O domínio público no sistema internacional

AutorSérgio Branco
Páginas87-158
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CAPÍTULO 2
O DOMÍNIO PÚBLICO NO SISTEMA INTERNACIONAL
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A análise histórica de determinado instituto jurídico pode ser desaadora. Anal,
um único instituto pode conter signicados distintos nos diferentes momentos que atra-
vessa, muito em razão de aspectos culturais bastante especícos e que dizem respeito, tam-
bém eles, àquele determinado momento histórico, o que diculta fazer uma comparação
precisa quanto à sua real conguração em um momento e outro. O poder familiar, por
exemplo, sofreu inúmeras modicações em sua justicação e em seu exercício ao longo
dos séculos, suscetível que é às peculiaridades do tempo e da sociedade onde é exercido.
O mesmo se dá quanto à busca pelos equivalentes estrangeiros do instituto objeto
de dissertação ou tese. Anal, também os diversos sistemas jurídicos do mundo tratam
determinado conceito jurídico – que pode até ter o mesmo nome ou seu sinônimo
linguístico em outro idioma – a partir de suas próprias construções culturais e valores
normativos. O contrato de seguro realizado no Brasil, por exemplo, não contará com as
mesmas regras, a mesma conguração ou mecanismos para ser interpretado que seus si-
milares em outros países ou sistemas jurídicos. Para compreendê-lo, e para que sua com-
paração entre um país (ou sistema jurídico) e outro faça sentido, não basta apresentar as
regras que o regulam: é fundamental compreender também que sociedade e que valores
culturais estão a circundar a elaboração do contrato.
1 “Se consideramos as interpretações que se sucedem sobre uma lei de dois séculos (sobre o Code Napoléon, por
exemplo), vericamos que a geração de Luís Felipe deu uma interpretação, e a de Clemenceau deu-lhe outra;
cada intérprete dirá certamente que todas as interpretações passadas são equivocadas, e um comparatista que se
empenhasse nestas polêmicas entre gerações seria considerado ridículo”. SACCO, Rodolfo. Introdução ao Direito
Comparado. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2001; p. 77.
2 O próprio direito autoral apresenta alguma distinção em sua conguração presente, apesar dos padrões impostos
pelo mundo globalizado. Ronald Bettig arma que em Bali, sua recente tradição oral via as obras produzidas como
anônimas, orientadas para a comunidade, criada por meio de um processo colaborativo, expressão do pensamento
da coletividade. Além disso, a China só viria a ter um sistema de direito autoral a partir de 1991. No original, lê-se
que: “(...) in the more recent oral culture of Bali, artistic property, in the sense of personal prossession, did not exist. e
Balinese viewed the production of culture as an anonymous, community-oriented, participatory process, and they intended
art to be ‘the expression of collective thought’. us, artistic knowledge could not be centralized in the hands of a particular
intellectual class. Until 1991, the People’s Republic of China did not have a copyright system, reecting the fact that the
concept of intellectual property also did not exist in the societies of Southestern Asia”. BETTIG, Ronald V. Copyrighting
Culture – e Political Economy of Intellectual Property. Westview Press. Boulder, 1996; pp. 12-13.
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Sérgio Branco
Tempo e espaço, portanto, em regra servem de obstáculo a uma comparação per-
feita de um determinado instituto jurídico em momentos históricos distintos ou entre
sistemas jurídicos diversos.
Com o domínio público, entretanto, passa-se de maneira substancialmente di-
versa. Seus fundamentos legais não variaram muito ao longo do tempo, nem tampouco
seus efeitos. Em suma, e apenas para apresentarmos a discussão, o domínio público,
independentemente do momento histórico em que seja analisado, ou do espaço geo-
gráco onde se insira, signica o m da proteção (patrimonial, no mínimo) autoral.
O prazo de proteção pode ser mais ou menos extenso e ser justicado de uma ou outra
forma; os motivos da proteção autoral, sua fundamentação e sua abrangência mudaram
bastante com o tempo e em razão do sistema jurídico em que sejam estudadas. Mas não
o domínio público.
Sendo assim, a análise histórico-espacial do domínio público pode se dar em base
muito mais segura. E sua compreensão pode ser consideravelmente útil para este trabalho.
Em primeiro lugar, porque desde sempre o domínio público signicou, em análise
mais imediata, o m da proteção autoral. Tanto no século XVIII quanto agora. Ocorre
que, com o passar do tempo, os prazos de proteção do direito de autor foram sendo
alargados, constante e sistematicamente. É interessante analisarmos por quais motivos
os prazos foram sendo aumentados, ainda que esta análise nos leve a considerar, de fato,
o avesso do domínio público: na realidade, a proteção autoral. Porque foram os prazos
de proteção às obras que se dilataram, acarretando uma progressiva postergação do mo-
mento de entrada das obras em domínio público. Ou seja: o estudo do domínio público
no tempo, que consiste na investigação dos motivos que justicam o aumento da pro-
teção das obras intelectuais ao longo dos séculos é, em última análise, um estudo dos
motivos de existência dos próprios direitos autorais.
Em segundo lugar, porque não só seu fundamento principal (o acesso às obras inte-
lectuais) como seus efeitos são praticamente os mesmos em qualquer sistema jurídico ou
país. Dentro do direito comparado, o fenômeno é raro. De fato, o instituto do domínio
público tem as mesmas características básicas em qualquer país ou sistema jurídico, de
forma que estudar sua estrutura e função em outros países pode ser signicativo para
entender seus contornos no direito brasileiro.
Por isso, parece-nos, ambas as inserções se justicam. Tanto a compreensão da di-
mensão histórica quanto a compreensão da dimensão geográca serão importantes para
denirmos a conformação do domínio público hoje.
Evidentemente, o domínio público não é uma construção isolada do direito brasi-
leiro, nem tampouco um conceito exclusivamente contemporâneo. Ainda que os direi-
tos autorais sejam de fundação razoavelmente recente na história jurídica, muito já foi
discutido a respeito da matéria e o entendimento de questões relacionadas à legislação
brasileira não pode ser feito isoladamente.
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O domínio público no direito autoral brasileiro
– Uma Obra em Domínio Público –
Historicamente, não se reconhece a existência dos direitos autorais (ao menos da
forma como são atualmente concebidos) na Idade Antiga, ainda que os gregos reconhe-
cessem a autoria de seus lósofos e outros traços de direito autoral possam ser encontra-
dos ancestralmente. Foi apenas a partir do surgimento da prensa mecânica, em meados
do século XV, que a discussão acerca dos direitos autorais passou a ter fronteiras mais
visíveis.
É bem verdade que há quem veja na cobrança pela igreja católica, durante a Idade
Média, por cópias de manuscritos, o embrião dos direitos autorais. Parece-nos, entre-
tanto, que é mesmo “com o aparecimento da imprensa que o direito de autor encontra
fundamento para se desenvolver”.
3 “Não se reconhece o direito autoral no Direito romano escrito, embora haja evidências de que alguns autores assina-
vam contratos de ‘publicação’ com livreiros”. Tradução livre do autor. No original, lê-se que “[t]here is no recognition
of a copyright in written Roman law, though there is evidence that some authors signed ‘publishing’ contracts with booksell-
ers”. BETTIG, Ronald V. Copyrighting Culture – e Political Economy of Intellectual Property. Cit.; p. 12. Por
outro lado, há quem pondere a respeito dos romanos que, contrariamente a uma opinião comumente admitida, [os
romanos conheciam] a noção de obra do espírito: assim foram eles os pioneiros na distinção entre o suporte material
e a obra no qual se encontra incorporada. GAUTIER, Pierre-Yves. Priopriété Littéraire et Artistique. Cit.; p. 16.
Arma, no original: “[l]es Romains connaissaient parfaitement, contrairement à une opinion couramment admise, la no-
tion d’oeuvre de l’esprit : ainsi furent-ils les pionniers de la distinction entre le support matériel (mur, tablette) et l’oeuvre
qui y est incorporée (peinture) (…)”. Para um apanhado histórico dos direitos autorais, ver SOUZA, Allan Rocha de.
A Construção Social dos Direitos Autorais. Revista da ABPI, nº 93; pp. 11 e ss. Ver ainda GROSHEIDE, F. Willem.
In Search of the Public Domain During the Prehistory of Copyright Law. Intellectual Property – e Many Faces of
the Public Domain. Cheltenham: 2007; pp. 1 e ss.
4 SOUZA, Allan Rocha de. A Construção Social dos Direitos Autorais. Cit.; p. 11.
5 “[A] invenção da impressora, por Gutenberg em 1436, e do papel, em 1440, possibilitaram a reprodução dos livros
em uma escala innitamente superior ao conhecido então. Associada à facilidade de reprodução à alfabetização de
um maior número de pessoas e a uma produção literária mais intensa e diversicada observa-se, então, um período
de eclosão cultural – a Renascença – e, concomitantemente, de uma indústria cultural: os impressores e vendedores
de livros, inicialmente na França”. SOUZA, Allan Rocha de. A Função Social dos Direitos Autorais. Cit.; p. 38.
6 Para consistente análise histórica dos direitos autorais, ver, entre outros, MIZUKAMI, Pedro. Função Social da
Propriedade Intelectual: Compartilhamento de Arquivos e Direitos Autorais na CF/88. Dissertação apresenta-
da ao programa de pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2007.
7 “A Igreja detinha o monopólio sobre o conhecimento, especialmente durante a Alta Idade Média, por meio do
controle de manuscritos e suas cópias e por meio da educação e, consequentemente, alfabetização. Após os mos-
teiros beneditinos terem desenvolvido métodos de emprestar e trocar manuscritos, logo descobriram o valor de
suas bibliotecas. Acesso aos manuscritos poderia comandar terra, gado, dinheiro ou outros privilégios. George
Putnam [militar e escritor americano, 1844-1930] chamava a prática de cobrar pelo direito de copiar um ma-
nuscrito do primeiro direito autoral europeu, ainda que não tivesse ‘nada a ver com os direitos de um produtor
original da produção literária”. Tradução livre do autor. No original, lê-se que: “[t]he Church held a monopoly on
knowledge, especially during the Early Middle Ages, through its control of manuscripts and their reproduction and
through control of education and, consequently, litteracy. As the Benedictine monasteries developed methods for loaning
and exchanging manuscripts, they soon discovered the value of their libraries. Access to manuscripts could command
land, cattle, money, or other privileges. George Putnam called the practice of requiring payment for the right to copy
a manuscript the rst European copyright, though one that had ‘nothing whatever to do with the rights of an original
producer in the literary production’”. BETTIG, Ronald V. Copyrighting Culture – e Political Economy of
Intellectual Property. Cit.; p. 13.
8 CARBONI, Guilherme. Função Social do Direito de Autor. Curitiba: Juruá Editora, 2008; p. 50.

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