógica e na razão, que possam ser utilizados para a minimização das mazelas humanitárias, através da garantia, ao menos dos elementos básicos e essenciais, da dignidade da pessoa humana no espaço multicultural contemporâneo.

O presente artigo tem por objetivo contribuir para a busca de soluções diante deste quadro de violações dos direitos humanos, através do estudo das dimensões de aplicação e efetividade desta categoria na sociedade contemporânea. A análise é desenvolvida a partir da construção de um conceito ético para o instituto que tem por base a dignidade humana em seu nível básico e cultural, permitindo, com isto, a visualização de duas dimensões de atuação destes direitos. A divisão teórica proposta embasa de forma objetiva e prática a defesa da universalidade dos direitos humanos no contexto multicultural.

Para o alcance desses objetivos, destaca-se, na primeira parte do estudo, a controvérsia teórica existente em torno da definição dos direitos humanos, mostrando-se a insuficiência dos atuais conceitos doutrinários, ao mesmo tempo em que se busca identificar qual o valor comum e nuclear que compõe os bens atualmente reconhecidos como direitos humanos na Declaração Universal da ONU e nas diversas teorias que procuram fundamentá-los.

Após a identificação do elemento nuclear, que é encontrado nos bens jurídicos aos quais se pretenda incluir na categoria dos direitos humanos, propõe-se a construção de um conceito ético, capaz de dialogar com as diversas morais existentes nas diferentes culturas, com o objetivo de demonstrar a existência de duas dimensões de atuação desta classe de direitos e a necessidade de um diálogo inter-cultural para o seu respeito e implementação universais.

O assunto se insere dentro da linha de pesquisa: Direitos Fundamentais e Novos Direitos e na área de concentração: Direito Púbico e Evolução Social, uma vez que busca investigar a possibilidade da construção teórica e prática de uma dimensão universal dos direitos humanos. O desenvolvimento deste trabalho foi realizado através de pesquisa bibliográfica de material nacional e estrangeiro, adotando-se um viés hermenêuti-co-crítico-dialético, reunindo-se elementos éticos que permitam a concretização dos direitos humanos nas diversas culturas.

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1. Problemas teóricos na definição de direitos humanos

Entre os diversos desafios que o estudo dos direitos humanos apresenta, pode-se destacar sua definição, eis que se trata de termo dos mais complexos e controvertidos, ainda hoje objeto de polêmicas, não alcançando consenso doutrinário. O problema começa pela tendência à banalização do termo direitos humanos, frequentemente empregado sem critério, para justificar quaisquer sentimentos de indignação e contrariedade frente a situações de opressão, exclusão social e injustiça. Esse lamentável equívoco contribui para o alargamento indiscriminado da abran-gência do termo, que passa a assumir conotação muito mais emocional2 do que jurídica, perdendo-se, gradativamente, a precisão sobre o seu conteúdo.

Além disso, a própria denominação do instituto é confusa, pois se usa indistintamente expressões como direitos do homem, direitos inatos, direitos naturais, direitos individuais, direitos essenciais do homem, direitos de personalidade, direitos subjetivos públicos, direitos fundamentais, direitos humanos fundamentais, entre outras denominações3, ora utilizadas como sinônimos, ora com significados diferentes, o que torna o estabelecimento de uma definição ainda mais complexo.

Não obstante esta diversidade de denominações e suas respectivas insuficiências, deficiências, restrições ou alargamentos de significados, verifica-se que, com o advento da Declaração Universal dos Direitos Humanos, promovida pela Organização das Nações Unidas, em 1948, consolidou-se o uso da expressão direitos humanos para designar esta categoria de direitos4. Tanto é assim que todos os pactos internacionais proclamados a partir da histórica Declaração passaram a usar esta expressão.

Em face do exposto, nesta pesquisa, direitos humanos referem-se à classe de direitos pormenorizada nas seções subsequentes.

2. Elementos formadores de uma definição de direitos humanos

Outro complicador para o estabelecimento do conceito de direitos humanos está na própria forma como eles são usualmente definidos pela doutrina, pois a maior parte das formulações mostra-se vazia de conteúdo, limitando-se a descrever os traços externos deste instituto, usando exemplos de situações de direitos humanos, em prejuízo da delimitação dos seus elementos nucleares propriamente ditos. Isso ocorre porque muitos doutrinadores5 definem os direitos humanos como categoria de direitos que os indivíduos possuem pelo simples fato de fazerem parte da espécie humana6, destacando que eles são compartilhados em condições de igualdade pela pessoa, independentemente da origem, raça, sexo, nacionalidade ou condição econômica. Há ainda pesquisadores7 que definem os direitos humanos como a norma mínima das instituições políticas, que servem de parâmetro de legitimação para os regimes jurídicos dos Estados, fixando um último limite ao pluralismo entre os povos. Por fim, têm-se aqueles que afirmam que os direitos humanos são os consagrados pela Declaração Universal dos Direitos Humanos8, promulgada pela Organização das Nações Unidas, em 1948.

Como se pode observar, estas definições não esclarecem o que são direitos humanos, restringindo-se a dizer: que os seres humanos possuem esses direitos e que eles são compartilhados sem dis-criminação de qualquer natureza; que servem de norma mínima das instituições políticas; ou, ainda, restringem-se a indicar os bens jurídicos elencados na Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, para apontar que os valores nela consignados são direitos humanos, quando, a bem da verdade, o que se tem ali são meros exemplos desta espécie jurídica. A insuficiência e a superficialidade dessas definições levaram Norber-to Bobbio9 a denominá-las de tautológicas, defendendo que não há como se elaborar contornos nítidos sobre o conceito de direitos humanos, chamados por ele de direitos do homem, por entender que esta expressão é muito vaga e também pelo fato de seu conteúdo variar ao longo da história.

Não obstante o pessimismo de Bobbio, o desenvolvimento de uma conceituação dos direitos humanos é primordial, pois sua construção viabiliza a expressão de argumentos racionais e morais10 que justifiquem o seu respeito e observância. A propósito, como se poderia pensar em buscar efetividade para algo que não se consegue definir?

Ora, para se apontar um bem jurídico como direito humano, realiza-se um raciocínio prévio, dentro do qual se conferem valores aos elementos em análise, para se chegar à conclusão de que o bem avaliado faz parte ou não desta categoria de direitos. É justamente no âmbito desta pré-análise que se encontra o conceito de direitos humanos, pois ela constitui pressuposto lógico-racional que permite afirmar que certo valor pertence a essa categoria de direitos.

Nesse sentido, quando se observam os bens jurídicos consignados na Declaração Universal da ONU, constata-se que eles estão relacionados com valores que se tornaram...

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