'Empresas que não fazem compliance andam para trás'

A globalização do combate à corrupção e aos crimes financeiros empurra o Direito Penal e Empresarial para uma nova dinâmica. Recentes acordos internacionais para compartilhamento de investigações têm mudado a rotina de grandes empresas e o trabalho dos advogados em diferentes países, já que uma companhia acusada de corrupção em um país pode sofrer sérias consequências comerciais em outra nação.

No Brasil, que paulatinamente vai aderindo a esses convênios, a exigência do chamado compliance já é concreta. Mais do que defender acusados, criminalistas têm sido incumbidos de investigar os próprios clientes — multinacionais preocupadas com a repercussão de possíveis crimes cometidos por seus executivos e funcionários. É o que testemunham as três advogadas Débora Pimentel, Sylvia Urquiza e Carolina Fonti, que, de olho no mercado, decidiram sair do Trench, Rossi e Watanabe Advogados para inaugurar o Urquiza, Pimentel e Fonti Advogados. Sylvia foi a responsável por inaugurar a área de Direito Penal do Trench, em 2003, — quando as grandes bancas dedicadas a Direito Empresarial ainda preferiam repassar casos penais a butiques especializadas.

Acostumadas a enfrentar complexas investigações por todo o mundo, elas alertam: as empresas nacionais estão demorando para se adequar a padrões de proteção contra corrupção. Enquanto Estados Unidos, com o FCPA [Foreign Corrupt Practices Act, ou Lei de Práticas Corruptas no Exterior, em tradução livre], e o Reino Unido, com o UK Bribery Act [versão britânica da mesma lei], têm enquadrado matrizes e subsidiárias que cometem desvios, as multinacionais brasileiras ainda não entenderam que não criar uma cartilha de procedimentos e treinar executivos e funcionários é um risco. "As brasileiras que têm ações na bolsa no exterior ainda não perceberam a importância de um programa de compliance e estão andando para trás. Qualquer empresa grande que já tenha sido exposta a investigação ou tenha feito algum acordo com o Ministério Público ou com a Justiça americana é um brilho no programa de compliance: cumpre, faz treinamento, segue as exigências", esclarece Sylvia.

A história das três advogadas se confunde com a da área penal do Trench, Rossi e Watanabe. O primeiro acordo de leniência — pelo qual o infrator ajuda na investigação em troca de abrandamento de punição — assinado no Brasil na área concorrencial passou pelas mãos de Sylvia. A experiência, garantem, foi o que levou ao patamar mantido até hoje, segundo elas: dos inquéritos abertos contra seus clientes, nenhum virou denúncia. E nas denúncias que já chegaram ajuizadas a suas mãos, jamais houve condenação.

Formada em Direito pela PUC de São Paulo e pós-graduada em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra, de Portugal, Sylvia Urquiza sempre ouviu do pai, advogado trabalhista formado pela USP, que deveria evitar a área penal. “Ele dizia que era sonho de estudante, que para ganhar dinheiro, eu deveria ir para o Direito Tributário”, conta. Mas ela insistiu e, no quarto ano do curso, já estava estagiando na área penal no escritório Muylaert, Livingston e Kok Advogados, onde ficou por oito anos. Em 1998, montou a própria banca com o criminalista Cristiano Maronna. Mais tarde, grávida, Sylvia seria convidada para inaugurar, em 2003, a área criminal no Trench, Rossi e Watanabe, época em que poucos escritórios de grande porte tinham a sua. “Muitos ainda acreditavam que Direito Penal não combina com grandes escritórios”, lembra. Em sua trajetória, a advogada fez parte da Comissão de Estágio da OAB de São Paulo e ajudou a elaborar provas de Direito Penal e Processual Penal do Exame de Ordem. É vice-presidente no capítulo brasileiro da Association of Certified Fraud Examiners e, desde 2009, é apontada pela Cambers Latin America entre os dez melhores criminalistas do Brasil — o mesmo ocorreu em 2012 na Latin Lawyer e na revista Análise Advocacia.

Casada e com dois filhos, Débora Pimentel sempre trabalhou na área penal. Entrou no Trench, Rossi e Watanabe em 2005, depois de estagiar por três anos no Carnelós e Garcia Advogados e de passar dois anos no Oliveira Lima, Hungria, Dall'Acqua & Furrier Advogados e outro tanto no escritório do seu pai. É formada na Unip de São Paulo e tem especialização em Processo Penal pela Escola Paulista de Magistratura, e em Direito Penal Econômico pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), em convênio com a Universidade de Coimbra. Fez parte da Comissão de Prerrogativas da OAB paulista.

Carolina Fonti é a mais nova das três, com 29 anos. Formada pela USP, termina este ano o mestrado em Direito Penal na universidade. Tem especialização em Direito Penal Econômico pelo IBCCrim em convênio com a Universidade de Coimbra. Fez parte da equipe do Trench desde que se formou, em 2007. Antes, estagiou no Lilla, Huck, Otranto, Camargo Advogados e no Moraes Pitombo Advogados. Passou ainda pelo Ministério Público, como estagiária no Tribunal do Júri da Barra Funda, o maior do país.

Leia a entrevista:

ConJur — O Brasil vem firmando pactos internacionais para o combate a crimes financeiros, inclusive acordos de transferência de informações. É motivo de preocupação?

Carolina Fonti — É uma tendência que nunca mais vai parar, um intercâmbio mais otimizado de informações. Isso tem crescido e se estreitado cada vez mais, tornando-se menos burocrático. Hoje, o Ministério Público Federal tem um canal de conversa muito próximo com o governo federal dos Estados Unidos e com a Europa. Já trabalhamos com algumas operações internacionais, com buscas e apreensões que ocorreram simultaneamente no mundo inteiro, em diversos países.

Débora Pimentel — O Ministério Público dos Estados Unidos pode inclusive fazer acordo com as empresas e com os indivíduos. É bem diferente da tradição penal que temos aqui. Eles simplesmente fazem um acordo para que a empresa se "autoinvestigue". Se chegarem à conclusão de que os resultados são idôneos e claros, simplesmente fazem um acordo para que a empresa pague uma multa, sem necessidade de homologação judicial.

ConJur — Como está o cenário nas empresas com a Convenção da OCDE assinada pelo Brasil para combate à corrupção e, mais recentemente, a aprovação, pela Câmara dos Deputados, do ainda projeto da chamada Lei Anticorrupção — que responsabiliza as empresas, civil e administrativamente, por atos cometidos em seus nomes por funcionários?

Sylvia Urquiza — Desde 2003 trabalhamos com investigação de corrupção, com empresas de diversos países. A Convenção da OCDE assinada pelo Brasil tem uma cláusula que diz o seguinte: se diversos países forem competentes para investigar o caso, a competência será daquele onde ocorreu o crime. O Brasil tem legislação anticorrupção, os Estados Unidos também têm, a Inglaterra tem, outros países também. Todos estão precavidos nesse sentido. Se, por acaso, uma multinacional americana comete atos de corrupção no Brasil, os Estados Unidos, pela legislação americana, são competentes para investigar, inclusive para punir. Se essa empresa for britânica com uma subsidiária nos Estados Unidos e outra no Brasil, e esse ato de corrupção aconteceu no Brasil e, de alguma forma, passou pelo território americano, ainda que a decisão tenha sido tomada somente lá, existe competência para julgar nos dois países. Teve caso, por exemplo, que uma empresa fez um acordo nos Estados Unidos e outro na Alemanha por mais de US$ 2 bilhões em multa.

ConJur — As empresas brasileiras entram onde?

Débora Pimentel — Vai haver uma participação das multinacionais brasileiras a respeito de competência. Vamos supor que uma multinacional brasileira tenha ações na bolsa de Nova York e tenha algum caso de corrupção no Brasil ou em algum país em que ela também atue. Os Estados Unidos também são competentes para julgar porque ela tem ações lá.

ConJur — Pode haver punições diferentes para um só crime?

Sylvia Urquiza É o que vem acontecendo. Daqui para frente, o principal ponto de foco do Direito em questão de compliance é justamente a questão da competência internacional.

ConJur — Isso não reclama uma denúncia à Corte Interamericana de Direitos Humanos?

Débora Pimentel — Muitas vezes, as empresas não têm interesse político e econômico em discutir. Existe um caso que também é público no qual os Estados Unidos detectaram que uma empresa estava cometendo atos de corrupção em diversos lugares do mundo. Essa empresa é europeia, mas tinha subsidiária nos Estados Unidos. Então, o governo americano intimou a empresa e falou: "Detectei a sua empresa e vou começar a me colocar contra vocês. Vocês querem fazer um acordo oficial e se autoinvestigam?" A empresa disse que não, de jeito nenhum, que não tinha nada a ver com essa legislação porque era uma empresa europeia. Só que os maiores clientes dessa empresa eram americanos. No dia seguinte, o que o DOJ [Department of Justice] fez? Mandou uma carta a todos os clientes americanos para que eles não fizessem negócios com a empresa que não cumpria a legislação. Imediatamente a empresa europeia entrou em acordo com o Departamento de Justiça.

ConJur — As brasileiras têm a mesma posição?

Débora Pimentel — Uma empresa brasileira talvez prefira ser investigada internamente a fazer um acordo com autoridades estrangeiras, até porque a legislação é muito diferente. Nos Estados Unidos, por exemplo, existe a...

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