A Emenda Constitucional nº 54 resgata a cidadania dos brasileiros anacionais

AutorFlorisbal de Souza Del’Olmo
CargoMestre (UFSC) e Doutor em Direito (UFRGS), com estágio pós-doutoral em Direito pela UFSC. Professor na Graduação e no Curso de Mestrado em Direito da URI, Santo Ângelo, RS. Professor convidado da UFAM, Manaus, AM, e da UFRGS. Coordenador do Grupo de Pesquisas CNPq – Tutela dos Direitos e sua Efetividade.
Páginas49-61

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1 Introdução

Este estudo se ocupa da Emenda Constitucional nº 54, de 20 de setembro de 2007, que reintroduz no ordenamento jurídico brasileiro o reconhecimento da nacionalidade pelo registro de nascimento em repartições consulares ou diplomáticas do país no Exterior, que havia sido suprimido em emenda anterior, de 1994.

Será dividido em duas partes, ocupando-se a primeira do instituto da nacionalidade, detendo-se nos critérios de atribuição da mesma admitidos pelo Direito Internacional, o jus soli e o jus sanguinis. A segunda parte abordará a anacionalidade, instituto mais conhecido como apatridia, tecendo reflexões sobre a presença do sistema do jus sanguinis na legislação brasileira e as dificuldades enfrentadas por filhos de brasileiros nascidos em outros países, assim como a bemvinda Emenda Constitucional nº 54, que possibilita a integração na comunidade brasileira dessas crianças, assegurando a elas todos os direitos da nossa cidadania.

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2 O Instituto da Nacionalidade

A nacionalidade se apresenta como requisito basilar para o reconhecimento da cidadania. Daí a importância e atualidade de seu estudo, que se espraia por vários segmentos do mundo das ciências jurídicas, como o Direito Internacional Público, o Direito Internacional Privado, o Direito Constitucional, o Direito Civil e o Direito Processual Civil, entre outros.

2. 1 Observações preliminares

Os países dispõem de ampla liberdade para conferir sua nacionalidade, levando em consideração seus valores sociais e culturais. O exercício dessa prerrogativa, contudo, necessita estar consentâneo com os princípios e costumes do Direito Internacional, sem o que essa atribuição não seria reconhecida pelos demais Estados. Não pode, assim, o Estado instituir uma legislação alicerçada em seu próprio interesse, pois isso iria dificultar as relações do mesmo com outros países e criar dificuldades a essas pessoas. Nesse contexto, são pertinentes essas observações de Ferrante: “As idéias dominantes em cada período da história da humanidade impregnaram, sem dúvida, a conceituação da nacionalidade, mas não lhe atingiram o fundamento básico, conformado a razões de ordem jurídica, que permanecem inalteráveis, e traduzidas na necessidade de cada Estado, em todos os tempos, de indicar seus próprios nacionais”.2

Pode-se afirmar que o Direito Internacional confia ao Estado, em princípio, a competência da normatização da aquisição e perda da sua nacionalidade, prescrevendo as necessárias limitações, com o que impede, por exemplo, a supressão da categoria de estrangeiros pela concessão irrestrita e indiscriminada da nacionalidade.

A nacionalidade identifica o vínculo jurídico fundamental entre o ser humano e o Estado, constituindo-se no elo que cria, para ambos, direitos e obrigações recíprocos, que os manterão unidos, mesmo na eventualidade de afastamento daquele do espaço geográfico desse, onde continuará a contar com sua proteção e a prestar respeito às diretrizes emanantes da soberania estatal. Esse vínculo, além de jurídico-político, é também social e moral entre o Estado soberano e cada uma das pessoas físicas que a ele estão ligadas, constituindo estas a dimensão pessoal daquele por liames que o próprio Estado institui, observando os parâmetros do Direito Internacional.

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Convém referir que cidadania e nacionalidade, embora institutos distintos, são complementares, fundados em uma solidariedade de interesses e de sentimentos. Ambas se ocupam da pessoa física, do homem, que constitui a sociedade humana, organizada juridicamente em Estado, que é o sujeito original e necessário do Direito Internacional.

2. 2 O jus soli

A ordem jurídica internacional admite dois critérios para normatizar a concessão da nacionalidade de origem, a primária, aquela a que a pessoa se vê investida ao nascer. São o jus sanguinis e o jus soli. Ambos têm o nascimento do ser humano como pressuposto basilar para essa atribuição, tendo o jus sanguinis surgido primeiro, ainda na Antigüidade.

Consiste o sistema do jus soli na concessão da nacionalidade em função do local de nascimento, literalmente direito do solo, sem considerar, por conseguinte, a condição nacional dos pais. Sua base se assenta no fato de que quem nasce no território do Estado, desse Estado é nacional. É o chamado critério territorial.

Entende-se que o jus soli surgiu, ou pelo menos se consagrou, no período feudal, no qual a idéia dominante era manter o indivíduo preso à terra. Admite-se hoje, contudo, seu sentido democrático, uma vez que não discrimina parcelas da população que seriam consideradas estrangeiras pelo simples fato de seus pais não serem oriundos do Estado.

É o critério de eleição dos Estados novos ou em fase de desenvolvimento, onde impera a necessidade de formação de uma população nacional. Daí ser o princípio adotado pelos países do continente americano. Quando surge um Estado seria até inconcebível a adoção do jus sanguinis, pois é muito reduzido, nessa fase inicial, o número de nacionais. Também os países que recebem muitos imigrantes costumam adotar o jus soli, com o que propiciam a integração dos descendentes na vida nacional.

É oportuno observar que o movimento migratório existe desde os primórdios da humanidade, gerando conseqüências nos mais diversos setores. Ocasionada por fatores distintos, entre eles o econômico, o político, o social e o cultural, a migração atingiu proporções consideráveis com a globalização e com o aperfeiçoamento dos meios de comunicação e de transporte. Nessa primeira década do século XXI, grande número de seres humanos, provenientes dos países em estágio menos avançado de desenvolvimento, inclusive do Brasil, deslocam-se em direção dos Estados mais ricos e industrializados.

Observa Paul de La Pradelle que, com a aplicação do jus sanguinis, a influência da família é preponderante na primeira geração, deixando de ser na segunda e desaparece totalmente na terceira geração. Sugere, então, para uma legislação moderna, uma destas combinações: dar à criança a nacionalidade de seus pais, com a faculdade de opção da nacionalidade do lugar de nascimento na maioridade; ouPage 52conceder a nacionalidade do lugar do nascimento, com a faculdade de opção da nacionalidade de qualquer dos pais, quando atingir a maioridade.3

O emprego predominante do jus soli, com concessões, necessárias e pertinentes, ao jus sanguinis, em um oportuno sistema misto, parece ser o caminho que se traça para o futuro da nacionalidade nata.

Sopesando os fatores positivos e negativos do jus soli e do jus sanguinis, Dardeau de Carvalho concluiu que o princípio da territorialidade, o jus soli, é mais lógico do que o sistema da filiação, o jus sanguinis. Entende que isso ocorre porque o ser humano é produto quase exclusivo do meio em que vive e, mais do que o sangue, é a terra, o ambiente que o cerca, e o fator determinante das suas inclinações, afeições e modos de agir e reagir contra os estímulos externos: “É o determinismo telúrico, afeiçoando-o, inexoravelmente, ao seu ‘habitat”. Complementa o saudoso estudioso: “Na luta entre os caracteres étnicos, raciais, consangüíneos, e o meio físico, a vitória cabe sempre ao último destes elementos. A influência do meio, sem dúvida, é muito mais poderosa do que os impulsos da estirpe sangüínea, quase sempre obliterada pela passagem de muitas gerações”.4

Diante dos inconvenientes apontados pela doutrina no emprego absoluto do jus soli ou do jus sanguinis, é oportuno lembrar o outro extremo, como ocorre em São Tomé e Príncipe, pequena república de fala portuguesa na costa ocidental africana, que adota de forma absoluta os dois sistemas, em um único e sintético artigo de sua Constituição de 1990: “Art. 3º. São cidadãos santomenses todos os nascidos em território nacional, os filhos de pai ou mãe santomense e aqueles que como tal sejam considerados por Lei”.5

O emprego do jus soli na atribuição da nacionalidade originária tem sido uma constante no ordenamento jurídico brasileiro, embora jamais de forma absoluta. Sempre ficou excluído da nacionalidade brasileira o ser humano que, mesmo tendo nascido no país, fosse filho de estrangeiro que estivesse no Brasil a serviço de sua pátria. Em essência, o conteúdo do dispositivo constitucional não mudou nas sucessivas Cartas Magnas que o país adotou, até a atual (1988), que considera brasileiros natos, conforme a alínea a do inciso I do art. 12, “os nascidos na República Federativa do Brasil, ainda que de pais estrangeiros, desde que estes não estejam a serviço de seu país...

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