Dos defeitos do negócio jurídico - do erro

AutorBassil Dower, Nelson Godoy
Ocupação do AutorProfessor Universitário e Advogado em São Paulo
Páginas326-341

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22. 1 Apresentação

O negócio jurídico, para ter eficácia, depende da manifestação da vontade do agente. Somente quando ela for manifestada, exteriorizada, é que

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passa a ter influência na ordem jurídica. Mas, a manifestação deve revelar exatamente a vontade do sujeito, tanto que, se essa vontade não corresponder ao desejo do agente, havendo um desvio da vontade de ação, o negócio jurídico torna-se suscetível de nulidade ou anulação.

22.1. 1 Ausência total da vontade

Certo proprietário de duas casas alegou em juízo que, a partir de 1974, começou a ter problemas psiquiátricos, internando-se em março de 1976, para tratamento.

Nesta ocasião outorgou à sua irmã uma procuração para que ela cuidasse de seus interesses: receber aluguéis, administrar contas bancárias, receber seus proventos, porém, tal procuração não lhe dava poderes para vender ou adquirir bens.

Após 8 anos de internações, curou-se do mal que o afligia e passou a assumir os próprios negócios, quando descobriu que seus dois imóveis haviam sido transferidos à sua irmã e cunhado.

Fica fácil concluir de que não houve manifestação de vontade a respeito da transferência da propriedade. É importante colocar a vontade como elemento fundamental na existência de qualquer negócio jurídico. E se ela não se manifestou, o negócio jurídico inexistiu.

A manifestação da vontade se dá pelo consentimento do agente. É pela palavra, pela escrita, geralmente que essa exteriorização se concretiza. Não havendo esse consentimento, embora o ato seja praticado, em verdade não existiu, por falta de elemento essencial. É o caso, por exemplo, de uma senhora que concorda com a venda de um imóvel sob efeito de hipnose244.

Há, aí, a abolição completa da vontade.

22. 2 Existência de uma vontade manifestada

A exteriorização da vontade deve revelar exatamente o desejo íntimo do agente; se essa manifestação não revela fielmente a vontade, ou seja, não

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se deu como o agente realmente gostaria de expressar, essa exteriorização encontra-se viciada, deturpada, contaminada, tornando-se anulável o ato então praticado (CC, art. 171, II).

É o caso, por exemplo, do marido que mantinha relações sexuais com sua própria genitora antes do casamento, e que continua a mantê-las após a sua celebração. A esposa, ao tomar conhecimento desse estado de coisa após o matrimônio, constatará que houve erro sobre a pessoa do cônjuge, o que a colocará ao abrigo da lei: anular o casamento (in RT 390/371). É o caso, também, da mulher que contrai casamento com um homossexual. O fato, ignorado por ela antes do matrimônio, constitui erro essencial quanto à pessoa do marido, que assim afeta a honra e a boa fama da mulher tornando insuportável a vida em comum. Se ela tivesse conhecimento deste fato antes do casamento, não teria consentido em se casar, razão pela qual o juiz anula o ato em virtude da existência de vício da vontade.

As causas que podem desvirtuar o processo de formação da vontade são previstas e reguladas por lei, sob a denominação de vícios da vontade. São eles: o erro, o dolo, a coação, o estado de perigo e a lesão (CC, art. 171, II).

A lei também prevê outro tipo, embora não atinja diretamente a vontade na sua formação, mas conduz a idêntico resultado, anulando o negócio jurídico. É ele a fraude contra credores, denominado vício social, porque afeta diretamente o negócio jurídico, ocasião em que há o conluio entre duas pessoas com a intenção de violar direito de terceiro.

O nosso Código Civil analisa esses vícios no capítulo IV, do Livro III, sob a denominação "DOS DEFEITOS DO NEGÓCIO JURÍDICO".

Passaremos a seguir, a tratar apenas do erro; nos capítulos que seguem, focalizaremos os demais.

22. 3 Erro e ignorância (conceito)

Os exemplos citados acima servem para fornecer uma exata noção de erro, um dos vícios mais freqüentes. Se a mulher conhecesse a realidade antes do enlace matrimonial jamais teria consentido em se casar. Houve uma noção falsa sobre a pessoa do seu cônjuge; uma discordância entre a vontade interna e a vontade declarada e que não sofreu qualquer influência externa.

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Portanto, erro é uma falsa idéia da verdade entre aquilo que o agente pretendia e aquilo que realizou. O agente crê em uma realidade que não é verdadeira. Roberto Ruggiero ensina ser "em geral, qualquer conhecimento falso"245. Pontes de Miranda conceitua o erro: "Se o que o figurante do ato jurídico tinha por verdadeiro não o é, dá-se o erro".246Para Orlando Gomes, "o erro é uma falsa representação".247Compra-se um automóvel adulterado na montagem de peças e com chassi trocado. O Tribunal decidiu que a divergência substancial entre aquilo que se quis adquirir e o que realmente se adquiriu impõe a rescisão do contrato (in RT 580/255). "Demonstrado que somente após o casamento veio o marido a conhecer a vida desregrada da mulher no ambiente de trabalho e que tal fato tornou insuportável a vida em comum, impõe-se a anulação do casamento" (in RT 632/89). No erro, o agente se engana. Portanto, a eficácia do ato depende da coincidência do querer íntimo do sujeito e a sua vontade manifestada. Havendo tal desavença e desde que esta não tenha sofrido qualquer influência externa, - repita-se - configurado estará o erro. É que o erro deve ser espontâneo, sem a provocação interesseira de terceiro, pois se houver alguma influência malévola visando beneficiar o provocador com a manifestação, surge a figura do dolo, que será analisado no próximo capítulo.

O nosso Código Civil trata desse vício de vontade na seção I, no capítulo IV, do Livro III, sob a denominação "Do Erro ou Ignorância".

Não se deve confundir erro com ignorância, pois esta é o completo desconhecimento acerca de determinado objeto, ao passo que aquele é a noção falsa, infiel a respeito de certo objeto ou de determinada pessoa. Contudo, neste capítulo, o erro e a ignorância são tratados como se fossem a mesma figura, pois o Código os equipara quanto aos seus efeitos. Assim, tudo quanto se diz sobre o erro aplica-se à ignorância.

22. 4 Pressupostos do erro

Quando uma pessoa realiza um negócio jurídico, o faz de acordo com a sua vontade; se a vontade se apresenta viciada por um erro que a deturpa, permite a lei a invalidade do negócio jurídico, desde que presentes os seguintes pressupostos: 1) que o erro seja substancial; 2) que seja escusável.

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"Se o cônjuge varão contrai núpcias com a mulher em razão de sua gravidez e vem a descobrir posteriormente que o filho, na realidade, pertence a terceiro, resta configurado o erro essencial quanto à pessoa do outro, investido de força bastante à anulação do casamento, a teor do art. 218 (novo, art. 1.556) do CC, independentemente de a esposa ter ou não agido dolosamente" (in RT 767/235).

Não são todos os tipos de erro que anulam o negócio jurídico, mas somente os essenciais ou substanciais. É o que se extrai da dicção textual do art. 138 do CC, in verbis: "São anuláveis os negócios jurídicos, quando as declarações de vontade emanarem de erro substancial que poderia ser percebido por pessoa de diligência normal, em face das circunstâncias do negócio".

Erro substancial é aquele de tal relevância que, se fosse conhecida a verdade, o negócio jurídico não seria celebrado; é o caso acima exposto ou dos exemplos dados inicialmente: se a esposa soubesse das relações sexuais incestuosas do marido, ou que ele era homossexual, jamais teria praticado o ato jurídico do casamento. "É indisputável que o homossexualismo do marido torne insuportável a vida em comum - decidiu certa vez o Tribunal. Entretanto, para justificar a anulação do casamento, deve a mulher comprovar que o conhecimento do fato foi posterior ao matrimônio" (in RT 577/119).

O nosso Código Civil esclarece as espécies de erro considerado substancial:

"Art. 139 O erro é substancial quando:

I - interessa à natureza do negócio, ao objeto principal da declaração, ou a alguma das qualidades a ele essenciais;

II - concerne à identidade ou à qualidade essencial da pessoa a quem se refira a declaração de vontade, desde que tenha influído nesta de modo relevante;

III - sendo de direito e não implicando recusa à aplicação da lei, for o motivo único ou principal do negócio jurídico.

À luz deste artigo, o erro poderá incidir no negócio, no objeto ou na pessoa. Entretanto, não confunda-se erro essencial com vício redibitório, sendo

22.4. 1 Erro substancial

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certo que o vício redibitório é erro objetivo sobre a coisa, que contém um defeito oculto. Já o erro substancial é subjetivo, pois, não reside no objeto, mas sim na manifestação da vontade quanto às qualidades essenciais do objeto.

Vejamos as várias espécies indicadas pela lei:

22.4.1.1 Erro sobre a natureza do negócio (error in negotio)

Ocorre quando uma pessoa realiza determinada negociação, e, na realidade, está realizando outra. Pensava estar assinando um contrato de comodato (empréstimo gratuito), mas estava assinando um contrato de locação, ou seja, o ato foi realizado de forma diversa da pretendida. Se uma pessoa, por exemplo, entrega a outra um objeto a título de empréstimo e esta outra o recebe como doação, o erro recai sobre a natureza do ato. É a própria natureza do ato que é...

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